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Copa e Olimpíadas transformam cidades em ‘estados de exceção’

Debate sobre megaeventos no Seminário Internacional Cidades Rebeldes critica a lógica que predomina nas cidades hoje e leva a uma flexibilização de regras para promover a livre circulação do capital

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Moradores da Vila Autódromo, na zona sul do Rio de Janeiro, protestam contra as remoções: direito à cidade

São Paulo – A apropriação do bem público pelo setor privado tem raízes históricas e culturais no Brasil, mas nada se compara com a “lógica de capital” que se impõe às cidades atualmente, e que fica mais evidente com a realização de megaeventos esportivos e grandes projetos, como demonstrou a Copa em 2014, e como apontam os conflitos em torno das quase 200 mil remoções de famílias pretendidas para Olimpíadas do próximo ano no Rio de Janeiro.

Se no cotidiano a vida é regulada por normas e leis, para a realização desses eventos, como de resto para a circulação do capital no espaço urbano, as regras precisam ser flexibilizadas. É o que o professor e urbanista Carlos Vainer, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (Ippur), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), chama de “cidade de exceção”.

No caso da Copa, a cidade de exceção se estabeleceu por meio das exceções à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), isenções tributárias para as empresas relacionadas à Fifa e a Lei Geral da Copa, que consolidou garantias para a realização do evento. Em uma de suas flexibilizações, essa lei retirou a proibição de venda de bebidas em estádios, prevista no Estatuto do Torcedor, e autorizou a bebida na marca de preferência da Fifa.

“É a ilegalidade legal e a PPP (parceria público privada) torna-se a democracia direta do capital”, afirmou Vainer a um público predominantemente jovem que nesta quinta-feira (11) acompanhou o debate “Megaeventos esportivos e megaprojetos em cidades à venda”, no Seminário Internacional Cidades Rebeldes, realizado pela editora Boitempo no Sesc Pinheiros, em São Paulo.

“O megaevento é um capitalismo concentrado em todas as suas feições. Assim, por meio dele podemos entender a sociedade em que vivemos. Mas dá a entender também que a sociedade é melhor do que é nessa forma concentrada”, disse o juiz Jorge Luiz Souto Maior, que tem despontando como defensor dos direitos trabalhistas em sua atuação.

“Veja o que foi a Copa e o que é o Brasil. O Estado se uniu às empreiteiras e à Fifa, em busca de dividendos políticos. Mas espaços públicos foram privatizados para a Fifa, o comércio autorizado pela Fifa se sobrepôs ao comércio local. A privatização dos espaços foi feita de forma abrupta, tendendo à suspensão da Constituição”, afirmou Souto Maior ao público.

A relação entre grandes eventos, política e manifestações é histórica. Em 1936, as Olimpíadas em Berlim foram o cenário para Adolf Hitler afirmar o nacional socialismo na Alemanha. Em 1968, na Cidade do México, um massacre de estudantes dez dias antes das Olimpíadas quase fez a organização cancelar o evento esportivo, que ficou com a imagem manchada. Em 1970, a vitória do Brasil na Copa no México foi usada pela ditadura militar para promover um clima de ufanismo no país, enquanto a esquerda sucumbia nos porões da repressão.

“Mas as manifestações brasileiras desde 2013 abrem um novo capítulo na história da Copa e das Olimpíadas. Aqui se desvendaram alguns elementos centrais que mudaram essa lógica. A cidade é um desses elementos, ela desempenha um papel no capitalismo contemporâneo. A apropriação dos territórios da cidade reflete as novas formas do capital”, diz Carlos Vainer.

No debate, os ataques ao neoliberalismo das cidades, que atropela o direito ao espaço, teve o contraponto do sociólogo Luis Fernandes, que é presidente da Finep, agência de financiamento de estudos e projetos ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e na gestão anterior foi da coordenação executiva da Copa. “Minha posição é que o megaevento é uma oportunidade de promoção das cidades. Os megaeventos se transformaram em negócios bilionários para as entidades detentoras, como a Fifa e os comitês para os jogos olímpicos e paraolímpicos. As receitas desses eventos mantêm por quatro anos essas entidades, até a realização de um novo evento”, afirmou.

Mas Fernandes também falou sobre as acusações de corrupção que recaem sobre a Fifa. “Eles vendem direitos de transmissão na mídia e mais patrocínios, e tem também a venda de ingressos. São grandes fontes de receita que estão na origem das acusações de corrupção na Fifa. Uma acusação envolve 25 pessoas do Comitê Executivo da Fifa, na compra de votos para escolher as cidades sedes da Copa. Outra acusação é pagamento de propina nos direitos de transmissão. Há ainda os patrocínios e a venda ilegal de ingressos. Portanto, as quatro fontes de receita têm laços com a corrupção”, afirmou.

Flexibilização de direitos e repressão

O juiz Jorge Luiz Souto Maior também defendeu que existe uma relação da Copa com o debate atual sobre o projeto de terceirização indiscriminada que tramita no Congresso Nacional. “O Ministério do Trabalho chegou a declarar que essas mesmas obras de estádios não seriam realizadas fora da Copa por conta das condições de trabalho”, referindo-se às mortes em obras. “Eu escrevi que a terceirização era um fenômeno que ia decorrer da Copa. Havia uma ação do Ministério Público do Trabalho de resistir à terceirização, mas eu afirmei que na sequência viria a terceirização e hoje temos o PL 4.330 e agora está no Senado para ampliar a terceirização”, afirmou.

Souto Maior também destacou que “houve a explicitação da força repressora do Estado. Todos unidos para impedir e reprimir as manifestações. Em 15 de março, na Consolação, a manifestação foi duramente reprimida, fomos impedidos de falar na praça Roosevelt. As prisões, impedimento da greve dos metroviários no primeiro dia da Copa. O estado de exceção se revelou contra a sociedade, sufocando a classe trabalhadora. Mas não foi algo particular àquele megaevento esportivo. É a lógica do modelo de sociedade capitalista, que não consegue ser minimamente social e democrata”, conclui.

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