festa do povo

Com argumento da falta de verbas, prefeitos tentam cancelar desfiles de carnaval

Suposta alienação de foliões frente aos problemas alimenta projetos conservadores, autoritários, incompatíveis com manifestações populares e com a ocupação do espaço público pela massa em festa

Rovena Rosa/ABr

Carnaval em São Paulo, que cresceu nos últimos anos graças ao empenho do ex-prefeito Fernando Haddad em humanizar a cidade

São Paulo – Nos seus primeiros dias como prefeito de São Bernardo, no ABC Paulista, Orlando Morando (PSDB) anunciou um conjunto de medidas, entre as quais a suspensão de subvenções para os desfiles de carnaval. Seu colega de partido, Nelson Marchezan Júnior, tomou providência idêntica na prefeitura de Porto Alegre (RS). Já a prefeita tucana de Novo Hamburgo, Fatima Daudt, adiou a festa para abril, quando a cidade completará 90 anos. Odelmo Leão (PP), prefeito de Uberlândia (MG), assinou decreto de calamidade pública por 180 dias. Entre outras coisas, suspende investimentos públicos em eventos festivos, o que deve afetar o carnaval.

Guarulhos, a segunda maior cidade do estado de São Paulo, também cortou repasse para escolas de samba. De acordo com o prefeito Gustavo Henric Costa, o Guti (PSB), serão estimuladas outras atrações. Na capital paulista, porém, o prefeito João Doria não deverá fazer mudanças neste ano. Mas há o temor de alterações a partir dos próximos anos. Entre elas, de desestímulo a manifestações de rua, que cresceram nos últimos anos, em detrimento de eventos realizados em espaços fechados.

Apoiadas por um público conservador, que nas redes sociais não poupam críticas ao carnaval e outras manifestações populares, tampouco a quem não perde um dia de festa, essas medidas são outro traço comum entre gestores de perfil conservador e autoritário, que se utilizam das dificuldades de caixa para acabar com a festa. 

Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autor do livro A Geografia do Samba na Cidade de São Paulo (Fundação Polisber), Alessandro Dozena não duvida de que uma festa carnavalesca bem organizada e planejada requer investimentos. Mas em contrapartida, em alguns casos, movimenta toda uma cadeia econômica. “No caso de São Paulo, o carnaval adquiriu uma nova forma de organização, trazendo novas atividades econômicas amparadas pelo trabalho, remunerado ou não, que abrange uma série de processos na preparação das fantasias e montagem dos carros alegóricos. Isso mobiliza um mercado específico na rua 25 de Março, além de bairros como o Brás e o Pari, com mercado voltado às plumas, aos tecidos e adereços”, explica.

Ele lembra que Luiz Carlos Prestes Filho – filho do “Cavaleiro da Esperança” – tem estudos em que demonstra a relevância do carnaval como fomentador de investimentos que permeiam uma pujante cadeia produtiva. Essas informações estão no livro Cadeia produtiva da economia do carnaval. Basta acessar.

Mesmo em cidades menores, segundo ele, todo investimento no carnaval vale a pena. “O carnaval de rua, por exemplo, possibilita a apropriação dos espaços públicos, produzindo sentimentos de afeição identitária com os lugares, que são acompanhados de espontaneidade, de criatividade e sociabilidades, com a configuração de certas práticas sociais em que a vida momentaneamente se reinventa, seguindo a lógica do tempo festivo lento, criando-se novos discursos pela subversão da ordem orientadora das práticas sociais homogeneizadoras, pelas resistências aos poderes que instituem e afirmam os territórios do poder, da disciplina, da administração e da burocracia.”

‘Carnaval de desilusões’

O discurso de “terra arrasada” na boca do governo federal e dos novos gestores municipais eleitos recentemente – a maioria nem é de novos – é acentuado com o atual, o do  ‘carnaval de desilusões’, em torno da crise sistêmica, marcado pelo desmanche econômico e político. É um discurso, conforme o pesquisador, alimentado e fortalecido pelo argumento conservador da alienação dos foliões que perseveram na alegria, mesmo diante da crise econômica. 

