capital machista

Pesquisa sobre qualidade de vida expõe desigualdade entre meninos e meninas em SP

Para especialistas em desigualdade de gênero, a inclusão da temática nos planos de educação é um caminho para desconstruir a ideia de que o mundo é a casa do homem e a casa é o mundo da mulher

Heloisa Ballarini/Secom PMSP

Para as especialistas, crianças e adolescentes de ambos os sexos têm de ter os mesmos direitos e tempo para brincar

São Paulo – Os Indicadores de Referência de Bem-Estar no Município (Irbem), específico sobre crianças e adolescentes de zero a 17 anos, constatou que a qualidade de vida dos meninos e meninas paulistanos é desigual. Na pesquisa realizada pela Rede Nossa São Paulo, para contribuir no debate sobre a redução da maioridade penal, a desigualdade de gêneros acabou se destacando: enquanto 68% dos meninos paulistanos realizavam atividades coletivas com outras crianças no seu tempo livre, apenas 32% das meninas faziam o mesmo. Ao mesmo tempo, 29% delas cuidavam de tarefas domésticas, ante somente 6% deles.

Essas respostas foram dadas sobre questões abertas, em que as crianças e adolescentes entrevistadas podiam responder livremente. Mesmo quando não estão fazendo tarefas domésticas as meninas passam a maior parte do tempo em casa: 26% delas usam o tempo livre para ver televisão e outras 13%, para dormir. Entre os meninos, os percentuais foram 14% e 7%, respectivamente.

Segundo a Rede, isso impactou diretamente na percepção das meninas quanto à qualidade de vida na cidade. Entre os 43% que se consideravam “pouco satisfeitos”, a maior parte era de meninas. Já entre os 18% “muito satisfeitos”, a maioria era menino.

Para a socióloga e diretora da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir Maria José Rosado Nunes, esse resultado expressa claramente que vivemos no Brasil “uma situação de desigualdade de gênero absurda”. Para Maria, isso afeta a qualidade de vida delas. “É muito injusto. Enquanto os meninos têm a liberdade de decidir o que querem fazer da sua vida, as meninas já nascem com isso pré-determinado por uma condição biológica. Coloca-se para as meninas um horizonte de vida muito mais limitada que os meninos”, afirmou.

Estar na rua, brincar, ir e vir e permanecer em espaços públicos é parte de um processo importante de desenvolvimento saudável de meninos e, também, de meninas, segundo a psicóloga e militante do Coletivo Mulheres na Luta Elânia Lima. “Estar na rua, brincando e socializando com outras crianças e os adolescentes ajuda na ampliação de repertório social, cultural. Não viver isso pode limitar, também, as escolhas que farão com relação à profissão, estudos ou à vida social e afetiva”, afirmou.

Para Elânia, como caminho para garantir que tanto as meninas quanto os meninos tenham direito às atividades sociais, é preciso desconstruir a ideia de que o cumprimento de tarefas domésticas é obrigação feminina e que os momentos de lazer e ocupação dos ambientes públicos é masculino também deve ser um esforço da escola e da sociedade.

“Em casa, é importante mostrar aos meninos que eles também moram ali e que as tarefas de limpeza e cuidado também são funções deles, sem dizer que ele ajudoua irmã ou a mãe. Os homens adultos deviam agir da mesma forma ese comprometer com o cuidado da casa”, destacou. Outro cuidado importante é combater estereótipos de que meninas que ficam na rua “são vagabundas, marias-chuteiras, fofoqueiras e outras coisas que são ditas sobre a presença feminina nos espaços e momentos de lazer na rua”.

Uma pesquisa da ONG Plan International Brasil, realizada em 2013, já havia indicado que as meninas brasileiras ainda sofrem com a desigualdade sobre o tempo livre. Foram ouvidas 1.771 meninas de seis a 14 anos, em cinco estados brasileiros. Entre as que vivem em áreas rurais, 74,3% declararam limpar a casa cotidianamente. Nos ambientes urbanos, o percentual é menor, mas ainda significativo: 67,6% das estudantes de escolas públicas e 46,6% das de escolas particulares realizam tarefas domésticas. Já o percentual de meninos que realiza alguma tarefa doméstica não supera os 13% em nenhuma das condições citadas.

“Simplesmente por ser menina, ela é tratada como a pessoa responsável pelas tarefas domésticas, o que tira dela parte de sua infância quanto ao direito de brincar, estudar e de não assumir responsabilidades em substituição de adultos”, concluíram as pesquisadoras.

Tanto Elânia quanto Maria José veem na escola um dos espaços principais para enfrentamento dessa desigualdade. E que a inclusão do debate de gênero nos planos de educação municipais, estaduais e federal é fundamental para isso.

“A sociedade inteira, inclusive a escola, já ‘trabalha’ as relações de gênero. Só que de uma forma que muitas vezes reforça as desigualdades e estereotipa os comportamentos das crianças e adolescentes. Quando se elogia uma menina por ela já saber passar um café ou por ser sensível e delicada e se critica as meninas que gostam de futebol ou que brincam na rua, estamos ensinando sobre gênero também”, observou Elânia.

Para a militante católica, o esforço de parlamentares e grupos religiosos contra a inclusão dos termos gênero e educação sexual, como parte das estratégias de combate à discriminação e à violência contra as mulheres nos planos de educação revela “um atraso social e cultural no Brasil e uma injustiça estrutural contra nós mulheres”.

“Seria absolutamente necessário tratar estas questões nas escolas. Gênero e educação sexual podem e devem ser trabalhados, de uma maneira adequada, sem ser enviesados por determinados grupos da sociedade”, completou Maria José.

Ela destaca que a situação revelada pela pesquisa – quem nem tinha por objetivo realizar um debate sobre desigualdade de gênero – acompanha as mulheres por toda a vida. “Essa diferença de tratamento reforça a ideia de que somos propriedade dos homens. Que devemos ficar em casa como um objeto dos homens, que podem fazer o que quiserem conosco, inclusive bater ou matar quando fazemos coisas que expressem nossa liberdade”, disse Maria José.