Sem limites

Com metodologia inclusiva, oficina ensina pessoas cegas a fotografar

Professora de fotojornalismo no Rio Grande do Sul desenvolveu método a partir de 2012 e hoje promove oficinas pelo país. 'O cego é um grande diretor de imagem”, afirma Janaina Gomes

Priscila Nascimento

Para a professora da UFSM, o cego “tira” a foto antes de apertar o botão

São Paulo – Quando a estudante Rúbia Steffens surgiu na aula de fotojornalismo, em 2012, a professora Janaina Gomes logo se viu diante de uma situação nada simples. A aluna era cega congênita, ou seja, desde o nascimento. A deficiência visual não havia sido empecilho para ela ingressar no curso de jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no interior do Rio Grande do Sul, mas como ensinar fotojornalismo para uma pessoa cega?

Sem assistência especializada na universidade, que nunca havia tido uma aluna com deficiência visual no curso de jornalismo, a professora foi por conta própria pesquisar a resposta. Encontrou a história do húngaro Evgen Bavcar, um fotógrafo cego. Apesar de interessante, a descoberta logo se mostrou insuficiente, pois Evgen havia perdido a visão com 12 anos de idade, não era cego de nascença como Rúbia e, portanto, tinha referências visuais prévias. Na sequência, Janaina descobriu o paulista Antônio Walter Barbero, o Teco Barbeiro, jornalista cego que desde 2010 realizava oficinas de fotografia com pessoas também cegas. Disposta a entender como era a metodologia utilizada, a professora convidou Teco para ir ao campus da UFSM em Frederico Westphalen.

A partir desse encontro, a professora começou a conhecer instrumentos e técnicas para ensinar cegos a encontrar os pontos centrais do rosto, fazer enquadramentos e estabelecer noções de distância e tamanho do objeto, úteis para fotografias em planos fechados, além de macetes para ensinar a empunhadura da câmera. Mas ela ainda queria mais, como ensinar a fotografar planos abertos. A pesquisa continuou e o avanço seguinte foi tomar conhecimento da audiodescrição, recurso que permite a pessoa com deficiência visual ver com o auxílio das palavras, usado para promover a acessibilidade em museus, cinemas, teatros e televisão e que poderia também ser usado para auxiliar na fotografia. Com um pouco de cada coisa, a professora da UFSM então começou a ensinar a disciplina de fotojornalismo para a aluna cega, ainda no método de tentativa e erro.

Janaina explica que Rúbia tinha um grande domínio da matemática e geometria, o que acabou sendo sua via de acesso à fotografia. “Os materiais desenvolvidos para ensinar o enquadramento fazem com que o cego tenha controle do que quer capturar. Com a Rúbia tudo foi muito matemático”, recorda a professora. Como exemplo, cita o método de contar os passos ao se distanciar do objeto e assim entender o quanto o quadro que será retratado aumenta conforme a lente usada, e que esse aumento poderia ser calculado. “O cego precisa dominar o quadro e entender para onde vai apontar a câmera.”

Obcecada com a ideia de ensinar a aluna cega a fotografar, com o tempo a professora desenvolveu materiais de PVC e MDF para criar técnicas e métodos de enquadramentos, tamanho, distância e simular o processo de alinhamento da câmera.

“É uma docência especial. Hoje entendo que o cego vê a fotografia mais que uma pessoa que enxerga normalmente, porque o deficiente visual ‘tira’ a foto antes de apertar o botão. Quando ele vai ‘ver’ a foto com o auxílio da audiodescrição, ele já sabe como é a fotografia. O cego é um grande diretor de imagem”, afirma Janaina Gomes.

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Autoretrato produzido por José Edson durante oficina em Recife

Audiodescrição

Desenvolvido como um recurso de acessibilidade que amplia a compreensão e a participação das pessoas com deficiência visual, a audiodescrição (Ad) é a tradução das imagens em palavras, uma descrição objetiva que permite ao cego “ver” a cena diante de si.

Na última quinta-feira (27), Janaina publicou em rede social a audiodescrição e a foto autorretrato realizada por José Edson, aluno da oficina de fotografia inclusiva que realizou semana passada, em Recife.

