rio 2016

‘O mundo terá uma visão diferente dos refugiados’, diz nadadora síria

Além dos atletas, grupo de refugiados foi à Arena Olímpica assistir prova de atletismo. “Nós agora somos visíveis”, disse torcedora Mariama Bah, do Gâmbia, que vive no Brasil há dois anos

ACNUR/Gordon Welters

Em geral, os atletas passaram a maior parte de suas vidas em campos de refugiados

São Paulo – Dos dez atletas que integraram a inédita e histórica Equipe de Refugiados no Rio de Janeiro, nove já competiram e, com garra e determinação, deixaram um recado de esperança: “Certamente, o mundo terá uma visão diferente dos refugiados”, disse a nadadora síria Yusra Mardini. No domingo (21), às 9h30, o maratonista etíope Yonas Kinde encerrará a participação da delegação nos jogos, nesta que é a última prova das Olimpíadas.

Em geral, os atletas passaram a maior parte de suas vidas em campos de refugiados e trazem consigo históricos de guerras, conflitos e perseguições. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a participação nos Jogos Olímpicos Rio 2016 representa um novo ciclo para eles.

A velocista sul-sudanesa Rose Lokonyen, que foi a porta-bandeiras da equipe na cerimônia de abertura dos Jogos, correu ontem (17) os 800 metros feminino no atletismo. “Fiquei muito feliz com o resultado da prova e por ter tido a chance de competir até a linha de chegada com atletas que são campeãs mundiais. E sou muito grata a todas as pessoas que me apoiaram a conquistar essa participação nos Jogos Olímpicos”, disse logo após a prova.

Na terça-feira (16), o também velocista sul-sudanês Paulo Amotun Lokoro competiu os 1.500 metros e fez uma prova surpreendente: permaneceu junto dos demais corredores durante a maioria do trajeto. Na última volta, porém, ele se afastou dos adversários, chegou em penúltimo e ficou de fora das semifinais da categoria. “Foi muito difícil, mas consegui terminar. Acho que fui rápido no início, mas ao final fiquei cansado. Fiz o melhor que pude”, afirmou o atleta.

Após os jogos, ele voltará para o campo de refugiados de Kakuma, no Quênia, onde vive. “Não vou parar de treinar. Se o Comitê Olímpico Internacional e o Acnur continuarem a me apoiar, eu não vou parar. Há muitos talentos em Kakuma, alguns jogadores de futebol e outros corredores como eu. Eles estão muito orgulhosos e querem correr como eu. E eu vou treiná-los.”

Ele contou com o apoio de uma torcida especial: pelo menos 30 refugiados que vivem no Rio de Janeiro foram ao estádio a convite do Comitê Organizador dos Jogos e se emocionaram com a performance do atleta. “Ele já enfrentou o pior. O simples fato de participar nas Olimpíadas já faz dele um vitorioso”, afirmou o congolês Yves Norodom, refugiado no Brasil há quase cinco anos.

“Com a Equipe de Refugiados, nós agora somos visíveis para o mundo”, disse Mariama Bah, do Gâmbia, que vive no Brasil há dois anos e foi uma das mais animadas nas arquibancadas do Estádio Olímpico. “Os refugiados que competem nas Olimpíadas nos representam, e eles estão cheios de esperança e de vontade de ganhar. Nós estamos na mesma batalha: chegar a uma final, começar uma nova vida e seguir adiante”, disse a colombiana Ninibe Forego, que foi ao estádio com seu marido e os três filhos. Eles vivem no Brasil há cerca de nove meses.

“Nós fomos levados em consideração. É encorajador”, afirmou Madi Matondo, da República Democrática do Congo, sobre a presença de refugiados entre as delegações de atletas das Olimpíadas. Os torcedores refugiados puderam acompanhar o velocista jamaicano Usain Bolt, que já havia conquistado o ouro nos 100 metro, disputar as eliminatórias dos 200 metros rasos.

Na sexta-feira (12), três velocistas refugiados competiram, entre elas, Anjelina Lolalith disputou os 1.500 metros e terminou em último. “Muito embora meu tempo de corrida tenha sido alto, eu fiquei muito feliz por estar aqui e conseguir competir nos Jogos Olímpicos. Ainda que eu tenha sido a última da minha prova, eu acredito que na próxima vez estarei na frente de outras atletas”, disse.

