rio 2016

Privatização do espaço público e dívida formam legado negativo das Olimpíadas

Urbanista Christopher Gaffney critica prefeitura pela “transferência de dinheiro público para as elites locais e empresas internacionais” e “gasto de R$ 40 bilhões em estruturas projetadas para poucos'

futura Press/Folhapress

Em protesto, em meados de agosto, uma favela foi construída para chamar atenção de turistas sobre o legado olímpico para os pobres

Rio de Janeiro – O geógrafo e urbanista norte-americano Christopher Gaffney é autor de diversos estudos sobre os impactos sociais e ambientais causados nas cidades que receberam grandes eventos esportivos. Morou no Rio entre 2009 e 2015, período em que lecionou no programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrou a equipe da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que conduziu pesquisas nas 12 cidades-sede da Copa do Mundo de 2014.

Conhecedor e amante do Rio – ele fala “nós” quando se refere à população carioca –, Gaffney dedicou-se a estudar as mudanças sofridas pela cidade desde a realização dos Jogos Panamericanos de 2007 e, na contramão do discurso dominante na mídia e no poder público, não hesita em dizer que o balanço do chamado “legado olímpico” é negativo.

Gaffney, que hoje leciona na Universidade de Zurique, na Suíça, cita a “privatização do espaço público e a dívida para construir uma farra de três semanas” como principal aspecto do legado negativo das Olimpíadas, e critica a prefeitura do Rio por promover a “transferência de dinheiro público para as elites locais e empresas internacionais” e “gastar R$ 40 bilhões em estruturas projetadas para poucas pessoas”.

O especialista também fala das tensões entre a cidade olímpica, “construída para o evento através de um modelo de negócio imposto pelo Comitê Olímpico Internacional (COI)” e a cidade não olímpica, esquecida pelos projetos de mobilidade urbana e esquemas especiais de segurança pública: “O projeto pós-olímpico deve integrar a cidade olímpica à cidade não olímpica”, diz Gaffney.

Leia a íntegra da entrevista


Qual sua avaliação sobre o tão falado “legado olímpico” que fica para a cidade do Rio de Janeiro após o término dos Jogos?

Temos que recuperar o que significa a palavra legado. Na boca dos organizadores da Olimpíada, o evento é sempre uma coisa boa. Mas, também pode haver legado negativo. Na minha opinião, o balanço dos grandes eventos no Brasil – e no Rio de Janeiro, em particular – vai ser bastante negativo.

Quais os aspectos desse legado negativo?

A dívida, principalmente. No que se refere à Copa do Mundo de 2014, temos projetos espalhados pelo Brasil não cumpridos e superfaturados. Elefantes brancos andando e comendo o dinheiro público em Cuiabá, Natal, Manaus, Brasília, Fortaleza, Recife… Há projetos de transporte sequer cumpridos ou mal contemplados. No Rio de Janeiro, vimos a privatização do Maracanã, a destruição de um patrimônio histórico. Os melhores torcedores do mundo foram transformados em meros consumidores de um espetáculo. Estamos perdendo esse panorama cultural, e ninguém fala disso. Hoje há adolescentes no Rio que não têm condições econômicas de ir ao Maracanã torcer para seu time. Essa é uma perda fantástica que tivemos com a Copa.

Em relação à Olimpíada, o maior problema é a privatização da cidade, que ainda está em curso. A transferência de terrenos urbanos públicos para as mãos privadas na zona portuária, na Barra. A privatização do espaço público e a dívida para construir essa farra de três semanas. Daqui a pouco todo mundo vai esquecer a Olimpíada e não vai ter dinheiro para desmontar a Arena do Futuro para transformá-la em quatro escolas públicas, como foi prometido pela prefeitura. Não tem instituição do legado para garantir que esses projetos sejam realizados. Eu vejo muita promessa, muita falta de contabilidade, e um futuro muito incerto para esses projetos que foram implantados para a Olimpíada no Rio.

O senhor mora em Zurique, uma cidade onde o transporte público é extremamente organizado e funcional. Falta muito para o Rio chegar ao mesmo nível da cidade suíça?

Para o Rio chegar ao nível de Zurique faltam dinheiro e compromisso social com o transporte público. Quando eu fazia a pesquisa sobre o BRT aqui no Rio eu falei com muita gente na Barra da Tijuca, com as empresas, etc. Eles sempre me falavam que o BRT é um transporte público que serviria para as classes C e D. Mas, eles, como classe A, jamais entrariam em uma composição do BRT. Então, tem uma ideologia – brasileira, em particular – que diz que o público é ruim e o privado é bom. Se você puder privatizar sua vida, privatize. Transporte, educação, saúde, tudo você privatiza. Não vejo essa ideologia mudar em nada aqui no Brasil. Então, o BRT é para o pobre ter condução para ir à Barra da Tijuca trabalhar. Não é para o rico.

