Vlado, Santo Dias, povo da rua

Em ato por Dom Paulo, protestos e lembranças de apoio em tempos difíceis

Arcebispo emérito de São Paulo foi homenageado no Tuca por seus 95 anos. 'Meu pai, amigo, irmão, pastor', diz Ana Dias. Auditório canta com ele a Oração de São Francisco de Assis e repudia Temer

Fabio Braga/Folhapress

Arcebispo emérito de São Paulo, o cardeal dom Paulo Evaristo Arns foi homenageado pelos seus 95 anos, completados em 14 de setembro

São Paulo – Dom Paulo Evaristo Arns permaneceu sorridente enquanto, ao lado do advogado Mário Simas, recebia cumprimentos e aguardava na primeira fileira do auditório o início do ato, na noite de ontem (24), no Teatro da Universidade Católica, o Tuca, na zona oeste de São Paulo. Com gritos de “Fora, Temer”, subiu ao palco às 18h20, amparado e sorridente, sempre saudando o público com a mão direita e, às vezes, com os dois braços abertos. Outro advogado que se notabilizou na defesa de presos políticos, Luiz Eduardo Greenhalgh lembrou de como dom Paulo, em 1979, abriu passagem entre policiais para entrar no Instituto Médico Legal, onde estava o corpo do metalúrgico Santo Dias da Silva, assassinado durante piquete na Sylvania, em Santo Amaro. Lá dentro, falou aos soldados: “Olhem o que vocês fizeram!”. Durante a noite, se repetirão protestos contra a ditadura e contra o atual governo.

Na homenagem pelos 95 anos do cardeal, completados em 14 de setembro, também muito se falou de outro assassinato, o do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, que completa 41 anos nesta terça-feira. Clarice Herzog estava no Tuca ontem, ao lado do filho mais velho, Ivo. Ana Dias, viúva de Santo, também. “Para falar de Dom Paulo é muito difícil e muito fácil. Ele é meu pai, meu amigo, meu irmão, meu pastor”, disse Ana, lembrando do apoio dado pelo cardeal nos tempos do movimento contra a carestia. “Nós nunca caminhamos sozinhos.” E da intervenção do religioso no triste episódio de Santo Dias. “Se não tivesse Dom Paulo, não teria enterro.”

Se os momentos de enfrentamento da ditadura foram constantemente lembrados, muitos também exaltaram a presença do cardeal em defesa da população mais vulnerável. “Ele é descendente de alemão, mas o rosto dele é da periferia de São Paulo”, diz Dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo emérito de Blumenau (renunciou em 2009 pelo limite de idade), chamando Dom Paulo de “querido garoto de 95 anos” e, em trocadilho, falando sobre os efeitos perversos do “capetalismo liberal”. Dom Angélico e Dom Paulo (natural de Forquilhinha-SC) trabalharam juntos durante 23 anos.

Luta coletiva

Primeiro presidente da Comissão Justiça e Paz, o jurista Dalmo de Abreu Dallari diz considerar Dom Paulo “um dos mais importantes agentes da implementação do humanismo na sociedade brasileira”. E lembrou de divergências entre as comissões do Rio de Janeiro e de São Paulo, por causa das quais, conta, chegou a levar um “pito” no Rio, que discordava da política paulista de denunciar abusos e crimes de agentes da ditadura. “Ele continua dando expressividade à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Eu, como ser humano, agradeço calorosamente a Dom Paulo.”

Durante a cerimônia, o cardeal ganhou presentes, como camisetas do Movimento Nacional da População de Rua e da Democracia Corintiana, além de um boné do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que pôs na cabeça por alguns instantes, gesticulando, os braços abertos. Representantes do Levante Popular da Juventude e do MST sobem cantando Coração Civil, de Milton Nascimento. “Na luta coletiva a gente segue honrando a sua história”, dizem a Dom Paulo, para em seguida cantar, ao lado do cardeal, a Oração de São Francisco de Assis (“Senhor/ Fazei de mim um instrumento de vossa paz”). O auditório acompanha.