“Ad: Da esquerda para a direita. Bruninha Alves LS, está sorrindo. Tem cabelo preto e cacheado, bem crespo. Está preso na parte superior. Pele morena. A sobrancelha é preta, volumosa e arqueada. O olho esquerdo é coberto por uma membrana branca e o olho direito é castanho bem claro. O nariz fino e arredondado na ponta. Lábios volumosos. A cabeça está levemente inclinada para cima. Usa uma camiseta azul com a estampa do Mickey Mouse. Dione está ao lado de Bruna e está com a cabeça levemente inclinada para cima. Tem pele branca, cabelo médio, branco e liso. Usa óculos com armação cor preta. Sobrancelha volumosa, arqueada e grisalha. Nariz longo e fino. Lábios finos. Usa uma camisa de gola branca. Janaina Gomes tem pele branca, cabelo castanho escuro com as pontas mais claras, ondulado e na altura do pescoço. Sobrancelha fina, arqueada e olhos castanho escuro. Nariz longo, fino e arredondado na ponta. Lábio grande e um pouco volumoso. Usa um colar de prata com pingente de flor e vestido preto com bolinhas brancas de manga curta e decote médio. José Edson é alto, magro. É calvo na parte superior da cabeça e tem cabelos grisalhos. Pele morena. Tem sobrancelha volumosa e grisalha. O olho esquerdo tem uma membrana branca e o direito é castanho escuro. Nariz médio e fino. Lábios finos. Veste camisa de gola com listras horizontais azul e branca.”

Segundo a professora da UFSM, se por um lado o ensino de braile é um direito adquirido por pessoas com deficiência visual, a audiodescrição ainda não é uma ferramenta usual no processo educacional. No caso de Rúbia Steffens, após a disciplina de fotojornalismo, no segundo ano do curso a professora de telejornalismo também começou a usar em sala de aula o mesmo recurso.

“O aluno cego de comunicação precisa da audiodescrição na aula, sem isso não há o estímulo visual”, explica Janaina Gomes. Ela acredita que a UFSM tenha sido a primeira universidade federal do país a usar esse recurso em sala de aula, por meio de uma pessoa que traduz o que o professor está fazendo enquanto o aluno escuta a audiodescrição por um fone de ouvido, sem interferir na dinâmica da classe.

Priscila Nascimentofotografia_inclusiva
Feito de MDF, o equipamento ensina o cego a alinhar a câmera e entender para onde deve apontá-la

Fotografia inclusiva

A experiência exitosa no interior do Rio Grande do Sul estimulou a professora de fotojornalismo a apresentar o mundo da fotografia para outros cegos. Em 2015 ela idealizou a primeira oficina de fotografia inclusiva, realizada no I Encontro Nacional de Audiodescrição em Estudos (Enades), em Colatina, no Espírito Santo. Na ocasião, 20 pessoas cegas aprenderam noções básicas de fotografia.

No ano seguinte, a atividade foi repetida no mesmo encontro (II Enades), em Maceió, e, na semana passada, a professora da UFSM realizou a terceira oficina de fotografia inclusiva, em Recife. Com incentivo do Funcultura, a oficina “Da Selfie ao Plano Geral” foi realizada com 18 alunos na Associação Pernambucana de Cegos (Apec). Nesta semana, a atividade ocorre também em Caruaru, na Associação Caruaruense de Cegos (Acace).

“É um projeto experimental, pois aumentamos a carga horária e o número de participantes. Queremos mostrar que a pessoa com deficiência visual também pode se apropriar da fotografia. E toda a oficina terá audiodescrição. Dessa maneira queremos de fato incluir os participantes e proporcionar-lhes o máximo de autonomia. Sem dúvida será um marco para todos os envolvidos”, destaca Priscila Xavier, coordenadora do projeto em Pernambuco, promovido pela Entrelinhas Comunicação Acessível.

“A pessoa cega não confia que pode fotografar de verdade”, pondera Janaina Gomes. “Tudo é possível de ser ensinado. Como aluna, sei que posso ultrapassar meus limites e, como professora, não acredito que tenhamos limites para ensinar. Tendo metodologia de ensino adequada tudo é possível. Hoje sou viciada no momento em que a pessoa se dá conta de que aprendeu a fotografar. É uma adrenalina, é como esporte radical”, analisa a professora, que acredita ter se tornado uma docente de fotojornalismo melhor após o inesperado encontro, em 2012, com a aluna Rúbia Steffens.

 

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