Estratégia

A política munduruku

Com forte tradição guerreira, índios se organizam e fazem alianças para enfrentar o governo brasileiro. Eles querem barrar as hidrelétricas que podem alagar suas terras no rio Tapajós

Fábio Nascimento/Greenpeace

Em Paris, para receber o Prêmio Equador, da ONU, as lideranças munduruku participam de evento que reuniu lideranças ambientais do Brasil e do mundo

Microfone na mão, tronco desenhado com traços pretos e um cocar de penas vermelhas na cabeça, o cacique Juarez Saw discursa: “O governo tá chegando aqui para acabar com tudo: o indígena, a floresta e o rio”. Às margens das bucólicas corredeiras do rio Tapajós, no Pará, 230 índios munduruku se reuniram para discutir a resistência ao projeto do governo federal, que planeja construir até sete hidrelétricas na região. A maior delas, a usina de São Luiz do Tapajós, teria potência máxima de 8.040 megawatts e deve alagar mais de 70.000 hectares de floresta. As águas devem deixar áreas munduruku submersas, entre elas a aldeia Dace Watpu, onde a assembleia foi realizada.

“Eles querem acabar com a história munduruku, mas nós não vamos deixar.” A cada frase entoada pelo cacique, os 230 índios ao seu redor gritam “Sawé!”, expressão que mistura saudação com grito de guerra.

O mesmo grito foi entoado no início de dezembro, em Paris, durante a COP-21, conferência sobre mudanças climáticas das Nações Unidas. Dessa vez, a voz ao microfone era da indígena Maria Leusa Kaba Munduruku, que foi à França receber o Prêmio Equador. Concedido pela ONU, o prêmio reconhece o protagonismo do seu povo contra as usinas como uma ação de “sucesso proeminente na promoção de soluções sustentáveis”. Não é a primeira vez que a organização munduruku chama a atenção da comunidade internacional, a resistência dos indígenas já foi retratada pelos jornais Guardian, Washington Post, pela Aljazeera e BBC.

No Pará ou em Paris, o elemento que fortalece o grupo é sua habilidade para fazer política. Os indígenas sabem costurar parcerias, manter aliados e têm líderes dedicados a estudar os seus direitos no Brasil e os mecanismos internacionais que podem ser usados em sua defesa.

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No Pará ou em Paris, o elemento que fortalece o grupo é sua habilidade para fazer política

A capacidade de organização e estratégia está alicerçada em sua própria tradição. Durante a assembleia, fica claro que a experiência em debates políticos é anterior à chegada das usinas. Os índios munduruku tem um rito próprio, que lembra um modelo de democracia participativa. Durante as reuniões, qualquer um pode falar – homem, mulher, jovem ou idoso –, pelo tempo que desejar. Todas as decisões têm que sair por consenso, não importando o tempo que isso tome. Nos quatro dias do evento, as reuniões se estenderam das primeiras horas da manhã até o sol se por. Para dar sustento, corria entre os participantes uma cuia com farinha e água, que era sorvida aos goles.

Os participantes podiam se pronunciar em munduruku ou em português, mas a maioria falava na língua nativa. Apesar da presença de jornalistas e aliados não-indígenas, nem sempre as falas eram traduzidas para o português. “Falar em munduruku é um modo de marcar a nossa diferença, de fazer a política”, diz Jairo Saw, historiador munduruku. Em meio aos discursos, era possível pescar algumas palavras em português, expressões que não existem na língua nativa, como: cientistas, demarcação, barragem, governo e preocupação.

Além da pintura no corpo e cocares, os guerreiros participantes carregavam arcos e flechas, evocando a imagem de guerreiros destemidos e violentos com a qual ficaram mundialmente conhecidos no passado.

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Nas reuniões munduruku, todos podem dar opinião, as decisões são tomadas em consenso

De caçadores de cabeças a estrategistas

“A cabeça humana simbolizava poder”, explica Jairo Saw. “Hoje estamos em outra época e lutamos nossas guerras de outros modos, mas esse espírito guerreiro ainda está na gente”. A área ocupada pelo povo munduruku era tão ampla que os colonizadores se referiam à região como Mundurukânia.

Para Tiago Vekho, antropólogo do Instituto Socioambiental que realiza sua pesquisa de doutorado sobre os Mundurukus, a história ajuda a explicar a resistência atual. “Eles possuíam uma lógica espartana: eram uma sociedade voltada para a guerra. Hoje, eles se consideram em guerra contra o governo e é possível perceber, no cotidiano das aldeias, que todos estão mobilizados para isso”, diz.

Na disputa do presente, os índios munduruku evocam a sua história. Desenhos de cabeças mumificadas aparecem, por exemplo, nas placas da autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, uma das áreas onde vivem os indígenas.