Todos esses projetos de moradia que foram construídos para a Olimpíada são condomínios fechados que têm vaga para um ou dois carros. Há um estímulo ao uso do carro. E, mesmo com o projeto do BRT, abre-se mais espaço para o carro circular na cidade. Então, eu não vejo que o Rio de Janeiro mudou de ideia sobre o valor do transporte público, não vejo projetos inteligentes sendo construídos na cidade. Vejo uma farra de dinheiro público para criar projetos para inglês ver. E, agora que o inglês já viu, ninguém mais quer saber.

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‘O BRT é para o pobre ter condução para ir à Barra da Tijuca trabalhar. Não é para o rico’

Em todo caso, o Rio não será mais o mesmo após as Olimpíadas…

Não me lembro de haver na história uma cidade que tenha recebido três grandes eventos em tão curto prazo, começando com os Jogos Panamericanos de 2007, passando pela Copa em 2014 e chegando à Olimpíada este ano. Houve também outros grandes eventos, como os Jogos Mundiais Militares, a Jornada Mundial da Juventude e a visita do papa, a Rio+20. A narrativa agora é de que a Olimpíada foi um sucesso. Mas temos de perguntar: sucesso para quem? Em quais condições e por quanto tempo vai durar essa sensação de sucesso? Para mim, foi um sucesso operacional a experiência do evento em si. Não foi tanto um sucesso para os moradores do Complexo do Alemão e das favelas da zona norte ou para as pessoas que tiveram que lutar contra o trânsito porque as ruas da cidade estavam bloqueadas.

Conceitualmente, podemos discutir quatro cidades: a cidade pré-olímpica, a cidade olímpica, a cidade pós-olímpica e a cidade não olímpica. A cidade pré-olímpica impõe um modelo de negócio para a cidade que é construído através de um estado de exceção. Exceção que começa com a Lei Geral da Copa e vai até a Lei da Olimpíada. Teve muito decreto da prefeitura para garantir a transferência de terrenos urbanos. Muitas parcerias público-privadas. É uma maneira de driblar as instituições democráticas para construir um modelo de cidade segundo o modelo de negócio do COI e da Fifa. Me impressionou muito quando, na cerimônia de encerramento da Olimpíada, o Thomas Bach (presidente do COI) falou “tchau, Rio” e depois saiu à francesa. Peraí, é só isso? Tchau, Rio? Os moradores da cidade sofreram por sete anos e foram gastos pelo menos, eu disse pelo menos, R$ 40 bilhões em estruturas projetadas para poucas pessoas.

Essa conta ainda vai ser cobrada?

Ninguém questiona mais quem elaborou o Projeto Rio 2016. Quem são as pessoas responsáveis por esse projeto que virou lei? Na cidade olímpica, criam-se negócios para algumas pessoas que depois decretam o sucesso do evento. Vivemos agora a cidade pós-olímpica, que reflete as tensões entre a cidade olímpica construída para o evento através desse modelo de negócio e a cidade não olímpica, que é esquecida com a falta de transporte entre a Baixada Fluminense e os pontos de trabalho, a falta de transporte aquático para as pessoas que moram do outro lado da Baía de Guanabara, a falta de manutenção dos trens da Super Via, a falta de políticas públicas sustentáveis no longo termo… Isso porque todo o dinheiro está indo para as coisas olímpicas.

E em termos de mobilidade urbana?

O projeto do BRT é lindo, mas não é funcional para a cidade. Foi gasto R$1,5 bilhão para valorizar terrenos em alguns pontos da cidade enquanto o investimento em quase 270 quilômetros de trilhos da Super Via foi de R$ 2 bilhões em dez anos. As prioridades do poder público nesse sentido foram bem perversas, criando essas divisões e agravando as desigualdades geográficas pelas quais o Rio de Janeiro é conhecido.

O que esperar do período pós-olímpico?

Ouvi em um debate que o período pós-olímpico precisa ter um norte. Mas, eu acho que o período pós-olímpico não precisa de um norte, porque o norte representa os conceitos que o norte tem sobre o Brasil que fracassaram durante a Copa. Olhamos para o norte e transformamos o Maracanã em um elefante branco. Precisamos achar o nosso sul, uma maneira diferente de pensar. Temos que nos desnortear para criar soluções autóctones, em cima da criatividade brasileira e para esquecer esses outros modelos, que não funcionam. São modelos de negócio que tanto transferem dinheiro público para as elites locais quanto para as empresas internacionais. Então, acho que o projeto pós-olímpico deve integrar a cidade olímpica à cidade não olímpica.

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