São paulo

Ato em defesa da democracia teve cores, cheiros, vozes e peles da massa brasileira

Avenida Paulista recebeu um Brasil diverso. Estudante e idoso. LGBT. Negro, branco, indígena e amarelo. Nordestino, nortista e paulista. E muito mais

Rudnéia, os filhos Amanda e Marcos, e a nora Ana Laura. Quatro horas de viagem para lutar pela democracia <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>Maria de Lourdes lembra que a vida, que hoje ainda é uma batalha, era muito mais difícil antes de Lula ser presidente <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>Simone e Flávia acreditam que hoje há mais oportunidades que há vinte anos. E que o país vive tentativa de golpe <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>Sanny, Sabrina, Leonardo, Marcela, Rayane, Fernanda, Yara e Júlia: Estudantes querem o fim da corrupção de todos <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>Milhares de pessoas de todos os cantos ocuparam a Avenida Paulista para dizer não ao fascismo e defender a democracia <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>Daniel e o filho, Rafael: É preciso defender a frágil democracia contra o discurso de ódio e o fascismo <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>Embora o clima geral fosse de resistência, a alegria era um sentimento muito presente na Avenida Paulista ontem <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>

São Paulo – Parte do povo brasileiro ocupou ontem (18) a Avenida Paulista para defender a democracia. Mas não foi um Brasil homogêneo. Havia os que acordam de madrugada e atravessam a cidade para trabalhar. Os que já fizeram muito. E os que ainda vão fazer. Os que têm mãos embrutecidas pela enxada. E os que as têm cobertas de giz. Que beijam quem quiserem. Os que puderam estudar muito. E os que conquistaram a sabedoria na escola da vida. De todas as cores, de todos os credos. Defensores e críticos do PT e do governo da presidenta Dilma Rousseff, resistindo juntos.

Logo na chegada à concentração para o ato, chamou a atenção uma senhora que reclamava muito da passagem de cinco viaturas da Polícia Militar pelo meio dos manifestantes. A voz firme: “Vocês querem prender o Lula. Vocês querem acabar com ele. Mas nós não vamos deixar”, disse Maria de Lourdes Gomes Araújo, de 64 anos. A faxineira estudou até a 7ª série do ensino fundamental, mora em São Miguel Paulista, zona leste da capital paulista, onde vive com uma irmã, um sobrinho e um filho.

Nordestina, nasceu em Cajazeiras, interior da Paraíba, quase na divisa com o Ceará. Trabalhou desde os sete anos com o pai e a irmã nas colheitas de feijão e algodão, e como ajudante em uma olaria. Ela veio sozinha ao ato, porque o resto da família estava trabalhando.

Para ela, existe uma demarcação clara entre o Brasil que existia antes de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tomar posse, em janeiro de 2003, e o que foi construído depois. “Vim aqui fazer uma homenagem praquele homem de luta, que querem destruir porque ele é nordestino. Antes de 2003 a gente vivia no candeeiro, com água de poço. Muitas vezes, só comia o que a igreja dava”, relatou Maria de Lourdes.

A vinda para São Paulo, ainda na infância, não tornou a vida menos difícil. “Aqui em São Paulo a gente comia pelanca de frango. E usava banha pra fritar o arroz. Carne não era pra pobre”, afirmou a faxineira. “Depois que o Lula entrou o povo passou a ser respeitado. Porque só quem já viveu o horror da fome sabe a importância de ter um pouquinho. De ter emprego, de comer bem. E hoje a gente vive isso”, disse.

Maria de Lourdes acredita que o ex-presidente tem algo de sobrenatural: “A sabedoria do Lula vem de Deus, é dom. Por isso ele fez tão bem pro povo”. Apesar de tanta admiração, ela quer que tudo seja esclarecido quanto às investigações sobre o ex-presidente. “Todo mundo tem de ser investigado por igual. O que não pode é atacar só ele, como se a corrupção no Brasil tivesse só uma pessoa fazendo”, afirmou.

Portando cartazes criticando a Rede Globo, um grupo de estudantes fazia selfies alegremente durante o protesto. Estavam próximos a um dos vários grupos com instrumentos musicais que animavam grupos mais distantes dos carros de som. Participantes de cursinhos populares, todos moram na periferia de São Paulo e estudaram em escolas públicas.

De cara, fizeram uma ressalva: não vieram defender governo, nem partido. Mas responderam um “chamado”. “A gente não veio aqui defender o PT. Mas mesmo com críticas ao governo é nosso dever estar na rua hoje, porque estão tentando destruir a democracia em nome do combate à corrupção”, afirmou Sany Rocha de Oliveira, de 20 anos, residente em Guaianazes, extremo leste da capital.

Os jovens estão preocupados com o autoritarismo e com o vazio de propostas caso a presidenta Dilma sofra o impeachment. “Não pode só tirar. Qual é a proposta? Tem de ter uma pauta para melhorar o país. Não aceitamos corruptos, como o (Eduardo) Cunha (presidente da Câmara dos Deputados), dizendo que vão livrar o Brasil da corrupção. Não somos bobos”, afirmou Sabrina Lina, de 19 anos, moradora do Campo Limpo, zona oeste de São Paulo.

