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Ciclovia na Paulista será indutora do uso da bicicleta, afirma ativista

Daniel Guth, da associação Ciclocidade, defende que ciclovia inaugurada hoje (28) tem importância simbólica na busca de novas políticas de mobilidade

André Tambucci / Fotos Públicas

Ciclovia na Paulista: plano de mobilidade até 2030 prevê capacidade para cidade ter de 10% a 15% das viagens por bicicleta

São Paulo – A ciclovia na Avenida Paulista, inaugurada neste domingo (28), deverá ser indutora de novos ciclistas na cidade, defende o ativista Daniel Guth, da Ciclocidade, associação que representa os ciclistas urbanos. Ele afirma que a ciclovia “tem um componente importantíssimo de se transformar no cartão postal da bicicleta em São Paulo, ela tem essa simbologia, um impacto no imaginário da cidade, especialmente para quem passará a usar a bicicleta porque tem uma ciclovia na avenida paulista, porque ela será indutora de muitos novos ciclistas na cidade”.

Em entrevista à RBA, Guth diz que as críticas dos conservadores às ciclovias provêm de setores que ele chama de rodoviaristas, e “mantêm privilégios adquiridos ao longo dos anos que foram incorporados como direitos, como por exemplo estacionar na rua em qualquer lugar da cidade. Isso é encarado como um direito, mas é um privilégio, e é um privilégio tosco até”.

Confira a entrevista:

Como você vê a resistência cultural em relação às ciclovias na cidade?

No nosso entendimento, essa resistência já caiu, especialmente a da Paulista, que é entregue neste domingo. Ela pode ter suscitado um debate e uma resistência em alguns setores no início, mas hoje ela é um consenso.

É claro que desde sempre a gente sabia que haveria resistências porque em qualquer lugar do mundo foi assim e é assim.

Isso vem dos setores mais retrógrados, mais resistentes da sociedade, que ainda cultuam o velho modelo rodoviarista. Mantém privilégios adquiridos ao longo dos anos que foram incorporados como direitos, como por exemplo estacionar na rua em qualquer lugar da cidade. Isso é encarado como um direito, mas é um privilégio, e é um privilégio tosco até. Quando você questiona esse modelo que perdura há quase um século, de uma cidade orientada visando à lógica do motor, quando você traz isso para a escala humana, por meio da consolidação de um sistema cicloviário, é natural que houvesse resistência desses setores que estão perdendo esses privilégios.

No fim das contas, você consegue trazer para o debate sobre a mobilidade urbana essa discussão de uma profunda desigualdade social que ainda é presente na nossa cidade. Não é diferente com a bicicleta, como também não é diferente com o transporte público. No momento em que você privilegia o transporte público em detrimento do individual motorizado, você também tem de enfrentar esses privilégios. O carro atende a uma minoria de 29% das viagens da cidade, mas ocupam 79% do espaço viário disponível.

Então, quando a gente começa a desenvolver o sistema cicloviário é inato nesse processo enfrentar essa profunda desigualdade que está presente na mobilidade urbana da cidade. A desigualdade também é econômica, habitacional, mas na mobilidade urbana ela se dá de forma acentuada.

Você acompanhou o debate sobre as ciclovias em outras cidades? A resistência também acontece em outras cidades?

Em todas essas cidades a bicicleta está em discussão e em todas elas há uma discussão suscitada pela perda de privilégios e ainda por uma orientação do planejamento e do crescimento da cidade voltado ao rodoviarismo. Isso é presente em todas as cidades de pequeno, médio ou grande porte no Brasil, estimuladas pela economia, pela venda de automóveis, mil PACs em aberto para financiamento de obras viárias, então, há todo um sistema estimulado pela imprensa, que é muito financiada pela própria indústria automobilística. Vai levar muito tempo para a gente romper com essa lógica. É um processo longo ainda.

E as particularidades desse debate?

Brasília, por exemplo, que está no topo de quilometragem de ciclovias, não teve resistência nenhuma porque a cidade fez um sistema cicloviário que era para não atrapalhar ninguém, mas também não atende ao ciclista. E isso não resolve nada. Brasília tem terrenos abertos aos montes e eles colocaram a ciclovia onde não atrapalha e isso completou os 400 km que eles queriam.

