Rio de Janeiro

Medo de represália impede policiais de denunciar crimes de outros agentes

Risco de ataques contra suas famílias, regulamento autoritário, falta de ação do MP e impunidade de policiais criminosos estão entre motivos para policiais acobertarem execuções, segundo Human Rights Watch

Tomaz Silva/ Agência Brasil

Regulamento da PM carioca impede que agente se negue a cumprir uma ordem superior, mesmo que ela seja ilegal

São Paulo – A organização internacional de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch divulgou hoje (7) o relatório “O Bom Policial Tem Medo”, em que analisa casos de execução praticadas por policiais militares do Rio de janeiro, as causas da impunidade entre os agentes e as consequências dessa prática para a sociedade e os próprios policiais. A organização concluiu que o principal motivo para que os agentes acobertem os assassinatos cometidos por outros PMs é “o medo de morrer nas mãos dos policiais que praticam condutas ilegais” ou que eles atacassem suas famílias.

Segundo o relatório, o major Márcio Rodrigues, comandante da Unidade de Polícia Pacificadora da favela da Mangueira, reconheceu essa situação em entrevista à Human Rights Watch. O problema, no entanto, não se limita à relação entre agentes de mesma hierarquia, pois a organização ouviu depoimentos de policiais que revelaram ser pressionados por seus superiores para praticar execuções. “Matar bandido é o que era exigido como bom resultado por meus superiores”, disse um dos 30 PMs entrevistados que, por motivos de segurança, não foi identificado.

E essa exigência, apesar de ilegal, não pode ser desrespeitada. O Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro não prevê a possibilidade de um agente se negar a executar uma ordem de um superior, mesmo que tal determinação configure um crime. De acordo com o documento, o máximo que o agente pode fazer nesse caso é “solicitar sua confirmação por escrito”, pois deve, em qualquer situação, “manter a disciplina e respeitar a hierarquia”. O regulamento foi promulgado em 1983, no final da ditadura civil-militar (1964-1985).

A PM carioca matou 8 mil pessoas na última década; foram 645 em 2015. Um quinto dos homicídios registrados na capital carioca no ano passado foi praticado por policiais. Três quartos desses mortos eram negros. Embora reconheça que os policiais enfrentam riscos reais e organizações criminosas fortemente armadas, contra as quais a hipótese de confronto é real, a Human Rights Watch destacou 64 casos, com 116 assassinatos, “nos quais havia provas críveis de que policiais haviam tentado encobrir casos de uso ilegal da força letal”.

Os casos são quase sempre registrados como confronto e são utilizadas várias “técnicas” para acobertar as execuções. Dentre as ações descritas pela Human Rights Watch, estão a remoção da vítima do local com a alegação de encaminhá-la a um hospital. “Esses falsos ‘socorros’ servem para destruir provas na cena do crime ao mesmo tempo em que simulam um ato de boa-fé por parte dos policiais”, destaca a organização. Outras práticas são colocar objetos junto aos corpos, como armas ou drogas. E também a ameaça a testemunhas para desencorajar depoimentos.

A versão dos policiais sobre os confrontos não bate com os laudos de autópsias e demais exames periciais, na maior parte dos casos. As análises descrevem feridas que indicam tiros à queima-roupa em, ao menos, 20 dos 64 casos. E em outros, depoimentos de testemunhas ou outras evidências desmentem a versão dos policiais.

E essa constatação revela outra parte do problema: a impunidade. Dos 64 casos examinados pela organização, apenas oito foram a julgamento. Desses, somente quatro resultaram em condenação de policiais envolvidos. Os promotores de Justiça nem mesmo apresentaram denúncia em 36 inquéritos. Embora houvesse evidências críveis de que a polícia havia acobertado o uso ilegal da força, segundo a entidade.

A Human Rights Watch fez ainda uma série de recomendações ao Ministério Público, à Polícia Civil, à Polícia Militar e ao Congresso Nacional, com objetivo de evitar execuções, garantir investigações, ampliar ações de controle da ação policial e punir aqueles que praticarem assassinatos.

“Execuções extrajudiciais cometidas pela polícia causam um grande impacto não só nas vítimas e em suas famílias, como também na própria polícia. Essas mortes fomentam ciclos de violência que colocam em risco as vidas dos policiais que atuam em áreas com altos índices de criminalidade, destroem seu relacionamento com as comunidades e contribuem para elevados níveis de estresse psicológico, prejudicando sua capacidade de fazer bem o seu trabalho”, definiu a organização.