Para eles, atos contra a corrupção têm de questionar também quem roubou a merenda das escolas paulistas. “Aqui em São Paulo a educação está sendo destruída. O (Geraldo) Alckmin (governador de São Paulo) fechou escolas e salas de aula. Agora trocou refeições por bolacha e suco. Mas isso eu não vi ser questionado no domingo (dia da manifestação contra o governo Dilma)”, afirmou Yara Maria da Silva, de 18 anos, moradora da Vila Zilda, na zona norte.

De Restinga, cidade do interior paulista a 390 quilômetros da capital, a agricultora Rudnéia de Jesus Afonso, de 37 anos, veio com três filhos, uma nora e dois tios, para a manifestação. “Eu passei fome com meus filhos antes do governo Lula. Não havia nenhum apoio às famílias rurais. Hoje, treze anos depois, eu como do que eu planto. Eu crio meus animais. Se hoje eu posso sonhar que meus filhos façam faculdade, tenham uma profissão, é porque alguma coisa mudou de lá pra cá”, afirmou.

Todos os filhos de Rudnéia estudam. O mais velho, Marcos Vinícius Afonso, de 18 anos, deve prestar vestibular este ano. Oportunidade que ela não teve. “A gente foi desde pequeno na roça, passando necessidade. Mas o Brasil agora é outro. E olha que precisa melhorar muito ainda”, ressaltou.

Para a agricultora, as mobilizações contra a corrupção têm sido hipócritas. “Na Câmara tem um bando de filho da puta lutando contra a democracia. O presidente da Câmara é réu. Mas aí tudo bem? Não, o Brasil tem de ser de todo mundo, não pode ser só da burguesia, não”, protestou.

A projeção da frase “+Amor -Ódio” na fachada do prédio da Justiça Federal em São Paulo, que foi palco da leitura de um manifesto em apoio ao juiz da 14ª Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro, que conduz as investigações da Operação Lava Jato, encontrou muita ressonância entre os manifestantes. A estudante de filosofia Simone Campelo, de 27 anos, e a namorada Flávia Eduarda Silva, operadora de telemarketing, de 25 anos, eram símbolos disso.

Abraçadas o tempo todo, não se afastaram nem um minuto, mesmo durante a entrevista. “Viemos aqui para enfrentar o golpe. Quem manda no país é o povo, e a democracia não pode ser jogada no lixo”, afirmou Solange, moradora de Mauá, no ABC paulista. Flávia, do Itaim Paulista, extremo leste da capital paulista, não aceita o linchamento por que passa o ex-presidente Lula. “Ele deve ser investigado. Mas temos uma cultura de linchamento midiático que faz ele ser tratado como culpado se nem se provou nada ainda”, reclamou.

Ambas avaliam que não houve grandes avanços em políticas públicas para a população LGBT nos últimos anos. Foram mais avanços de aceitação social. No entanto, elas temem que um rompimento da democracia leve a um retrocesso grave nos direitos civis. “A bancada evangélica é muito forte no apoio ao impeachment. E também vive tentando acabar com nossos direitos, como se não fôssemos pessoas”, disse Solange.

Crítico do governo petista, o professor de português Daniel Marcondes, de 42 anos, carregava o exausto e adormecido Rafael, de 4 anos, um pouco afastado da confusão da manifestação. “Viemos aqui defender a nossa frágil democracia. O discurso de ódio e o fascismo estão se alastrando a ponto de um líder de movimento pró-impeachment ser agredido por seus pares. Isso foi um sinal de alerta de que eu não podia ficar em casa”, disse.

Marcondes, porém, ressaltou que não veio defender o PT ou o governo Dilma. “Não posso aceitar desvios na gestão pública, ou com erário público. Acredito que deva haver investigação firme e punição severa. Contra todos”, afirmou. Morador de Perdizes, bairro nobre da zona oeste da capital, o professor não se sente representado pelas manifestações pelo impeachment da presidenta Dilma.

Para ele, a ideia de que o PT e o comunismo – e seus partidários – precisam ser destruídos tem ganhado força e isso põe em risco a vida de pessoas e a própria democracia. “O objetivo dos fascistas não é combater a corrupção. Estão extravasando um ódio que vem sendo semeado há treze anos, principalmente, pela imprensa. Corremos o risco de surgir um líder fascista, com soluções mágicas e violência, como já aconteceu outras vezes na história”, afirmou.

Após o discurso emocionado do ex-presidente Lula, a quem muitos dos manifestantes tentaram, em vão, ver de perto – era impossível caminhar em alguns locais da Avenida Paulista – os Silvas, Oliveiras, Pereiras, Souzas, Gonçalves, Araújos e tantos outros buscaram o caminho de casa. Muitos deles ainda iam passar boas horas nessa caminhada. E para um bom tanto deles, hoje era dia de labuta. Como para a Maria que abriu esta reportagem. “Tem uma casa e um escritório pra faxinar neste fim de semana. A gente não pode parar”, despediu-se.