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Urbanização precisa ser repensada frente aos desertos criados pelo capital

Debate critica a tendência indiscriminada de urbanização no mundo e pede que se pense alternativas para equilibrar a relação da humanidade com a natureza

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Camila Moreno, socióloga: “Aqui na América Latina é fundamental discutir a desurbanização”

São Paulo – A Organização das Nações Unidas (ONU) e as agências internacionais projetam que em 2050 a população mundial será de 9,6 bilhões de pessoas, 2,5 bilhões a mais do que atualmente. A maior parte desse crescimento ocorrerá na Ásia e na África e deverá seguir o rumo da urbanização, consolidando cada vez mais a forma de viver em grandes cidades, que os neoliberais chamam de “megacities”, conglomerados com mais de dez milhões de pessoas.

Atualmente, a cultura dominante considera o processo de urbanização como tendência “natural”, como se o destino do cidadão não pudesse ocorrer de outro modo. “A tendência às megacities se coloca como eixo estrutural para o planejamento de longo prazo. Toda a política de mudanças climáticas pressupõe trazer as pessoas para as cidades”, afirmou a socióloga Camila Moreno, que já trabalhou com biodiversidade e clima. Ela participou ontem (12) do debate “ Bem-vindos ao deserto do capital: crise hídrica, meio ambiente e capitalismo”, no seminário Cidades Rebeldes, no Sesc Pinheiros, em São Paulo.

Camila defendeu a perspectiva de que esse modo de encarar a realidade das cidades é uma ideologia que se presta aos interesses de reprodução do capital. “As cidades são cativeiros de consumidores”, afirmou. O meio urbano é o espaço no qual o capitalismo se reproduz, e o cidadão cumpre o papel de consumidor, em meio a uma cultura colonizada pela ideologia do capital. “David Harvey ensina que a urbanização é uma dinâmica essencial para o capitalismo”, disse Camila, em referência à obra do geógrafo britânico que foi a principal estrela do seminário, realizado entre terça-feira (10) e ontem.

Uma ideia consensual entre os debatedores da mesa foi de que o capitalismo é uma força formadora de desertos. Alexandre Delijaicov, arquiteto da prefeitura de São Paulo e professor da FAU-USP, cujo trabalho é focado na pesquisa da cidade com relação aos rios, afirmou que a crise da água em São Paulo não é hídrica, de natureza técnica, mas tem um caráter político e social. “O que temos nas cidades é a prova concreta, os canais de rios são transformados em esgoto a céu aberto. A nossa crise foi iniciada há 500 anos pelo massacre dos espaços públicos das águas”, disse, referindo-se às áreas de várzea, que ele chama de a margem larga do rio, que em São Paulo e outras cidades foram ocupadas por construções, obedecendo à lógica que transforma todo território em mercadoria.

“A crise hídrica é prova concreta de nossa fragilidade institucional no Brasil. Temos de nos rebelar a isso, a esse urbanismo mercantilista e rodoviarista; não tem nada mais peçonhento do que isso. O capital é um construtor de desertos”, afirmou. “A infraestrutura hídrica está no âmbito da infraestrutura das mentalidades e do imaginário, e isso só pode ser virado de cabeça para baixo se nós mudarmos isso, a apropriação do espaço das águas”, afirmou, ao propor que para minimizar a crise são necessários investimentos públicos em dois setores; um é o de saneamento e saúde, e outro de educação e cultura.

A historiadora Virgínia Fontes, da pós-graduação na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde atua com estudos sobre o marxismo, falou da importância da rebelião para enfrentar o capitalismo atualmente. “Tem de ser na cidade e no campo, não pode pensar só nas cidades, temos movimentos sociais urbanos e rurais, temos de estar com essas lutas no dia a dia, sair e enfrentar a polícia; essas lutas tem de ser as nossas lutas, ligadas à classe trabalhadora”, disse.

Virgínia também lembrou que enfrentar o capital significa enfrentar o Estado e as formas do trabalho criadas pelo capital. “Classe é uma categoria de vida, não é econômica, a gente entra na vida nela e sai da vida nela”, destacou. “O deserto do capital exige pensar que o fundamento da crise é a ruptura sociometabólica, que começou no seculo 15 e 16 e se aprofundou pela revolução industrial e desde então não parou de se aprofundar”. Virgínia considera como “ruptura sociometabólica” o processo de transformação da natureza de caráter destruidor, operado pela cultura humana, um processo contraditório, segundo ela: “Devemos humanizar a natureza e não nos desumanizar nesse processo”, disse.

No final, os debatedores concluíram que contra o deserto do capital, a nossa tarefa é povoar os imaginários. “Aqui na América Latina é fundamental discutir a desurbanização, por respeito à luta política dos movimentos sem terra, extrativista, indígenas, a resistência a Belo Monte, Cais Estelita, é preciso pensar utopias para sair do capitalismo”, disse Camila, que explicou ter proposto a ideia da desurbanização como uma provocação.

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