Mais que resultados, o Acnur e o Comitê Olímpico acreditam que os atletas possam inspirar jovens dos campos de refugiados a almejar novas perspectivas profissionais em suas vidas. “Eu nunca pensei que eu competiria em Olimpíadas em minha vida. Eu já tinha ouvido falar sobre o Rio e também sobre os Jogos Olímpicos, mas agora é uma realidade. Passei a maior parte da minha vida em um campo de refugiados, mas agora eu tenho a chance de mudar a minha vida”, disse o velocista Yiech Pur Biel, que sob aplausos disputou a prova dos 800 metros.

ACNUR/ B. LoyseauAtletismo
Atletas refugiados trazem para a arena olímpica históricos de guerras, conflitos e perseguições

“É um momento muito bom para todos os refugiados, não só para mim. Apesar de não conseguimos obter grandes resultados, isso faz parte da vida. Foi muito importante estar aqui hoje, competindo. Vou continuar treinando para disputar novas conquistas para todos aqueles que eu represento”, afirmou James Chiengjiek, que disputou os 400 metros.

No dia 10, o nadador sírio Rami Anis disputou os 100 metros borboleta. “A prova foi boa, mas não pude melhorar meu tempo. Talvez por causa da pressão e porque esta é minha primeira olimpíada”, disse. “Representar a equipe de refugiados é uma honra para mim. Estou muito orgulhoso”, afirmou o nadador. No mesmo dia, a refugiada síria Yusra Mardini, disputou os 100 metros borboleta e não conseguiu se classificar para as fases finais da competição. “Vou continuar a nadar e a apoiar os refugiados”, disse a jovem, que vive na Alemanha.

No judô, os atletas congoleses Yolande Mabika e Popole Misenga, que vivem no Rio de Janeiro, levantaram a torcida na Arena Carioca do Parque Olímpico da Barra da Tijuca, mesmo sem avançar nas disputas por medalhas. Além da torcida brasileira, os judocas movimentaram a comunidade de refugiados congoleses no Rio que se reuniram na sede da organização não-governamental Cáritas Rio para torcer.

Na categoria 90 kg masculino, Popole foi ovacionado ao vencer por pontos o indiano Avtar Singh. Na segunda rodada da disputa, ele foi derrotado pelo atual campeão mundial de judô, o sul-coreano Gwak Dong-han. Mesmo assim, deixou a arena sob aplausos.

“Quando entrei na Arena, pensei que não teria ninguém me apoiando. Mas vi que o Brasil inteiro estava torcendo pra mim. Fiquei emocionado e consegui vencer. Na segunda luta, enfrentei o campeão do mundo”, afirmou Popole. “Quero apoios e patrocínios para participar de outras competições. Quero continuar minha profissão de judô, e vou atrás deste campeão do mundo para ganhar dele.”

Sua colega de equipe, Yolande Mabika, disputou a categoria 70 kg feminino e foi derrotada na primeira luta pela israelense Linda Bolder. Ela também foi muito aplaudida pelo público e deixou a arena emocionada. “Senti como se estivesse em casa. Fiquei muito feliz, pois vejo que muita gente gosta de mim. Estou representando muitas nações. Estamos juntos”, declarou a judoca. “Vou continuar lutar. Estou forte, estou nova. E a luta não é só judô. Estou lutando por minha vida.”

Técnico dos dois judocas, o brasileiro Geraldo Bernardes ressaltou a garra dos refugiados congoleses. “Enquanto outros atletas se preparam por quatro anos, eles se prepararam em quatro meses. Foi muito trabalho em pouco tempo. Mas a alegria e comprometimento deles nos trouxe a este momento.”

Em 2015, pela primeira vez na História, o número de refugiados superou os 60 milhões de pessoas (total equivalente à população do Reino Unido) e chegou a 65,3 milhões de pessoas obrigadas a deixar suas casas para fugirem de guerras e perseguições, segundo o Acnur. Desde 2011, quando os conflitos na Síria tiveram início, o número de refugiados não para de aumentar.

Conheça os atletas

1.jpgRami Anis, 25 anos

Natural da Síria, vive na Bélgica e disputará os 100 metros borboleta na Natação. Rami começou a treinar aos 14 anos, em Alepo, seguindo os passos de um tio que participava de campeonatos na modalidade. “A natação é a minha vida. A piscina é o meu lar”, disse. “Com a energia que eu tenho, estou seguro que posso alcançar os melhores resultados. Será uma grande emoção participar das Olimpíadas”.

Quando os conflitos se intensificaram no país, a família mandou o jovem para Istambul, para morar com o irmão mais velho que estudava na Turquia. “Eu pensei que ficaria na Turquia por uns dois meses e depois voltaria ao meu país”, disse.

