outra perspectiva

Fim da guerra às drogas poderia liberar 25% da população carcerária

Especialistas defendem penas alternativas para crimes relacionados ao tráfico; na média, país tem hoje 1,7 preso para cada vaga, segundo o estudo 'Mapa do Encarceramento', divulgado hoje

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Cartun de Arnaldo Branco para campanha proibida em São Paulo pelo governo Alckmin por suposta apologia às drogas

São Paulo – A legalização das drogas ou a adoção de penas alternativas para o pequeno traficante poderia liberar até 25% das vagas em presídios para combater a superpopulação carcerária no país, que atualmente está em torno de 563 mil pessoas, que enfrentam um déficit no sistema prisional de 206 mil vagas, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Se a gente regulasse a produção, o comércio e o consumo de todas as substâncias, como uma atividade legal, a consequência seria colocar um quarto de presos na rua, imediatamente”, afirma o vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Cristiano Maronna.

Segundo o estudo Mapa do Encarceramento – Os Jovens no Brasil, divulgado hoje (3) pelo governo federal, por meio da Secretaria Nacional de Juventude (SNJ) e Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), as prisões por tráfico são 25,3% da população carcerária em regime fechado.

“Os crimes contra o patrimônio correspondem à metade das prisões, portanto, (para a sociedade brasileira) esse é o valor mais importante a ser defendido pela justiça criminal; em segundo lugar, vêm os crimes com drogas que não são violentos, e isso é só o comércio de drogas mesmo, como atividade econômica ilegal, enquanto os crimes violentos aparecem em terceiro lugar”, afirma Jacqueline Sinhoretto, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), autora do estudo divulgado hoje.

A relação entre presos e vagas no país, segundo o Mapa do Encarceramento, é de 1,7 preso para cada vaga, mas essa relação chega a 3,7 em Alagoas, a maior do país, e em São Paulo, que tem a maior população carcerária do país, com 190 mil presos, ou 37% do total, a relação é de 1,9. “Temos que encarar de frente o problema de como o país trata as drogas; eu acredito no caminho de volta, focado em penas alternativas”, afirma Ivan Marques, diretor do Instituto Sou da Paz, que também produz pesquisas sobre sistema carcerário e drogas.

Confira a seguir entrevista com Cristiano Maronna, do IBCCrim, sobre a questão de drogas e encarceramento:

A Lei 11.343, de 2006, aumentou o número de prisões por tráfico: de 2005 a 2013, triplicou o número de prisões por tráfico e apesar de a legislação ser mais branda com o usuário, ela deixou brecha para que os policiais enquadrassem casos de uso de drogas como tráfico…

Não só os policiais, mas também os promotores de Justiça e juízes de direito. Essa subjetividade excessiva, que permite considerar uso como tráfico, é que criou esse superencarceramento a partir da edição dessa lei.

Foi o contrário do efeito esperado da lei, e existe hoje algum amadurecimento para mudar essa legislação?

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Maronna: Um quarto dos presos seriam soltos com regulação da produção e consumo de drogas

Nós estamos aguardando o Supremo Tribunal Federal colocar em julgamento um recurso extraordinário no qual vai ser discutido a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Se o Supremo entender que esse artigo é inconstitucional, ou seja, que o Estado não tem legitimidade para incriminar conduta de usar drogas, ou portar drogas para uso pessoal, então, isso vai se tornar um fato atípico, vai deixar de ser crime.

A partir daí, vai surgir uma discussão sobre qual critério é adequado para haver a distinção entre uso e tráfico, e nós já estamos em conversações com diversos órgãos, pois há muitas pessoas envolvidas nisso, para criar critérios baseados na quantidade. Então, cada substâncias poderá ter uma quantidade máxima que a pessoa poderá portar e abaixo disso ela é considerada usuário. Essa é uma possibilidade que pode surgir a partir da decisão do Supremo. Outras possibilidades são também a discussão sobre a autorização para autocultivo de maconha, permitindo o usuário plantar até seis, oito ou dez pés para consumo, e a criação de clubes sociais de cannabis, como existem na Espanha, por exemplo.

Isso seria para tirar o atraso do Brasil, não?

O Brasil é hoje um dos mais atrasados. Na América Latina, a Colômbia e Argentina já deixaram de considerar crime a posse para consumo pessoal, o Equador e o Peru estão discutindo isso, o Chile legalizou a maconha medicinal, enfim, nós certamente estamos na rabeira, somos os mais atrasados na América Latina.

Se as drogas fossem legalizadas, qual seria o impacto no sistema carcerário?

Bom, a gente sabe que um em cada quatro presos no Brasil hoje está lá por conta da Lei de Drogas, então, a primeira consequência, imediata, seria que 25%, ou um quarto, deixariam a prisão. Se a gente regulasse a produção, o comércio e o consumo de todas as substâncias, como uma atividade legal, a consequência seria colocar um quarto de presos na rua, imediatamente.

Essa projeção tem alguma comparação econômica?

Olha, o que a gente percebe é que no Colorado (EUA), onde a produção, o comércio e consumo da maconha se tornaram atividades legais, a arrecadação de tributos subiu muito, inclusive, chegou ao ponto de a autoridade fiscal determinar uma devolução do superávit de tributos para a população. No Uruguai, a regulação da cannabis implica direcionar os recursos obtidos com essa atividade na educação e na saúde, então, é construir escolas, criar campanhas informativas, educacionais, criar hospitais, postos de saúde, pensar em programas de tratamento, são ideias que me parecem interessantes, você vincular a receita tributária a iniciativas na área de saúde e educação.

Mas o Brasil tem maturidade para discutir essas propostas e mudar a política de guerra às drogas?

Nós temos maturidade sim. Muita gente pergunta ‘será que estamos preparados para uma mudança na política de drogas?’ Mas eu acho que a pergunta que tem que ser feita é ‘nós estamos preparados para continuar a conviver com o flagelo da guerra às drogas?’

A guerra às drogas é o que causa corrupção, violência, superencarceramento, que mata inocentes, ou seja, crianças nas comunidades carentes, e a resposta me parece evidente: não, não temos mais condições de conviver com essa realidade. É preciso mudar, porque esse modelo se esgotou. Me parece que preparados para viver sob a égide da guerra às drogas nós não estamos. Temos que reconhecer isso e ter coragem para buscar uma alternativa.

No fim de maio foi lançada a Plataforma Brasileira de de Política Contra as Drogas (PBPD), reunindo entidades em torno da necessidade de mudar o conceito de guerra às drogas. Como será a atuação da plataforma?

Na verdade, nós temos quase 30 organizações que fazem parte da plataforma, e elas comungam o diagnóstico de que o proibicionismo falhou e de que é preciso construir alternativas à proibição. Nós não temos um consenso dentro das entidades sobre qual modelo ideal, se a legalização, a regulação total, se é a descriminalização, se é a descriminalização de umas substâncias, e a regulação de outras, mas nós vamos atuar pontualmente a partir de demandas concretas que surgirem no cenário para tentar impulsionar a política, ao mesmo tempo que vamos amadurecer esse debate a respeito de qual modelo que nós defendemos. Mas hoje a plataforma não tem um modelo pronto e acabado que contemple o consenso de todas as entidades a respeito disso. Nós temos o consenso a respeito do diagnóstico, e a respeito da necessidade de mudança.

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