Direitos humanos

Cidade de São Paulo tornou visíveis os vulneráveis, que desconfiam do Estado

Para secretário, a capital avançou no combate à intolerância, mas precisa articular uma rede de defensores de direitos humanos. Ele se diz otimista sobre a manutenção de políticas pela próxima gestão

pmsp / vermelho / reporter brasil / agência patrícia galvão

Políticas de acolhimento e defesa de dependentes químicos, moradores de rua, migrantes e transexuais marcaram gestão de direitos humanos da prefeitura de São Paulo

São Paulo – Em 11 de janeiro de 2013, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, fez o que chamou de “primeiro ato público” de seu governo, dando posse ao secretário de Direitos Humanos e Cidadania, Rogério Sottili, e falou em “obstinação” por justiça social. Passados quatro anos, com o governo municipal mudando de mãos, a inédita secretaria tem várias políticas públicas implementadas – são 14 temas relacionados – e o desafio, que se mostra permanente, de promover uma cultura por vezes pouco ou mal compreendida. À frente da pasta na fase final, Felipe de Paula avalia que o trabalho foi bem sucedido ao tirar de “invisibilidade” setores tidos como mais vulneráveis da sociedade. Mas considera que o Estado, em suas várias esferas, segue sendo um violador de direitos e por isso, ainda é visto com desconfiança pela população.

Nesta entrevista, ele se mostra otimista sobre a manutenção das políticas públicas implementadas pela Secretaria de Direitos Humanos, que a partir de domingo (1º) estará sob o comando da psicóloga Patrícia Bezerra, vereadora eleita pelo PSDB. “A equipe que vai ingressar agora em 2017 tem sido super atenta, tem entendido muito o que a secretaria fez. É claro que isso vai precisar ser visto na ótica global da prefeitura, não sei se a prefeitura como um todo vai ter esse mesmo entendimento”, comenta. Uma das prioridades refere-se ao trabalho de análise e identificação das mais de mil ossadas encontradas em 1990 no Cemitério Dom Bosco, em Perus, região noroeste da capital.

São medidas para grupos como migrantes, transexuais, população em situação de rua, usuários de drogas, e voltadas para temas como o direito à memória e à verdade. Nem sempre bem recebidas ou devidamente discutidas, mas que para o secretário refletem o esforço de elaborar políticas envolvendo os setores interessados. “Esses grupos, que historicamente nunca tiveram contato com o poder público, deixaram de ser invisíveis.”

A dificuldade maior está em como combater a violência do próprio Estado, por meio de alguns de seus agentes. “Talvez a gente precise articular uma rede de defensores de direitos humanos na cidade. Existe muita gente trabalhando, mas a rede precisa ser integrada”, afirma Felipe, para quem, apesar de tudo, São Paulo tornou-se menos intolerante. Mas casos como o do ambulante Luiz Carlos Ruas, morto em uma estação de Metrô na noite de 25 de dezembro, mostram que ainda existe muito o que fazer.

A seguir, a entrevista completa:

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Felipe de Paula: avanços a comemorar e esperança de continuidade de políticas sob gestão Doria

São Paulo teve ineditismo na criação de uma secretaria específica de direitos humanos. Que avaliação pode ser feita dessa gestão, em termos de uma nova política para uma cidade tão contraditória em seu dia a dia?

Acho que o balanço é muito, muito positivo. A gente aqui tem clareza que não resolve os grandes problemas da cidade, longe disso, mas falta menos. De fato, pouquíssimas cidades tiveram secretaria de direitos humanos, e acho que se mostrou no final de quatro anos uma escolha muito acertada. Porque é muito difícil você ter diálogo em especial com os grupos mais vulneráveis ou invisíveis sem ter alguém pensando 24 horas nessa linha.

Quando a gente pensa em políticas de direitos humanos, em geral, como regra, fala na transversalidade, a secretaria trabalhando para dentro, dialogando com a Secretaria da Educação, da Saúde, todas as demais, colocando os temas e fazendo a disputa simbólica. Isso é fundamental em qualquer esfera, mas no município você agrega conversas com esses grupos, e isso fez muita diferença. Construiu políticas de população de rua, de migrantes, LGBT… Se não tiver contato muito próximo com esses grupos, fica muito difícil de fazer.

Essa política mais permanente contribui de alguma maneira para melhorar a compreensão sobre direitos humanos, que parece um conceito às vezes pouco conhecido ou distorcido na média da população?