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Jairo Saw durante assembleia dos Munduruku no médio Tapajos

As ações atuais são bastante diferentes das do passado. A autodemarcação é considerada uma das mais estratégicas linhas de resistência às usinas. Enquanto a Fundação Nacional do Índio (Funai) segura o processo de reconhecimento da Terra Indígena Sawré Muybu, área que será alagada, eles se muniram de facões e foram, eles mesmos, abrir picadas onde seriam as fronteiras do território. “Vivemos em um lugar tradicional, deixado pelos nossos antepassados. Como a terra é nossa, decidimos parar de esperar o governo e fazer nós mesmos”, diz Jairo Saw.

No tempo em que dominavam a bacia do Tapajós, antes da chegada dos colonizadores, as expedições de guerra promovidas pelos índios munduruku duravam até seis meses e eram temidas pelas etnias vizinhas. “Eles foram considerados a tribo mais bélica da Amazônia”, diz José Sávio Leopoldi, antropólogo da Universidade Federal Fluminense que estuda a história munduruku.

O nome “munduruku” foi atribuído por rivais e significa formiga vermelha, em alusão à sua formação quando atacavam. Segundo os relatos históricos, eles atacavam de surpresa no raiar do dia, com grande contingente de guerreiros e dizimavam a população adulta, trazendo as cabeças das vítimas como troféus. Mumificadas, elas eram fincadas em lanças e colocadas na frente das casas. Algumas dessas cabeças foram preservadas e fazem parte de coleções de museus brasileiros, ingleses e portugueses, levando a fama guerreira dos Munduruku para o mundo.

Um dos mais populosos grupos étnicos do país, há mais de 13 mil homens, mulheres e crianças munduruku espalhados por 850 quilômetros do rio Tapajós e afluentes. Sempre que há uma ação local importante, os índios se deslocam pelo território para dar apoio. Durante a autodemarcação, por exemplo, guerreiros viajaram ao longo de três dias para ajudar a abrir as picadas.

A união e a habilidade de resistir quando sob pressão também são constantes na história munduruku. No começo do século 19, os portugueses traçaram um acordo para diminuir os confrontos com a etnia. Quando chegaram as missões católicas, com o objetivo de catequizar e “civilizar”, muitos deles foram proibidos de falar sua língua e praticar os ritos tradicionais. Mas os indígenas preservaram esses conhecimentos, reinventando sua cultura para sobreviver ao domínio.

Ao mesmo tempo que absorveram práticas católicas como o batismo, mantiveram sua

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Nas reuniões munduruku, todos podem dar opinião, as decisões são tomadas em consenso

crença em Karosakaybu, no poder dos xamãs e nos rituais antigos. “Eles nunca tiveram uma religião instituída. Era uma cosmologia que acabou absorvendo a ideia do Deus cristão”, diz Tiago Vekho. Apesar da proibição dos missionários ao longo de décadas, a língua munduruku sobreviveu e hoje é a mais falada pela população. Grande parte das mulheres e crianças não falam o português.

A necessidade de pressionar o governo também não é novidade para eles. A demarcação da Terra Indígena Munduruku, que abrange a região norte da bacia do Tapajós, foi fruto da pressão do grupo. O processo começou em 1975 e só terminou em 2004, período durante o qual os indígenas acompanharam os estudos com mobilizações e cartas ao governo. Jairo Saw era uma criança, mas lembra de ver adultos de várias aldeias se reunindo e traçando estratégias comuns nos anos 70.

Hoje, ele é um dos muitos representantes da etnia que viaja para levar os argumentos contrários às usinas em reuniões com ministros e conferências da ONU. Os indígenas já ocuparam escritórios da Funai diversas vezes, assim como o canteiro de obras de Belo Monte. Eles também se articulam para abastecer o Ministério Público Federal com as informações para que a instituição mova ações contra a usina.

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A estratégia política munduruku convive com um modo de vida integrado à natureza

Alianças

Antecipando-se à chegada das usinas do Tapajós, os índios munduruku participaram das ocupações da usina de Belo Monte. A experiência serviu como lição de como não agir.

“Os indígenas do Xingu perderam a luta contra o governo. Eles eram vários povos diferentes, alguns foram cooptados, e acabaram se dividindo”, diz Jairo Saw. “Isso serviu para a gente ver que precisamos da união para fortalecer a nossa luta. Estamos buscando a confiança de outros povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e das pessoas que vivem nas cidades. Nossas lutas têm que acontecer juntas.”

Durante a Assembleia do Médio Tapajós, fica claro que esse esforço não é da boca para fora. Estiveram presentes pelo menos 23 lideranças Munduruku de outras regiões, outras etnias indígenas e ribeirinhos moradores de comunidades que também serão afetadas pelas usinas. A reunião também contou com representantes do Ministério Público Federal do Pará, que já ajuizou 19 ações judiciais tratando de violações contra índios e ribeirinhos da área.