Sem nacionalidade turca, ele não podia competir. “É como se alguém que está estudando, estudando, estudando e é impedido de fazer as provas”. Para perseguir seu sonho de se tornar nadador profissional, ele embarcou em um bote inflável para a ilha grega de Samos e por um erro chegou à cidade belga de Ghent. Lá ele passou a treinar nove vezes por semana com a ex-nadadora olímpica Carine Verbauwen.

Yiech.jpgYiech Pur Biel, 21 anos

Vive no Quênia e competirá nos 800 metros. Forçado a fugir dos conflitos no Sudão do Sul, em 2005, acabou chegando sozinho em um campo de refugiados ao norte do Quênia, onde começou a jogar futebol e depois migrou para o atletismo. “A maioria de nós enfrenta uma série de desafios”, disse Yiech. “No campo de refugiados, não temos instalações nem calçados. Não há academia. Até mesmo as condições climáticas não favorecem os treinos devido ao calor intenso que faz desde o amanhecer até o anoitecer”.

Yiech afirmou que competir nos Jogos do Rio poderá motivar outros refugiados e levar a eles mensagem de esperança. “Seja por meio da educação, ou mesmo correndo, podemos mudar o mundo”, disse.

James.jpgJames Nyang Chiengjiek, 28 anos

Disputará os 400 metros. Vive no Quênia desde os 13 anos depois de ter sido forçado a fugir de casa, no Sudão do Sul, para não ser sequestrado por grupos que faziam recrutamento forçado de crianças soldados. Frequentou a escola e se juntou a um grupo de treinamento. “Ao correr bem, estou fazendo algo bom para ajudar os outros”, disse. “Talvez entre eles (refugiados) existam outros atletas talentosos, mas que ainda não tiveram oportunidade.

No começo, ele não tinha sequer tênis adequados para a corrida e era obrigado a pedir calçados emprestados. “Todos temos um monte de lesões por causa dos calçados inadequados”, disse. “Por isso nós compartilhávamos. Pois se você tivesse dois pares de tênis, podia ajudar a quem não tinha nenhum.”

Yonas.jpgYonas Kinde, 36 anos

Nascido na Etiópica, vive em Luxemburgo e disputará a maratona. “Eu tenho energia, e mais e mais energia”, diz. “Normalmente treino todos os dias, mas quando ouvi esta notícia (sobre a Equipe Olímpica de Atletas Refugiados), comecei a treinar duas vezes por dia para estes Jogos.”

Yonas, que deixou seu país temendo guerras, tem aulas de francês regularmente e dirige um táxi. Completou uma maratona na Alemanha, em outubro do ano passado, no tempo de 2 horas e 17 minutos (que em Londres 2012 foi o tempo do 30º colocado, entre os 85 que concluíram a proba de 42,195 quilômetros). “É claro que temos problemas, mas podemos fazer tudo no campo de refugiados, então isso ajudará os refugiados atletas.”

Anjelina.jpgAnjelina Nada Lohalith, 21 anos

Natural do Sudão do Sul, vive no Quênia e está no Rio para disputar os 1.500 metros. Tinha 6 anos quando foi forçada a sair de sua casa fugindo de uma guerra. Nunca mais viu ou falou com seus pais. Há algum tempo recebeu a notícia que ainda estavam vivos, mas não sabe como se encontram depois que uma crise alimentar assolou a região no ano passado.

Ela descobriu que era boa no atletismo depois de vencer competições escolares no campo de refugiados, ao norte do Quênia. Porém, ela só percebe o quão rápida é quando treinadores profissionais chegaram ao campo para selecionar atletas. “Foi uma surpresa”, disse. No Rio de Janeiro, quer conquistar boas posições para receber prêmios em dinheiro. Anjelina sonha reencontrar os pais e construir uma casa para eles.

Rose.jpgRose Nathike Lokonyen, 23 anos

Do Sudão do Sul, correrá os 800 metros. Vive no Quênia desde que tinha 10 anos, após ser obrigada a fugir da guerra em seu país. Descobriu seu talento no ano passado, quando um professor sugeriu que participasse de uma corrida de 10 quilômetros, terminando em segundo lugar. “Eu não tive nenhum treinamento. Foi a primeira vez que corri”, disse sorrindo.

Desde então, mudou-se para um campo de treinamento. “Eu serei uma representante do meu povo lá no Rio e talvez, se for bem-sucedida, possa voltar e realizar uma corrida para promover a paz e unir as pessoas”. Um dos desafios que enfrentará é com as lesões adquiridas por não treinar com um tênis profissional “Eu posso ver a corrida como um esporte ou, como agora vejo, uma carreira.”