O jornalista Juca Kfouri, corintiano notório, puxou o coro contra o atual presidente. Lembrou ser “filho da USP e sobrinho da PUC” – Nadir, sua tia, que morreu  há cinco anos, foi a primeira reitora da universidade católica (em duas gestões, de 1976 a 1984). Ela o chamou de “impertinente” ao saber que o sobrinho havia perguntado a Dom Paulo se ele realmente acreditava em Deus. O cardeal o chamou de atrevido. Na noite de ontem, disse que cometeria outro atrevimento e impertinência e dirigiu-se ao arcebispo: “O senhor é, acredite ou não, eterno”. Ao seu lado, o ex-jogador Wladimir, um dos líderes da Democracia Corintiana entre os atletas, lembrou que a equipe foi recebida por Dom Paulo pouco antes de acabar com o “jejum” de 22 anos sem títulos, em 1977: “A gente poderia jogar com a seleção do mundo que não perderia”.

Apóstolo e profeta

Ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Direitos Humanos, José Gregori também destacará o papel de resistência democrática desempenhado por Dom Paulo – mas também o de articulador. “Quero dizer uma coisa que certamente repetirei daqui a cinco anos, quando a gente comemorar o centenário: foi possível que se compusesse esse painel (de resistência) porque havia um tecelão, que era ao mesmo tempo apóstolo e profeta”, afirmou, citando uma frase dita, contou, por Leonel Brizola, e arrancando risos: “Se Dom Paulo não fosse bispo, seria o meu chefe”. Para complementar, dirigindo-se ao cardeal: “Dom Paulo, o senhor foi o chefe da redemocratização e dos direitos humanos deste país”.

O jurista Fábio Konder Comparato cita a importância do arcebispo para o pensamento da Igreja Católica e sua atuação social, ao afirmar que a CNBB apoiou o golpe de 1964 e que a Igreja brasileira, historicamente, não se manifestou contra a escravidão no país. “Eu afirmo que Dom Paulo converteu a Igreja no Brasil”, diz Comparato. Ele contou ter ficado “encabulado” ao ser convidado para a organizar a Comissão Justiça e Paz. “Disse a ele: ‘Dom Paulo, sou um mau católico’. Ele respondeu: ‘Isso não tem a menor importância. Eu quero saber se o senhor está disposto a defender todas as vítimas (perseguidos políticos) e parentes das vítimas'”, lembrou. “O coração de uma religião é uma ética, não é a dogmática”, afirmou o jurista, citando o princípio do amor ao próximo.

O advogado Fermino Fecchio, ex-ouvidor nacional da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e da Polícia do Estado de São Paulo, ressaltou a importância da memória. “A história de resistência da nossa comunidade é patrimônio da nossa comunidade, e por isso precisa ser preservada”, afirmou, citando ainda o Centro Santo Dias de Direitos Humanos (que presidiu) e o “pequenino e aguerrido” Clamor – o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, criado em 1978, e também nome de um boletim do grupo.

Coordenador do Movimento Nacional da População de Rua, Anderson Lopes lembrou da preocupação de Dom Paulo com a implementação, em São Paulo, da Carta de Puebla, com as conclusões de encontro do episcopado realizado em 1979 no México e da opção preferencial da Igreja pelos pobres, e falou sobre a criação do Vicariato Episcopal para Pastoral do Povo da Rua, coordenado pelo padre Júlio Lancellotti – que estava na plateia durante o ato de ontem.

Anderson recordou que Dom Paulo, a pedido do povo da rua, usou um prêmio para erguer uma Casa de Oração, aberta até hoje no bairro paulistano da Luz, na região central de São Paulo. E lembrou de um encontro do movimento com o então cardeal-arcebispo debaixo de um viaduto: “Esperava uma comitiva de carro. Dom Paulo saiu da Casa Episcopal e veio a pé”.

Livro e Papa

O ato de ontem marcou o “pré-lançamento”, ou relançamento, do livro Dom Paulo – Um homem amado e perseguido (Expressão Popular), cuja primeira edição é de 1999, das jornalistas Evanize Sydow e Marilda Ferri. “O senhor sempre caminhou conosco”, disse ao arcebispo o coordenador da Pastoral Operária, Paulo Pedrini, que destacou a presença, na plateia, de Célia, viúva de Waldemar Rossi, militante operário, que morreu em maio. O recurso obtido com as vendas do livro será destinado a uma exposição prevista para o primeiro semestre de 2017, no Memorial da Resistência.

Quase ao final, chegou uma mensagem do Vaticano, assinada pelo presidente do Conselho Justiça e Paz, cardeal Peter Turkson, chamando o arcebispo de “exemplo luminoso”. Com voz forte, Dom Paulo falou por alguns minutos, citando Santo Dias, o Papa Paulo VI, que o nomeou bispo, e agradecendo “meus amigos todos”.

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