Além de representantes de mais de dez organizações do terceiro setor, como o Conselho Indigenista Missionário, o Greenpeace e o Fórum da Amazônia Ocidental. “Os Munduruku são um povo muito politizado. Eles entenderam que não haveria condições de enfrentar a máquina governamental sem o apoio da sociedade brasileira, e as ONGs cumprem o papel de fazer essa conexão” diz Danicley de Aguiar, do Greenpeace.

O plano é estender ainda mais a rede de alianças. Eles já foram diversas vezes à Brasília para protestar contra medidas do governo que atingem os direitos indígenas como um todo. A viagem mais recente foi motivada pela PEC 215, que passa ao Legislativo o poder de demarcar novas terras indígenas. “A gente sabe que colocar essa decisão nas mãos da bancada ruralista vai deixar a situação ainda mais difícil para nós e nossos parentes”, diz Roseninho Saw Munduruku, presidente da associação Pariri, que representa sete aldeias de médio Tapajós.

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Jovens munduruku carregam um veado que vai alimentar os participantes da assembleia

A economia munduruku

Um munduruku acompanha as mudanças de nível e fluxo do rio com a mesma preocupação que um economista segue os índices de desemprego e inflação. O rio é a base do seu sustento e sobrevivência, já que o peixe é a primeira fonte de alimentação. Em segundo lugar vêm a caça, a coleta e a roça, que dependem da saúde da floresta – que por sua vez depende do rio.

Por isso, o grupo é uma valiosa fonte para ajudar a prever os impactos ambientais das usinas. “Nós sabemos que a construção vai mudar tudo. Com o fim do regime de cheias do rio, as árvores na beira vão secar e os peixes não vão mais encontrar seu alimento”, afirma Jairo Saw.

“Eu tive que estudar muito para chegar à mesma conclusão que vocês”, disse Jansen Zuanon, biólogo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Convidado à assembleia para trocar conhecimentos com os indígenas, ele foi um dos autores de estudo contratado pelo Greenpeace. A organização encomendou uma série de análises para questionar o estudo de impacto encomendado pelo governo.

O estudo de impacto oficial, que ainda está em análise pelo Ibama, concluiu que os impactos à biodiversidade local seriam aceitáveis. Já a análise contratada pelo Greenpeace, e realizada por pesquisadores de instituições como a Universidade Federal de Pernambuco e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, concluiu que a usina ameaça a sobrevivência de peixes, pássaros e plantas. A análise independente aponta ainda que o estudo oficial deveria ser rejeitado, pois tem problemas na metodologia, na análise dos dados e no inventário de animais e plantas.

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“Eles foram considerados a tribo mais bélica da Amazônia”, diz José Sávio Leopoldi, antropólogo da Universidade Federal Fluminense

O responsável pela execução do estudo de impacto oficial é o Grupo de Estudos do Tapajós, formado por nove empresas estatais e privadas interessadas em construir a usina, como a Eletrobras, a Camargo Corrêa e a Cemig. Procurado pela reportagem, o grupo afirma que realiza reuniões com o Ibama para aprofundar alguns itens do relatório. Apenas depois desta etapa, o órgão irá emitir seu parecer definitivo. “Cabe ressaltar que as usinas do rio Tapajós vão garantir o fornecimento seguro de energia limpa e renovável. Trarão ainda benefícios para a população local, com a geração de emprego e renda, permitindo o desenvolvimento econômico e social da região e do país”, diz a nota enviada à reportagem (leia na íntegra).

Até agora, os índios munduruku, MPF e entidades do terceiro setor parecem ter sucesso nos argumentos contra as obras. O leilão da usina de São Luiz do Tapajós estava previsto para acontecer em 2014, depois 2015 e agora foi adiado para 2016 por conta de problemas no licenciamento ambiental. Em junho, o presidente da Empresa de Pesquisa Energética reconheceu que a questão indígena era um obstáculo para o licenciamento.

Os índios munduruku se ofendem sempre que empresas ou representantes do governo argumentam sobre o crescimento econômico que seria gerado pela obra. Já cansaram de explicar que certas riquezas não podem ser medidas em moeda. “Existem escrituras ao longo de todo o rio Tapajós, em seu corpo, nas pedras e árvores nos alertando. O branco não consegue ler, mas nossos pajés sim. Aquilo tudo é sagrado, faz parte de nós, e deve ser respeitado”, diz Jairo Saw. “Não há nenhum valor que compre isso’, Maria Leusa completa. “Não vendemos nenhuma gota, nenhuma pedra. Não tem negociação”.

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