Impunidade

Falta de controle externo pelo MP está na raiz da violência policial no Brasil

Ministério Público, que vive momento de protagonismo no combate à corrupção, poderia fazer a diferença, mas relega o controle das polícias a um segundo plano, afirmam pesquisadoras

marcelo camargo / Memória EBC

Com altos índices de letalidade em suas operações, polícia brasileira faz de cidadãos vítimas

Rio de Janeiro – Uma das mais letais do planeta, a polícia brasileira tirou a vida de 3.345 pessoas em 2015, em uma média de nove assassinatos por dia, segundo levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Este alto índice de letalidade, dirigido basicamente às populações marginalizadas e de baixa renda, poderia ser minimizado se houvesse um eficiente sistema de controle externo das atividades policiais, mas na prática isso não existe no país. Incumbido desta função pela Constituição de 1988, o Ministério Público, que vive momento de protagonismo no combate à corrupção, poderia fazer a diferença, mas relega o controle das polícias a um segundo plano, como revelou a pesquisa “Ministério Público: guardião da democracia brasileira?”, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes.

“Há falta de interesse do Ministério Público nessa área, e isso é algo muito grave para a democracia brasileira. Em relação ao controle da polícia, o Ministério Público não está cumprindo o seu papel de guardião da democracia. Não basta protagonismo nestes casos de corrupção. A democracia quer muito mais do Ministério Público”, diz a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC e coordenadora-geral da pesquisa.

O levantamento, feito em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ouviu 899 promotores e procuradores em todo o Brasil e revela que somente 7% dos membros do MP se dedicam com exclusividade às atividades de controle externo da polícia. Vinte e quatro por cento dos entrevistados afirmaram atuar nesta área de forma esporádica, enquanto 69% dos promotores nem sequer tratam disso em seu dia-a-dia profissional. A pesquisa revela ainda que, embora determinado pela Constituição Federal, o controle externo da polícia não é considerado como uma tarefa prioritária para 88% dos promotores e procuradores, ao mesmo tempo em que 42% deles reconhecem como “péssimo” o desempenho do MP nesta área.

Também coordenadora da pesquisa, a professora e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da UFMG Ludmila Ribeiro afirma que o controle externo das atividades policiais nem sequer é mencionado em 15 dos 27 websites nacionais ou regionais do MP: “Essa é a área que ainda se apresenta como o maior desafio para o Ministério Público. É uma promessa não cumprida pela Constituição de 88. Poucos promotores a consideram prioritária”, diz.

Um dos motivos desse não cumprimento de uma determinação constitucional, diz Ludmila, pode ser explicado pela excessiva proximidade existente entre Ministério Público e as polícias no Brasil: “Os comentários feitos pelos próprios promotores no questionário online e também nos grupos de discussão mostraram que há uma grande cumplicidade entre o Ministério Público e a polícia. O Ministério Público depende do trabalho da polícia para fazer o seu próprio trabalho na área criminal. Muitas vezes, a denúncia do promotor tão-somente repete o relatório final do delegado. Por isso, é muito difícil o Ministério Público ter uma proatividade no sentido de verificar a ocorrência de violência policial”.

Para Julita Lemgruber, por ser uma instituição altamente elitizada, o MP em boa parte abandonou a missão de cuidar dos elos mais frágeis da sociedade brasileira e acabou se adaptando aos anseios da classe dominante: “A sociedade não está preocupada com quem a polícia está matando. A polícia mata o pobre, o negro e o favelado. Os 60 mil homicídios que acontecem no Brasil anualmente não são homicídios de pessoas que moram nos Jardins ou na zona sul do Rio de Janeiro. Quem morre vítima de violência policial é quem não tem voz na sociedade. A elite, a classe dominante, não está interessada na vida dessas pessoas”, diz.

A socióloga afirma que o Ministério Público reflete o interesse dominante na sociedade: “Se houvesse pressão da sociedade para que a polícia fosse responsabilizada por seus atos de violência, certamente o Ministério Público teria uma posição mais proativa. O Ministério Público não pode apenas refletir o que a classe dominante espera da polícia”.

Preocupação seletiva

Na opinião de Ludmila Ribeiro, a preocupação do Ministério Público com os direitos humanos é seletiva: “O que o Ministério Público acaba fazendo, de uma maneira muito residual, é acompanhar essas violações de direitos humanos mais dramáticas ou mais midiáticas. Isso nos ajuda a entender por que a polícia brasileira é uma das mais violentas do mundo. Se o Ministério Público – que é a instituição que tem a atribuição constitucional do controle da atividade policial – tem dificuldades ou reservas para a realização desta função, isso acaba motivando novos atos de violência policial. Quem os comete sabe que não vai ter punição”, diz.

Mesmo em casos que chamam a atenção da mídia, ressalta Julita Lemgruber, a atuação do MP tem sido tíbia. Ela cita o exemplo do caso do menino Eduardo de Jesus Ferreira, que foi morto na porta de casa por um tiro de fuzil disparado por um policial militar no Complexo do Alemão em abril de 2015. Por decisão da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio anunciada em 29 de novembro, a ação penal foi arquivada: “Temos esse caso recente no Rio de Janeiro do menino Eduardo, que foi arquivado com a chancela do Ministério Público. Um menino de dez anos que foi fuzilado pela Polícia Militar teve o seu caso arquivado, e a gente não houve falar em reação do Ministério Público. Este seria um caso para o Ministério Público se pronunciar no dia seguinte”, diz.

“Essa atuação nos casos de corrupção da Lava Jato e outras transformaram os membros do Ministério Público em salvadores da pátria, em heróis nacionais, quando esses direitos mais básicos, como o direito à sobrevivência e o direito à vida, são absolutamente relegados a uma importância muito menor pelos promotores e procuradores”, lamenta a socióloga.

Ouvidorias

Julita afirma que nem mesmo iniciativas “que criaram a expectativa de que a coisa iria avançar” e que visavam a ajudar o MP na tarefa de controlar a atividade policial tiveram o apoio dos promotores: “Em meados dos anos noventa surgiram as Ouvidorias de Polícia. Naquele momento, a gente acreditava que esse mecanismo de controle externo da polícia seria complementar ao trabalho do Ministério Público. Mas, o que a gente viu ao longo dos anos foi que essas ouvidorias não emplacaram”, diz.

Segundo a socióloga, a maioria das pessoas nem sabe que existe Ouvidoria de Polícia: “O que a gente tem ao longo desses últimos 20 anos é uma estratégia de controle externo da polícia que jamais realmente se constituiu em um organismo forte ao passo em que o Ministério Público também jamais se mostrou verdadeiramente interessado nesta área. As Ouvidorias não decolaram e o Ministério Público ficou fazendo figuração”, diz Julita, que foi a primeira ouvidora de Polícia do Rio.