“Ao analisar o contentamento das pessoas que participam das festas carnavalescas, sempre tenho a ideia de que há uma psicoesfera motivadora, pautada em imaginários utópicos festivos, que paira acima de toda a negatividade prevalecente. E nesse sentido, sem dúvida alguma, o período carnavalesco se torna um dos principais momentos em que essa alegria se torna evidente, demarcando a espontaneidade diante da seriedade das realidades tristes e enfadadas.”

Para Dozena, o carnaval como festa atrai utopias festivas, que é ao mesmo tempo uma concepção de mundo e uma busca desmedida pelo prazer, capaz de atuar como um vigoroso álibi. “Assim, as festas carnavalescas manifestam não só um desvio da razão, mas a busca por um modelo de civilização não civilizado, e uma felicidade ancestral ainda concebível.”

E os blocos, cada vez mais numerosos, têm importante papel ao desafiar estruturas consolidadas de poder no espaço urbano a partir de práticas e discursos em um nível de resistência dada pelo uso territorial, mediada pela energia, pelos corpos, pelos sonhos, esperanças, prazeres e aspirações, em que os sentidos da existência humana podem se sublevar durante o período carnavalesco.

Reação

Tanto é assim, conforme observa, que o carnaval é uma reação à instituição da quaresma pela Igreja Católica, no século 16, para que os fiéis se dedicassem ao espírito em detrimento da própria vida em sociedade. Diante desta privação por quarenta dias, as pessoas forjavam festas pagãs que antecediam este período, com muitas danças, brincadeiras e bebedeiras. Esses últimos dias de fartura antes dos dias de penúria começaram, então, a ser chamados de dias do adeus à carne – em italiano, dias da ‘carne vale’ ou do ‘carnevale’. Surgia então a palavra para definir o período onde a comilança e a festa corriam soltas, e que acabaria por se tornar uma espécie de antônimo da quaresma: o carnaval. Há também registros que remetem a origem ao Egito antigo, Roma e Grécia.

Trazido ao Brasil pelos portugueses, o carnaval foi adotado na forma do entrudo europeu, mas adaptando-se às regionalidades. Desde então, esteve associado à manutenção da sociedade nos moldes escravocratas da época. Os negros, ainda que festejassem, continuavam a ser os escravos dos brancos que, por sua vez, também não eram todos ricos e possuidores de serviçais. Se as elites dispunham de carruagens – e posteriormente, automóveis – e todos os apetrechos importados dos grandiosos bailes europeus, os negros e os menos abastados apropriavam-se das ruas para festejar às suas maneiras, praticando o entrudo popular, muitas vezes até violento.

Controle

Para o professor da UFRN, enfraquecer o carnaval, assim como todas as manifestações populares no espaço público, pode até ser um objetivo do poder. O que não quer dizer, no entanto, que seja alcançado com facilidade. “Folião carnavalesco é como massa de pão, quanto mais bate mais cresce”.

As atividades promovidas pelos blocos ampliam o bem-estar em áreas carentes em infraestruturas culturais e de lazer. Essas manifestações sempre foram fundamentais para extravasar as amarguras do dia a dia, através de uma experiência coletiva importante para o estabelecimento dos valores culturais de um grupo social particular. “Antigamente a polícia ia, furava o couro e batia no pessoal. Mesmo assim, não conseguia acabar com as rodas de samba, cordões e blocos carnavalescos, que guardam um caráter espontâneo.”

Ele observa que os cordões e blocos carnavalescos foram historicamente encarados com um viés preconceituoso e perseguidos implacavelmente pela polícia, que se esforçava para coibir os atos de “baderna”. Mesmo assim, eles resistiram e como “massa de pão” aumentaram após muita pancada. “Eu creio que a maior presença dos blocos de rua evidencia exatamente a prática de resistência à mercantilice da vida e a tudo o que tende a torná-la desprovida de magia, rotineira, mecanizada e administrada. A partir dos blocos espontâneos, o carnaval de rua impulsiona a criação, o inusitado, o novo; imprescindível na inspiração de novas realidades, de novos cenários frente às dificuldades impostas pelas circunstâncias da vida em cidades como São Paulo.” 