Acho que contribuiu, sim, a secretaria hoje tem um peso na cidade, e esse peso teve inclusive um papel importante para a secretaria continuar a existir. Fundamentalmente, quando a gente fala de direitos humanos, fala de promoção e de defesa, duas grandes linhas. E acho que na área de promoção a gente avançou demais, que é a área dos grupos que historicamente não tiveram nenhum contato com o poder público, tiveram muita dificuldade de relacionamento, não tinham uma porta para bater, não conseguiam ter seus direitos garantidos.

Esses grupos hoje deixaram de ser invisíveis. Por exemplo, se você pensar em migrantes, que pelos números mais conservadores são quase 600 mil pessoas em São Paulo, grandes capitais do Brasil não têm esse número. São pessoas que até 31 de dezembro de 2012 não tinham com quem dialogar do ponto de vista público na cidade. Mostrar a essas pessoas que elas têm direitos, que elas podem acessar serviços, que têm de exercer sua cidadania, podem participar das decisões da cidade, mostra um pouco essa linha de promoção de direitos humanos no sentido de incremento de cidadania, de redução de desigualdades. Nesse ponto avança bem.

E no outro?

Agora, a linha de defesa, que é a mais grave, que São Paulo mais sofre, que precisa avançar nos próximos quatros anos, a gente teve muita dificuldade, porque a cidade é difícil mesmo, em especial nas regiões periféricas. A violência institucional, de Estado, ainda é muito forte no país e na cidade de São Paulo.

A gente se colocou como uma fronteira importante de debate com o poder público, com as polícias, com a Guarda Civil, a Polícia Militar, para deixar claro que a gente não aceita violação de direitos, tomamos algumas medidas para deixar claro que aqui queremos o respeito à legalidade e aos direitos fundamentais de todos. Ficou uma marca forte, mas ainda precisa avançar muito.

Para além do balcão de atendimentos, fizemos mais de 6 mil atendimentos, as ações que a gente levou ao Ministério Público contra a violência policial, por exemplo, nas manifestações, contra o excesso da polícia… Todas essas ações simbolizaram um pouco o que a gente está falando. Talvez a gente precise articular uma rede de defensores de direitos humanos na cidade. Existe muita gente trabalhando, mas a rede precisa ser integrada. Acho que é um bom desafio para os próximos quatro anos.

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Rogério Sottili, o primeiro secretário de Direitos Humanos de Haddad: combate à intolerância

Logo no início da gestão, houve um problema envolvendo a Guarda Civil na Praça Roosevelt (em 4 de janeiro de 2013, um guarda deu uma “gravata” em um skatista). Houve receptividade da GCM, da instituição e seus integrantes, no plano municipal, e da Polícia Militar, no plano estadual, em relação a essa preocupação?

Tenho certeza de que na Guarda, sim. Logo no início do governo, o prefeito sinalizou que a prática seria diferente. A gente aqui, pela Coordenação de Educação em Direitos Humanos, formou 6 mil guardas municipais. São 6.200. Um curso forte, além de uma série de atividades em conjunto.

É claro que quando eventos não esperados acontecem, e acontecem – são 6 mil guardas –, a gente precisa de uma investigação forte, de investigação, processo, resgatado todo o processo legal. Mas no geral, a Guarda hoje tem um conhecimento e um entendimento dessa temática bastante forte.

É simbólico que a Guarda tenha criado, por exemplo, uma inspetoria de redução de danos que atua na região da Luz, com 250 GCMs. Isso fez parte de toda a construção que a gente fez, não só (a secretaria de) Direitos Humanos, mas a Saúde, a Assistência, para que a Guarda se colocasse de uma forma diferente naquele território. Substitui a abordagem violenta e passa a ser uma abordagem de fato preventiva e de auxílio ao cidadão.

E com a PM?

Com a PM, a gente tem uma relação importante com a Secretaria de Segurança Pública. Há protocolos, todas as denúncias que a gente recebe manda para a secretaria, para a ouvidoria das polícias. Isso funciona bem, tem uma relação profícua, mas a gente não vai deixar nunca de fazer as denúncias.

De fato, sabe-se na cidade de São Paulo que a violência policial é bastante forte e continua existindo. Tem de denunciar e fazer uma discussão pública a esse respeito. Não significa dizer que a polícia, enquanto instituição, todos os seus agentes atuam dessa forma. Significa dizer que os casos são muito numerosos, e que não dá para aceitar isso em 2016.

Ainda é um grande fator de queixas?

Certamente, certamente. A gente tem relação muito forte com as ouvidorias, da polícia, da Defensoria Pública, mas há, sim, um número razoável de denúncias de violência policial.

