Homenagem

Tito, cidadão paulistano: dores e esperanças de ontem e de hoje

Durante evento em memória do frei morto em 1974, movimentos lembram de problemas ainda presentes, como a violência policial e a tortura

Douglas Mansur/Celeiro de Memória

Lucinha, Erick, Vera, Toninho, Xerri e Juliana Cardoso: memória preservada

São Paulo – O cearense Tito de Alencar Lima tornou-se frei dominicano em 1967, ano em que chegou a São Paulo, para o Convento das Perdizes, na zona oeste da cidade. Ali foi preso no final de 1969, iniciando um sofrimento que, mesmo na liberdade, só teria fim com sua morte, cinco anos depois, na França. Tito deixou São Paulo e o país em 1971. Ontem (11) à noite, tornou-se cidadão paulistano, em cerimônia na Câmara Municipal que lembrou não só os flagelos do passado, mas as dificuldades e injustiças do presente.

“Tito é emblemático porque nos lembra os outros que sofrem”, diz o frei dominicano João Xerri, nascido em Malta e que chegou ao Brasil em 1974, exatamente o ano em que Tito pôs fim à vida, aos 28 anos. Quando o corpo voltou ao Brasil, em 1983, ele era prior no Convento das Perdizes. “Ele se levantou pelos direitos dos trabalhadores e dos estudantes e foi recebido com carinho”, recorda, lembrando-se de uma frase marcante de Tito: “É melhor morrer do que perder a vida”. Para Xerri, o grande “crime” do dominicano foi, talvez, ajudar a encontrar um local para o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), então na clandestinidade, em 1968.

Frei Xerri também destacou a presença de várias gerações no evento de ontem. “Apesar de não realizarmos todos os sonhos que nós tínhamos, tem outras pessoas gerando novos sonhos que dão sentido à morte e à vida continuada de Tito.”

Estava lá, por exemplo, o estudante Erick Vinícius Borges, ex-secundarista, participante do movimento de ocupação de escolas estaduais no ano passado, e agora estudante, via ProUni, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Presente também na recente ocupação da Assembleia Legislativa pela criação da CPI da Merenda (“Foi aparelhada”, diz), Erick lembrou da violência sofrida ainda ontem durante manifestação de estudantes no centro. “A gente pede educação de qualidade e recebe Escola sem Partido, bomba de gás, convocação para depor, detenção.”

Também fazia parte da mesa Vera Lúcia Freitas, do grupo Mães de Maio. Ela perdeu Matheus, de 21 anos, em São Vicente, litoral sul paulista. “Infelizmente, a nossa Justiça não funcionou até hoje”, afirma Vera, lembrando que todos os processos foram arquivados.

Na plateia do plenário 1º de Maio, estavam, entre outros, Anita (Nita) Freire, viúva do educador Paulo Freire, o presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, Antonio Funari Filho, e o ex-deputado Adriano Diogo, que comandou a Comissão da Verdade da Assembleia e hoje atua na Comissão da Memória e Verdade da prefeitura paulistana. Eles escutam com atenção o grupo feminino As Despejadas, formado em Guarulhos, na região metropolitana.

Aline, Ariadne, Lidia, Nataly e Vitória cantam clássicos como Cálice (Chico Buarque e Gilberto Gil, incluindo a versão atualizada de Criolo) e Suíte dos Pescadores (Dorival Caymmi, cantada por presos políticos) e músicas como Deus é do Gueto (“Ama também os que vêm do gueto/ Cuida daquele que é branco ou preto”) e Passe Livre. Nas canções e leituras, as jovens denunciam a violência contra pobres, negros, mulheres.

Em vídeo, o escritor Frei Betto lembra que a Ordem dos Dominicanos está completando 800 anos. Sobre Tito, diz que foi em São Paulo que ele desenvolveu os estudos de seminaristas. “Gostava imensamente de morar em São Paulo, mas sempre preservando sua alma nordestina, cearense e, sobretudo, poética. Tito é um cidadão do Brasil, um cidadão do mundo, que expressa a dor e a esperança”, afirma Frei Betto, citando presos políticos e comuns, os assassinatos que continuam a ocorrer na periferia das cidades brasileiras, os torturados, as vítimas da injustiça.

Apoio

Convidado a falar por frei Xerri, o professor Domingos Zamagna conta que estava indo da Itália, onde morava, para a França, justamente para passar alguns dias com Tito, quando o dominicano morreu. E deu seu testemunho sobre o amigo. “Os torturadores de Frei Tito insistiam que ele era um traidor. A Igreja jamais considerou a luta de Tito e o seu martírio como uma traição”, afirmou, lembrando de um encontro no Vaticano, em que Tito recebeu palavras de conforto inclusive em nome do Papa Paulo VI. “Ele recebeu apoio não só de seus companheiros, mas de seu instituto religioso, e apoio total das autoridades da Santa Sé.”

Autor do projeto de lei que concedeu o título de cidadão paulistano a Frei Tito, o vereador Toninho Vespoli (Psol) diz que o país segue enfrentando desafios como a tortura e o trabalho escravo, além da violência. “Genocídio tem cor e classe social”, afirma, homenageando ainda o ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio e o ex-líder metalúrgico Waldemar Rossi, militantes cristãos. Rossi morreu em maio e Plínio, dois anos atrás.

“Frei Tito não pertence a sua família. A família dele são todos esses coletivos que estão aí”, afirma Lúcia Alencar Lima, a Lucinha, sobrinha de Tito, lembrando que a tortura ainda é prática corrente no país. Às 21h15, ela recebe o diploma de cidadão paulistano dado a Tito e exclama: “Aos nordestinos que todos os dias levantam e constroem esta cidade, a todos os mortos e desaparecidos”.

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