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‘Polícia de hoje só é boa para o crime organizado’, diz procurador

Setores conservadores do Congresso, como a bancada da bala e a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, consolidaram na Constituição o modelo de polícia ditatorial

Divulgação/GGN

Marlon Weichert: “Se a polícia matadora fosse boa para a segurança pública, não teríamos 60 mil mortos ao ano”

GGN – “A impunidade das graves violações de direitos humanos no passado estimula a continuidade desse padrão de violência pelo Estado”, disse o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert. O que significa que as chacinas de Osasco e Barueri que resultaram na morte de 19 pessoas, são resquícios de um “modelo fracassado” de polícia “treinada para matar”. Para ele, a federalização das investigações de crimes cometidos por agentes do Estado não basta para frear a violência policial. A única saída para essas violações, disse o procurador, é a reforma da segurança pública brasileira.

Enquanto alguns especialistas acreditam que a solução para a violência policial seria retirar das mãos da Justiça Estadual as investigações, com o receio de serem arquivadas por influência dos próprios autores dos crimes, e transferi-las para o nível federal, o procurador-regional explica que o processo no MPF não é tão simples, e acredita que a ação não é suficiente para barrar outras chacinas.

“O instituto de deslocamento de competência para o nível federal já tem aproximadamente 15 anos que foi implementado, mas é muito tímido, porque funciona a posteriori. Tem que se esperar e provar que a Justiça Estadual foi incapaz de investigar e processar o caso no sistema Federal. O que, muitas vezes, é extremamente complexo porque não há mais como produzir as provas, muitas delas se perderam. O procurador regional tem uma série de casos que atualmente está analisando relacionados a graves violações”, explicou.

“Mas isso não vai resolver o problema. É uma pequena ponta. O problema da violência policial depende de uma redução drástica da impunidade, que é muito incentivador, mas sobretudo de uma reforma institucional do modelo de polícia brasileiro”, completou.

No embate sobre a quem compete investigar esses crimes, Marlon criticou a tentativa da Justiça Militar de tomar para si ou mesmo interferir nas apurações. “Nesse caso de Barueri, não há nenhuma dúvida, nenhuma, de que a Justiça Militar é incompetente. Foram homicídios! A Constituição diz em letras garrafais: crimes dolosos praticados por militar contra a vida de civis é competência da Justiça comum. É um conflito só na cabeça de quem está lidando com isso, porque juridicamente a questão é muito cristalina”, contestou.

E disse que a federalização, ainda que caminho possível, nunca resolveu o problema. “A solução é fazer uma polícia democrática. A polícia de hoje só é boa para o crime organizado. Porque para o pobre, não é”, concluiu.

Polícia brasileira

Marlon explica que se consolidou na Constituição o nosso modelo de polícia ditatorial, que continua vigendo graças ao apoio da bancada da bala e da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, setor conservador do Congresso “que cada vez mais se concretiza e se fortalece”. Para ele, “não precisa ser muito inteligente para perceber” o fracasso do sistema para todos as partes.

“Se a polícia matadora, que a gente chama de mão dura, fosse boa para a Segurança Pública, não teríamos 60 mil pessoas sendo mortas por ano, um número absurdo de estupros e roubos acontecendo. (…) Os policiais sofrem com a violência e com a corrupção que têm nas corporações. Todo mundo que quer olhar para o problema com sinceridade, sem manipulação sabe que está esgotado. Mas falta a coragem e a liderança para fazer uma discussão séria. A política criminal brasileira está fracassada, a meu ver”, manifestou.

Atira para matar

O procurador regional da República recordou a história brasileira para não deixar dúvidas de que a Polícia Militar não é treinada para promover a cidadania, mas para combater o inimigo, ao contrário do que seria a polícia democrática que ele defende.

“O que o militar sabe fazer? É treinado, e bem treinado, para combater o inimigo. Não é à toa que atira para matar. Porque isso é um treinamento militar. Agora, uma polícia democrática passa de uma premissa distinta que é promover cidadania”.

Ele lembra que o atual modelo foi incorporado na ditadura para “combater a dissidência política” e para manter o “controle sobre os trabalhadores nas demandas por direitos sociais”. Mas com a democratização, o fim da perseguição política não caminhou com o fim do modo de operação do policial, de que “está autorizado pelo Estado a ser um repressor com alta violência, protegendo-o com a sua impunidade e ocultando seus crimes”.

Diante desse cenário, Marlon alertou: “Isso permanece como cultura, como estrutura, e pior, permanece como quadro normativo”.

Origem da impunidade

Como um dos procuradores mais atuantes do Ministério Público Federal (MPF) nas investigações dos crimes cometidos pela ditadura, Marlon lida com as dificuldades de a Justiça brasileira não se posicionar diante da condenação do país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no revés da vigente Lei da Anistia.

“A condenação (dos casos Gomes Lund e Araguaia) foi pela impunidade em relação aos crimes de graves violações de direitos humanos, de desaparecimento forçado e de execução sumária cometidos durante a ditadura militar. (…) Teoricamente, toda a doutrina de direito internacional reconhece que essa decisão é de cumprimento obrigatório e vinculante para todas as autoridades e todos os órgãos brasileiros”, disse.

Entretanto, o Supremo votou pela manutenção da Lei da Anistia em abril de 2010, e até hoje entende que esses crimes são passíveis de prescrição. A consequência, entende o MPF, é que a impunidade no passado estimula o que estamos assistindo hoje, com a falta de respostas penais para as chacinas.

Marlon Alberto Weichert lembra que as decisões da Corte Interamericana são respaldadas, ainda pela Convenção Americana de Direitos Humanos e com o direito internacional, desde o Estatuto do Tribunal de Nuremberg, em 1945 – “um conjunto de normas internacionais que vinculam os Estados e agentes”.

Com isso, as esperanças para outros julgamentos internacionais são enfraquecidas.

CIDH julgará chacina da polícia

Um caso semelhante ao da região de Osasco e Barueri está pendente de julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). É a chacina na favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1994, quando 13 pessoas morreram com tiros na cabeça durante

De acordo com o procurador regional, muito provavelmente o caso será julgado em 2016 pela CIDH. Os mais de vinte anos foram o tempo necessário para todos os procedimentos na Corte internacional.

“Se o sistema interno falha ou demora, as vítimas podem levar o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, diz o procurador. Esse é um dos mecanismos possíveis para se colocar em cheque a impunidade da violência policial no Brasil, no qual qualquer cidadão pode requisitar o apelo jurídico.

Diante de todas as fragilidades, sejam de obstáculos herdados pela história da ditadura brasileira ou de condicionantes judiciais que perpetuam na Constituição e no Supremo Tribunal, o procurador conclui que a mudança só pode partir de uma reforma no sistema, por meio do debate entre a sociedade.

“Não avançamos em termos de policiamento desde a Constituição, pelo contrário, temos regredido no ponto estrutural. Sem uma discussão realmente abrangente sobre o papel da polícia brasileira e por que ela não atende a nenhum interesse legítimo atual, nós não vamos a lugar nenhum. Não adianta federalizar cinco, dez, quinze, vinte ou trinta crimes. Sem trabalhar com a estrutura, o dia-a-dia, a razão de ser e o modo de atuar da polícia, nós estamos fadados a repetir chacinas, e mais chacinas, e mais chacinas”, finalizou.