Sobre os migrantes, foi criada recentemente uma política municipal para o setor. Também foi bem recente o plano municipal de educação, uma questão considerada importante. Mas foram coisas mais para o fim da gestão. É muito difícil implementar determinadas políticas, no que depende não só da prefeitura, mas também da Câmara?

A gente lida com temas que são difíceis per si. Não é simples em nenhum lugar – e não vai ser em São Paulo – avançar em determinadas políticas. Em direitos humanos, a intersetorialidade é muito importante. Depende de outras secretarias, então precisa fazer amarras institucionais que sempre levam tempo.

Há todo um trabalho de convencimento de parlamentares quando a gente aprova nova leis, como a política de migrantes, que é a primeira no Brasil. Mas também há um ponto que para a gente é um ponto chave positivo, mas que demanda tempo, que é a construção sempre participativa.

Por exemplo, a política de migrantes, que chega em 2016 no seu ápice, com a aprovação da lei em junho, com decreto regulamentar agora em dezembro, criando Conselho Municipal, garantindo centro de referência, cadeira nos 32 conselhos participativos, a gente só chega em 2016 porque lá em 2013 fez uma conferência municipal com quase 800 pessoas, com quase 30 nacionalidades, para detectar quais eram os principais problemas e como a gente poderia avançar…

Essa construção participativa, que a gente acha que é o correto a fazer. O tempo do governo de portas fechadas, da decisão individual, acabou. Agora, o governo funciona como um grande catalisador, para conversar com todo mundo. Isso demanda tempo.

Então, a gente começa com uma conferência em 2013, cria uma coordenação em 2014, começa a fazer políticas estruturantes e também políticas menores, mas que fazem diferença, como a bancarização, que facilita o acesso à conta bancária e faz toda a diferença na vida do migrante, para ele não guardar mais o dinheiro em casa, para não ter risco de segurança.

Você deve lembrar o caso do menino Brayan (Brayan Capcha, de 5 anos, filho de migrantes bolivianos, foi morto com um tiro na cabeça durante assalto na casa da família em São Mateus, zona leste, em maio de 2013). Esses assaltos eram recorrentes, porque ele não consegue abrir a conta no banco e todo mundo sabe que o dinheiro está em casa, isso facilitava a ação de furto e roubo. Então, essa construção coletiva leva tempo. Eu acho isso bom, você cria uma política consolidada. Hoje, qualquer mudança vai custar muito, porque as pessoas participaram desse processo. Acho que você tem mais legitimidade e mais peso para o que foi feito.

E sobre o programa De Braços Abertos, por exemplo, que causou tanta polêmica e críticas, que avaliação pode ser feita?

Acho que o Braços Abertos sinalizou um jeito diferente de liderar com a política sobre drogas, e acho que as avaliações internacionais, como a da Open Society, mostram que é um programa bem sucedido. É importante dizer, para avaliar um programa desse tipo, a gente precisa saber qual é o parâmetro. O que é qualidade num programa desse, por que a gente considera bem sucedido? Se você perceber que 67% aceitaram, que dois terços das pessoas que estão lá diminuíram drasticamente o uso problemática de substâncias e tiveram melhora nas condições de vida, para nós é um indicador importante. Também é um programa que pela primeira vez entende a questão da droga não como estopim, mas como consequência da vulnerabilidade social.

Assista também a reportagem da TVT

Em geral, as abordagens mais tradicionais enxergam a droga como problema central, que a partir daí gera uma desagregação, uma desordem na vida social do indivíduo. Aqui, a gente começa o Braços Abertos invertendo essa lógica: ele entra numa situação de uso problemático a partir do momento que ele não tem renda, trabalho, saúde, moradia. Evidente que é um programa novo, está com dois anos e meio, se baseia muito nas evidências, então sofreu ajustes de rota ao longo do seu caminho, e é bom que seja assim, a política pública séria tem de ser assim.

Mas eu tenho muita clareza que é um programa bastante importante, o Brasil tem visto assim, o mundo tem visto assim, e que pode, sim, ser mantido, precisa ser mantido. Não significa que é a única alternativa possível e que não possa ser complementar a outras iniciativas, como o Recomeço. Mas eu acho que ele sinaliza outra lógica de lidar com a questão, que precisa ser bem compreendida.

Já falamos um pouco sobre isso, mas como foi a relação com o governo do estado nas políticas que se relacionam?

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Eleitor vereador, Eduardo Suplicy substituiu Sottili e foi o segundo secretário da pasta: conversas com Doria

Na maioria das vezes a gente teve uma boa relação. Por exemplo, um mês atrás, junto com a Defensoria Pública e também com a Secretaria (estadual) de Justiça e Cidadania, a gente fez um mutirão para retificação dos registros civis de mulheres e homens trans. Isso derivou do Transcidadania, que é um programa pioneiro da prefeitura, mas quando a gente conseguiu levar para o estado simboliza uma boa parceria, uma boa sinergia.

