Arquitetura da exclusão

Para urbanista, questão habitacional não se resolverá com leis, mas com luta social

Professora Ermínia Maricato diz que não faltam leis que garantam políticas de moradia, mas juízes que reconheçam a função social da propriedade

FEM-CUT

Poder público não fiscaliza ocupações em Áreas de Proteção de Mananciais porque não interessa ao capital imobiliário

São Paulo – Para a professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Ermínia Maricato, dinheiro não basta para se fazer políticas de habitação, é preciso garantir a aplicação da lei. “Não dá para discutir moradia sem discutir cidade”, afirma. Ela lembra que existe hoje um avançado e sofisticado arcabouço jurídico, reunindo leis da Constituição, do Estatuto das Cidades e dos planos diretores municipais, que deveriam regular o processo de ocupação do solo urbano, mas que esse conjunto legal só vale para uma parte da cidade. “Não vai ser com lei que vamos resolver os problemas urbanos, vai ser com luta social”, diz Ermínia.

Em seminário realizado hoje (24) no Instituto Pólis – em parceria com o Centro Ecumênico de Serviços, Evangelização e Educação Popular (Ceseep) –, com o tema “A cidade do capital e o direito à cidade”, Ermínia tratou da lógica mercantil que determina a ocupação das cidades, e que têm como resultado a exclusão e invisibilidade da população mais pobre, obrigada a ocupar espaços à margem da lei, como, por exemplo, em áreas de proteção de mananciais, nos arredores das represas Billings e Guarapiranga, em São Paulo. “No Brasil, a lei é seguida em uma parte da cidade. Não é seguida nas áreas onde moram os trabalhadores.”

Prefeitura de Canoas/RS
Ermínia Maricato, arquiteta

Para Ermínia, os magistrados decidem sempre em favor da propriedade privada, e ignoram dispositivos legais para a desapropriação de imóveis nas áreas urbanas que não estejam cumprindo a função social da propriedade e, portanto, deveriam ser destinados a políticas de moradias.

Por outro lado, os poderes públicos fecham os olhos para ocupações ilegais, como nas margens das represas, e ainda culpam os moradores, por conta dos impactos ambientais em áreas que são responsáveis pelo fornecimento de água a toda população.

Loteamento e ocupações ilegais não estão nas áreas mais nobres”, disse a professora, acrescentando que remoções e desocupações acontecem em áreas valorizadas, pois a concentração de pessoas com nível de renda inferior rebaixa os preços dessas áreas.

Para ilustrar, Ermínia lembrou a resistência dos moradores de Higienópolis, centro de São Paulo, contra a construção de uma estação do metrô no bairro, que traria como consequência a circulação de “gente diferenciada”, num episódio que se tornou símbolo da segregação e da discriminação contra a população pobre na capital paulista.

“A maior besteira é discutir reforma habitacional sem discutir a cidade, sem discutir reforma urbana”, afirmou a professora. Para ela, o capital imobiliário dita as regras de ocupação dos solos e influencia a política, por meio das doações às campanhas eleitorais.

Ela disse que 70% dos deputados federais integram a chamada “bancada BBB”, defensora dos interesses de grandes latifundiários (boi), das armas (bala) e das igrejas neopentecostais (bíblia).

Entre as saídas apontadas pela especialista, está o desenvolvimento de planos metropolitanos de ocupação e moradia, que garantissem a integração das esferas de poder, por exemplo, no mapeamento de áreas livres que poderiam ser objeto de políticas habitacionais ou na oferta de serviços como saneamento básico e transporte.

Segundo a professora, outra ferramenta importante para o enfrentamento e a transformação dessa realidade de exclusão é a ampliação da consciência sobre a cidade real, que dê “visibilidade aos números dos excluídos e à escala da ilegalidade”. Por fim, Ermínia alerta: “Essa cidade vai ‘pegar fogo’ se for despejar todos os prédios ocupados. Vamos tratar uma questão social como uma questão individual?”