dinheiro e sangue

Assassinato revela a violência da especulação imobiliária perto de Manaus

Uma ponte de ligação com a capital amazonense levou corrida pela terra para uma Área de Proteção Ambiental. Líder local foi morta ao denunciar comércio ilegal de lotes

Lilo Clareto/Repórter Brasil

Ponte Rio Negro, que liga Manaus à Iranduba, levou ocupação predatória à Área de Proteção Ambiental

Manaus – Maria das Dores Priante, ou simplesmente Dôra, sabia que a qualquer momento poderia ser assassinada. Ela dizia aos familiares, às companheiras e companheiros de comunidade. Alertou a polícia e o governo. Várias vezes. Pediu proteção, inutilmente. Foi assassinada em 12 de agosto de 2015. Calada por lutar contra o comércio ilegal de lotes na Comunidade Portelinha, em Iranduba, município vizinho a Manaus. Ela apontava que o principal suspeito pelo crime negociava com empresários da capital amazonense, afoitos por pedaços de terra na região.

A menina de quatro anos, na verdade, não é sua neta, mas uma das filhas adotivas – a outra tem doze anos. Chamam-na de vovó por conta da idade, 54 anos. O “vovô” é o esposo de Dôra, Gerson Priante. Pele clara, cabelos brancos, barba por fazer, óculos de grau e sorriso afável, ele nos recebe com simpatia e bom humor, mas se nota em seu rosto um aspecto cansado, desanimado, de quem luta permanentemente para não desmoronar.

A história dos dois começou de forma inusitada na década de 1970, em Manaus. Gerson era padre, Dôra, catequista. Ele largou a batina, eles casaram-se e tiveram filhos. Muitos anos depois, ela conquistou um lote na comunidade Portelinha. Gerson conta que o local foi doado pela Prefeitura de Iranduba em 2008 a um grupo liderado por Adson Dias, conhecido como Pinguelão.

Por ser um loteamento de caráter social, os lotes deveriam ser distribuídos para quem precisasse. Era gente vindo de Manaus e de outras cidades do Amazonas ou de outros estados. Gente que queria um pequeno pedaço de terra. No início, a comunidade foi se desenvolvendo com base no trabalho coletivo e na solidariedade. “Cada um limpando sua área para poder construir sua casinha”, conta Gerson

Dôra e Gerson chegaram em 2011. Ela trabalhou alguns meses na Associação Comunitária Rural Portelinha, formada para receber formalmente as terras, mas se afastou após constatar práticas com as quais não concordava, como falta de democracia nas decisões e a venda de lotes, sem que o dinheiro resultante fosse revertido à comunidade. Decidiu organizar um grupo para contestar a liderança de Pinguelão, que, acuado e desgastado com as denúncias, aceitou submeter a direção da associação a eleições. O grupo de Dôra saiu vencedor e ela tomou posse como presidenta. E foi aí que os conflitos começaram a se agravar.

“Parece que ele se arrependeu. Sentiu-se de escanteio e começou a perseguição”, conta Gerson. “Ele usou todos os meios para desclassificar, caluniar, difamar. Os conflitos foram se intensificando nos últimos três anos.” Pinguelão continuava a comercializar os lotes. De acordo com as denúncias do novo grupo no comando, ele se passava por presidente da associação, vendia os terrenos para terceiros e embolsava o dinheiro. Segundo o viúvo de Dôra, Pinguelão fazia reuniões paralelas com moradores da comunidade, e ameaçava sua esposa abertamente. Cerca de um ano antes de seu assassinato, agrediu-a com um pedaço de madeira.

Reprodução
Maria das Dores Priante, a Dôra, era líder da comunidade Portelinha e foi assassinada por denunciar venda ilegal de terra

A senhora de rosto redondo, olhos e cabelos pretos e pele morena, não esmorecia. Continuava enfrentando o ex-líder da comunidade. Mesmo assim, por inúmeras vezes, Dôra, Gerson e demais integrantes da direção da associação foram à polícia e recorreram ao governo do estado. Denunciaram as ameaças e irregularidades também na Assembleia Legislativa do Amazonas, onde ela chegou a fazer uso da tribuna.