Acho que a gente trabalhou bem em várias áreas, e nas áreas que a gente teve conflito fizemos questão de publicizar esse conflito sem politizar no sentido negativo. No caso da violência policial, que a gente não abre mão de reiterar, a gente sempre sinalizou à Secretaria de Segurança o que estava acontecendo. Nunca tivemos nenhum problema mais grave, eventualmente, de divergência de entendimentos. É nosso papel mostrar para eles que há um problema na política de segurança do estado de São Paulo.

E a transição de governo? Há expectativa de que os programas possam ser mantidos, existe receio de interrupção?

A transição tem sido muito positiva. A secretaria tem 14 áreas, o que não facilita muito as coisas, são muitos temas. Memória e verdade, LGBT, criança e adolescente, idosos, migrantes, trabalho escravo… Mas a equipe que vai ingressar agora em 2017 tem sido super atenta, tem recebido todos os documentos com a maior transparência possível, tem se colocado para ouvir esses processos de construção e a importância desses processos, tem entendido muito o que a secretaria fez.

Acho que a gente tem uma boa chance de ter uma manutenção e, inclusive, avanços na política de direitos humanos da cidade. É claro que isso vai precisar ser visto na ótica global da prefeitura, não sei se a prefeitura como um todo vai ter esse mesmo entendimento. Mas não há nenhum sinal até o momento de término, de fechamento, de alguma política.

Se isso ocorrer, vai ser nosso papel como agente público que passou por aqui fazer a defesa do que acha correto, aplaudir eventuais alterações de rota que pareçam adequadas e também denunciar o que achar inadequado. Faz parte do processo da democracia.

O orçamento para o ano que vem pode restringir alguma ação?

Na verdade, para 2017 a gente conseguiu um ponto importante, que foi pela primeira vez na história da secretaria inverter o padrão de gastos. A gente gastava 55% com a parte administrativa e 45% com áreas finalísticas. A gente conseguiu inverter essa lógica, a maioria do orçamento enviado para a Câmara é finalístico, está nas coordenações e não mais no dia a dia.

Há uma redução de orçamento que deriva de algumas decisões administrativas importantes, como, por exemplo, o orçamento dos conselhos tutelares e das subprefeituras. Isso aparece como uma redução grande, mas na verdade é uma decisão tomada previamente, não decidida pela Câmara, por assim dizer.

Acho que o orçamento está adequado, honestamente. Claro que com a vinda das secretarias de Políticas de Igualdade Racial e de Políticas para as Mulheres (que hoje têm pastas específicas), a gente precisa ver como isso vai ser novamente balanceado. Mas acho que é um orçamento, dadas as condições orçamentárias que a gente tem, bastante adequado para continuar. Não é um elemento chave, o elemento chave é vontade política.

E Perus, que é considerada prioridade e aparentemente está perto do desfecho? A secretaria tem esperança de que esse trabalho não sofra interrupção, como já aconteceu outras vezes?

Tem esperança, tem expectativa, e vai lutar muito para que continue. É importante dizer, é um trabalho tripartite, entre prefeitura de São Paulo, Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, do Ministério da Justiça.

Da parte da prefeitura, que retoma esse trabalho no nível municipal depois de quase 20 anos, e faz a mudança das ossadas, finalmente sai do Araçá e vai para a Unifesp, briga para que o Caaf (o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense) possa existir na Unifesp, faz toda a articulação com as famílias, colhe o material genético das famílias, Para além de uma série de outras ações, a prefeitura dobrou o seu orçamento (para 2017), a gente mandou para a Câmara R$ 880 mil, o que é bem importante, e ainda conseguiu uma emenda adicional. Então, salvo engano, o orçamento final, só para Perus, é de R$ 920 mil, em nível municipal, que é o maior valor que a gente já teve.

Acho que isso sinaliza que o trabalho é bem feito e a importância do tema para a gente.

Do lado da Unifesp, temos um parceiro muito forte. Mesmo sem o repasse do Ministério da Educação, eles mantiveram o Caaf em funcionamento, mantiveram o pagamento dos peritos, a relação com a gente. Aliás, a gente acabou de doar uma série de equipamentos (scanner de crânio, máquinas fotográficas), entrega agora.

E a Comissão também é um grande parceiro. O que a gente espera que a Comissão consiga é mais orçamento do ponto de vista federal. Só que o trabalho está na metade, ou está se encaminhando para o final, e uma interrupção agora seria muito maléfica. A gente espera que em um ano, um ano e meio, a gente consiga acabar, desde que não tenha interrupção orçamentária.