Paulo.jpgPaulo Amotun Lokoro, 24 anos

Correrá os 1.500 metros. Há alguns anos, Paulo era um pastor que cuidava das poucas cabeças de gado de sua família, no Sudão do Sul, há anos em guerra. Os conflitos o empurraram para o Quênia, onde desenvolveu novas ambições: “Quero ser campeão mundial”. Ele espera se destacar e conseguir dinheiro com a corrida para sustentar sua minha família.

Pela escola do campo de refugiados, conquistou um lugar no grupo que treina perto de Nairobi, capital do Quênia, sob orientação do corredor queniano Tegla Loroupe, detentor de vários recordes mundiais. “Antes de vir aqui, eu nem sequer tinha tênis para treinar”, disse. “Eu era um daqueles refugiados lá no campo, e agora alcancei um lugar especial. Vou conhecer muitas pessoas. Meu povo vai me ver na televisão, no Facebook.”

Yolande.jpgYolande Mabika, 28 anos

Judoca da República Democrática do Congo, vive no Brasil e disputará na categoria peso médio. Foi separada dos pais ainda criança devido a combates no leste de seu país. Diz ter poucas lembranças desse período, além de correr sozinha e ser pega por um helicóptero que a levou para a capital, Kinshasa. Lá foi viver em um centro para crianças deslocadas onde conheceu o judô e passou a competir. “O judô nunca me deu dinheiro, mas me deu um coração forte”, diz. “Eu fui separada da minha família e costumava chorar muito.”

Ela vive Rio desde 2013, quando veio competir no Campeonato Mundial de Judô e fugiu, devido há anos de maus tratos do seu treinador, que confiscava seu passaporte, restringia sua alimentação e a mantinha enjaulada quando não vencia torneios. Nas ruas, conseguiu ajuda, foi acolhida como refugiada, e passou a treinar na escola fundada e mantida pelo brasileiro Flavio Canto, medalhista olímpico. “Sou uma atleta competitiva, e essa é uma oportunidade que pode mudar a minha vida”, disse. “Espero que minha história seja um exemplo para todos, e talvez a minha família me veja e possamos estar juntos novamente.”

Yusra.jpgYusra Mardini, 18 anos

Natural de Damasco, na Síria, a nadadora competirá nos 200 metros livres e borboleta. Mais que um esporte, a natação a ajudou a salvar a vida de sua família e de outros refugiados enquanto cruzavam a fronteira em um bote, fugindo da guerra. A embarcação encalhou na costa do Turquia e começou a encher de água. Yusra não teve dúvidas: pulou na água junto com sua irmã e empurrou o barco em direção à Grécia. “Algumas pessoas não sabiam nadar. Teria sido vergonhoso se as pessoas em nosso barco tivessem se afogado.”

Depois de chegar à ilha grega de Lesvos, viajou para o norte do país com um grupo de solicitantes de refúgio. “Eu quero mostrar a todo mundo que, depois da dor, depois da tempestade, vem a calmaria”, disse. Ela representou a Síria no Campeonato de Natação no Mundial Fina em 2012. Desde setembro de 2012, treina na Alemanha.

Popole.jpgPopole Misenga, 24 anos

Judoca nascido na República Democrática do Congo, vive no Brasil desde 2013. Quando tinha 9 anos teve de fugir de conflitos na sua cidade, separou-se da família e foi resgatado após oito dias vivendo em uma floresta e levado para um campo de refugiados, onde começou a praticar judô. “Quando você é uma criança, você precisa ter uma família para lhe dar instruções sobre o que fazer, e eu não tinha uma. O judô me propiciou serenidade, disciplina, compromisso,  tudo.”

Popole enfrentou problemas com o treinador, que o trancava em uma jaula quando não vencia campeonatos, com apenas pão e café. No Mundial de Judô realizado há três anos no Rio de Janeiro, foi eliminado na primeira fase por não ter recebido alimentação do seu treinador. Depois disso, decidiu pedir refúgio no Brasil. “No meu país, eu não tinha um lar, uma família ou crianças. A guerra causou muita morte e confusão, e eu pensei em ficar no Brasil para melhorar a minha vida.”

Ele também treina na escola de Flavio Canto e espera que seus pais assistam sua competição. “Eu quero mostrar que os refugiados podem fazer coisas importantes. Eu vou ganhar uma medalha, e dedicá-la a todos refugiados.”

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