Em vão. Em 12 de agosto deste ano, por volta das seis e meia da noite, Maria das Dores foi sequestrada em sua casa no Portelinha, cerca de dez minutos depois de Gerson sair rumo à escola onde lecionava, a poucos quilômetros dali. Seu corpo apareceu no dia seguinte à beira da rodovia AM-070, a menos de vinte quilômetros de distância. Os legistas identificaram doze perfurações de bala e marcas de violência por todo o corpo. Acusado de ser o mandante, Pinguelão hoje está preso, aguardando o prosseguimento do inquérito policial sobre o caso.

A expansão da pequena Iranduba se intensificou marcadamente depois do anúncio, em 2007, da construção da Ponte Rio Negro, que o liga à capital amazonense. É o que apontam moradores, lideranças comunitárias, e estudiosos das questões fundiária e ambiental locais ouvidos pela reportagem. Para eles, a obra não trouxe apenas uma maior facilidade de deslocamento e o escoamento da produção: veio junto uma corrida pela terra que pressiona pequenos agricultores e ribeirinhos a saírem de suas casas.

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Outdoors e banners imobiliários bombardeiam a atenção de quem entra no município de Iranduba pela rodovia estadual AM-070. Por muitos quilômetros, em qualquer direção para a qual se olha, eles estão lá: pendurados em postes, fincados no chão, acenando na mão de homens e mulheres. A propaganda anuncia o lançamento de condomínios residenciais e não deixa dúvidas de que a região passa por grande transformação.

Enormes postos de gasolina, com a respectivas lojas de conveniência, beiram a rodovia, já prontos ou em fase de construção. Em estandes erguidos sobre descampados de terra, ou sob grandes tendas brancas, corretores imobiliários e possíveis compradores negociam as melhores condições de pagamento. Os banners e outdoors quase invariavelmente mostram casais e famílias brancas, sorrindo. A exceção é José Aldo, famoso lutador de vale-tudo nascido em Manaus que posa para a propaganda do Residencial Bela Vista, inserido no programa federal Minha Casa Minha Vida e destinado a um público de classe média e classe média baixa. É o único já construído entre os avistados pela reportagem. Os demais loteamentos são ainda enormes áreas desmatadas, algumas delas já cortadas por avenidas largas e asfaltadas.

O cenário de transformação frenética do município, incrustado entres os rios Negro e Solimões, é completado pelas obras de duplicação da AM-070. Caminhões, tratores e operários circulam por todos os lados, e a mata vai dando lugar à nova área para onde a rodovia se expande. A impressão de quem observa é que em Iranduba, onde quer que se esteja e por quem quer que seja, algo grande é esperado para um futuro próximo.

Todos, população, empresários e governos, parecem desconsiderar completamente que a região em transformação integra a Área de Proteção Ambiental (APA) Margem Direita do Rio Negro, criada em 1995 pelo governo do Amazonas. De acordo com a legislação brasileira, em uma APA pode haver ocupação humana desde que esta seja disciplinada pelo poder público e que sejam asseguradas a diversidade biológica e a sustentabilidade do uso dos recursos naturais da área. Segundo Marcelo Moreira, da Fundação Vitória Amazônica, organização socioambiental com foco na Amazônia, Iranduba é o município da Região Metropolitana de Manaus em que se pôde observar nos últimos anos o maior aumento do índice de desmatamento. Levantamento feito pela entidade constatou que 21% de sua área está desmatada. A devastação na APA corresponde a 82% do total do desmatamento ocorrido em áreas protegidas do município.

“Isso aconteceu principalmente depois da construção da ponte. Há muito desmatamento em áreas de vegetação secundária, degradadas, que já foram abandonadas. Mas uma imagem de setembro de 2015 mostrou que dois fragmentos de floresta foram afetados”, explica. De acordo com Moreira, a tendência é que o desmatamento “siga” a rodovia até o município de Manacapuru, a cerca de 70 quilômetros de Iranduba.

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