‘Re-existência’

É por isso, segundo o professor, o desestímulo a manifestações populares como um todo, e ao carnaval em particular, que busca calar a festa também como canal de resistência. Em Olinda, o bloco Eu acho é pouco anunciou que vi usar camisetas “Fora Temer”. E a escola de samba Imperatriz Leopoldinense, no Rio de Janeiro, leva para a avenida samba-enredo que homenageia povos indígenas do Xingu especialmente pelo papel protetor da natureza ante a cobiça do agronegócio. 

O carnaval de rua, segundo conta, começou como uma prática de resistência ou “re-existência” que faz parte do processo singular da formação existencial dos foliões (visto que a resistência se referencia na existência), contribuindo para a produção de territorialidades e outras racionalidades tão diversas quanto metrópoles como São Paulo, que abriga muitas modalidades de existência e resistência à tendência de desagregação da sociabilidade. “O carnaval de rua é acompanhado do improviso, da resistência às normas e ao que é disciplinador. Temos nele uma lógica da improvisação em que o ambiente urbano é apropriado e a espontaneidade permite um contraponto ao artificialismo da realidade cotidiana. O princípio conformador do carnaval de rua é o da alegria, assegurando a utopia instantânea e fugaz, o convívio alegre, menos hierarquicamente arbitrário, menos tirânico e mais livre.”

Além disso, após a década de 1990 a cidade de São Paulo tem passado por uma onda revitalizadora  configurada  por movimentos de samba que buscam resgatar as raízes do samba e propiciar um reencontro com os sambistas do passado, que deixaram sua contribuição em músicas muitas vezes ainda desconhecidas pelos próprios sambistas atuais. Algo que me chama a atenção é que o samba apresenta uma dimensão mais ampla que a do carnaval, e que embora a festa carnavalesca tenha sido envolvida pelo espetáculo televisivo que tem como palco o Sambódromo, ela nunca saiu dos bairros e hoje costura novas relações sociais a partir de uma movimentação própria que se dá nos territórios do samba, motivada pelos blocos carnavalescos, rodas e movimentos de samba; além dos eventos que ocorrem ao  longo  do  ano  nas  quadras das escolas de samba.

Ele tem esperança – do verbo esperançar, como dizia Paulo Freire – de que  maior visibilidade dos blocos carnavalescos se deva a algumas iniciativas dos próprios foliões, a exemplo do Manifesto Carnavalista, que em 2013 contribuiu para a abertura do diálogo com a Secretaria Municipal de Cultura durante a gestão de Juca Ferreira.

Segundo as estimativas da Prefeitura de São Paulo, por volta de 400 blocos desfilaram nas ruas da cidade em 2016, número que foi 33% maior que em 2015, quando 300 blocos desfilaram na capital.

Conforme explica, são práticas de resistência ou “re-existência” que acompanham a espontaneidade do carnaval brasileiro, sempre em constante evolução. O carnaval de rua é uma manifestação ritualística em que, em alguns casos, os encontros evocam o passado, acomodando-o às circunstâncias do tempo atual e à rede de relações tecidas pelo enredo cotidiano. Por isso as músicas antigas costumam ser tocadas pelos blocos de rua, ao mesmo tempo em que motivam e celebram articulações com as músicas do presente. No carnaval paulistano, isso acontece, por exemplo no cordão carnavalesco Kolombolo Diá Piratininga, que valoriza sambas e marchas de compositores paulistas do passado. Ou no Bloco do Sargento Pimenta, que transforma músicas dos Beatles em marchinhas. Ou no Bloco Domingo Ela Não Vai, que transforma sucessos do axé-music dos anos 90 em marchinhas de carnaval, entre outros.

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