Do ponto de vista da prefeitura, a base orçamentária está dada. Resta a decisão política de manter esse processo. Importante dizer: nós notificamos o prefeito eleito a respeito do trabalho de Perus, o senador Suplicy (o ex-secretário e vereador eleito Eduardo Suplicy) também fez conversas com o novo prefeito, então todos sabem da importância, da relevância do tema. Espero que eles deem sequência a esse trabalho, que é histórico para a cidade.

E do ponto de vista da União? A secretária Flávia Piovesan, na audiência pública (realizada em 28 de novembro), disse que se empenharia ao máximo para que os recursos venham. Pode não haver desconfiança da parte dela, mas talvez do governo que ela integra.

Não temos dúvida que a Comissão Especial é grande parceira nesse processo e que a Secretaria de Direitos Humanos (da Presidência da República) sempre foi parceira. O fato é que essa mudança – de a secretaria depender do Ministério da Justiça, inclusive orçamentariamente, coloca em risco uma série de atividades e tarefas. O GTP (Grupo de Trabalho Perus) é um deles.

A gente tem confiança que a briga interna pelos recursos dentro do ministério tenha êxito do lado dos direitos humanos. É o correto a se fazer. Mas, de fato, a gente depende agora do Ministério da Justiça e da discussão interna que é feita lá.

O momento político do Brasil pode representar um retrocesso na discussão de direitos humanos?

Acho que vai. O país tem dificuldade com os dois pilares centrais da nação, que é a ideia de democracia e a ideia de República. A ideia de democracia sofreu um duro ataque em 2016, para dizer o mínimo. E a ideia de República a gente nunca lidou bem com ela, a mistura entre público e privado ainda persiste

Agora, toda vez que a gente tem uma crise, econômica, aliada agora a uma crise política, que sempre impacta o mais vulnerável, aquele que de fato mais necessita de políticas sociais, da presença do Estado, a gente espera um aumento de violação de direitos. A gente já sente isso nas demandas que a gente tem, nas denúncias. E tem muito receio de que essas violações aumentem. Por isso que esta secretaria se torna ainda mais importante.

É fundamental entender que em momentos de crise, de aumento de violência como um todo, e institucional, o papel de defender é central e pode ser exercido pelo município. Então, esta secretaria vai ter um papel muito forte de que as violações continuem a ocorrer ou aumentem na cidade. É um trabalho por muitas vezes quase invisível, é uma política pública que aparece só no varejo, mas é fundamental. É o que a gente espera da secretaria para 2017.

Voltando à questão inicial, a cidade se tornou um pouco mais inclusiva, um pouco mais humana, ou não? O episódio do ambulante (Luiz Carlos Ruas, assassinado em 25 de dezembro) mostra que o caminho ainda é muito distante?

O caminho ainda é muito longo. Falta muito, mas falta menos. Acho que a cidade é menos intolerante. Se a gente colocar em perspectiva a visibilidade que mulheres, homens e trans, por exemplo, tinham em 2013, para a visibilidade de direitos básicos, que é o direito de existir, de não ser violentado, de usar o próprio nome, acho que é uma diferença gritante. Isso significa uma política avançada.

O mesmo vale para migrantes, idosos, defesa do trabalho decente, combate ao trabalho escravo. Acho que a cidade, se tornou, sim, mais humana, por uma série de grupos e como um todo. Esse caso simboliza alguns elementos que são cotidianos no nosso trabalho, a persistência da transfobia, da homofobia, sinaliza um desrespeito muito grave àquelas pessoas em situação de rua, ao trabalhador informal.

Uma série de elementos, diz respeito à falta de solidariedade que infelizmente marcou esse caso com muita clareza. Acho que a gente conseguiu construir as bases para que a cidade avance nesse processo. Mas não dá para descuidar. Não dá para aceitar nenhum retrocesso.

Na divulgação do relatório da comissão da verdade (em 15 de dezembro), se falou muito sobre o papel do Estado, que certas ocorrências ainda continuam, como os desaparecimentos na cidade. O Estado ainda é visto com desconfiança?

É visto e ainda é um violador de direitos, em todas as esferas, quando inviabiliza ou dificulta o acesso a serviços, quando não garante direitos básicos. Nosso trabalho é para dentro, mostrar ao Estado que dá para avançar, que não dá para permitir violação de direitos quando a gente está na relação com o cidadão. E também montar essa rede de defesa. Como regra, essa defesa vai ser contra o próprio Estado.