Não houve resistência como em São Paulo, mas também não houve adesão, apoio e uso de fato para a mobilidade urbana. Então, é inócuo, é um sistema que a partir de agora o pessoal de Brasília mesmo está lutando para mudar, porque tem de consertar ou refazer, o que é pior. Já São Paulo trouxe para o cerne da discussão esse debate. Rio de Janeiro é diferente porque é uma cidade em que foi feita em doses homeopáticas. As primeiras ciclovias da cidade são da gestão do Alfredo Sirkis, quando era secretário de Meio Ambiente do Rio, na década de 90.

Já São Paulo está consolidando um sistema de 400 km em dois, três anos de gestão. O debate é muito mais rápido, mais frenético, as implantações vão pipocando todos os dias, então, é outro ritmo que a cidade e as pessoas que não estão acostumadas em ver mudanças importantes, sabe, tipo acordei e tem uma ciclovia na minha porta, é isso mesmo.

Arquivo pessoal / Facebookdaniel guth3.jpg
Daniel Guth: sistema cicloviário enfrenta a profunda desigualdade na mobilidade urbana da cidade

Parece até que é uma barraca de peixe, não?!

Esse privilégio de você estacionar o seu carro no espaço público ou na porta da sua casa, até quando a gente manteria esse privilégio?! É preciso entender que para viver em sociedade, alguns desses privilégios têm de abrir mão. Andar de carro, e não pagar por isso, hoje o sistema é tão pernicioso e desigual que quem anda de carro é subsidiado desde a compra do veículo, com subsídio de imposto, e também na gasolina, crediários e tudo o mais, você tem subsídios para o sistema de circulação de carros, ou seja, o governo municipal é quem paga o asfaltamento, o recapeamento, o sistema de monitoração e fiscalização do sistema viário, a sinalização das vias, quer dizer, é uma conta milionária, talvez até bilionária para a população circular de carro, como se fosse um direito adquirido.

Enquanto isso você tem o transporte público mais precário com a conta dividida com a população. Nem é o poder público que subsidia totalmente o sistema público, mas a população tem de pagar uma parte importante dele, então, olha quão desigual é essa conta. Tem de botar esse debate na mesa, São Paulo precisa buscar políticas que de fato permitam que as pessoas usem menos o carro.

O debate este ano está ganhando mais visibilidade?

De 2013 para 2014 foi o período em que esse debate aconteceu com maior efervescência. Em 2014 foi lançado o plano cicloviário, em 2013 teve as manifestações de junho, onde a mobilidade urbana era questão central, e 2014 ainda tinha o reflexo desse debate. Em 2015 o debate está um pouco mais maduro, as resistências são menores, você tem essas grandes implantações que vão dar uma outra cara para a questão.

A ciclovia da Paulista tem um componente importantíssimo de se transformar no cartão postal da bicicleta em São Paulo, ela tem essa simbologia, um impacto no imaginário da cidade, especialmente para quem passará a usar a bicicleta porque tem uma ciclovia na avenida Paulista, porque ela será indutora de muitos novos ciclistas na cidade. Então, esse componente de consolidação de parte do sistema cicloviário tem importância na cidade toda, não apenas para quem vai usar a ciclovia da Paulista, mas impacta quem está em outras regiões da cidade, pela força que tem da ciclovia naquele local.

A foto da mobilidade urbana na cidade vai ser a avenida Paulista às 18h com os carros travados e um monte de ciclistas circulando felizes ali no meio. Isso vai ser o maior tapa na cara da mobilidade urbana para mostrar que a bicicleta sempre esteve para ficar e agora está sendo retomada com mais força. No prazo do plano de mobilidade até 2030 São Paulo tem capacidade para ter de 10% a 15% das viagens feitas por bicicleta.

Hoje tem a pesquisa origem destino que o Metrô faz a cada dez anos, mas ela subdimensiona o número de bicicletas porque ela só considera os transportes principais. Então, quem vai para uma estação de trem ou de Metrô de bicicleta e para num bicicletário a pesquisa só considera o Metrô. Mas mesmo apagando esses dados, a gente está falando de um por cento de viagens feitas sobre duas rodas. Nos nossos cálculos, o crescimento disso ano a ano tem sido exponencial. Esse número ficará muito maior a partir da infraestrutura, que induz demanda. O crescimento nos próximos anos será enorme. Precisa mudar a metodologia da pesquisa para termos melhores dados sobre o uso de bicicleta.

Esses dados também são das contagens da Ciclocidade?

A Ciclocidade faz contagem de ciclistas a cada dois anos na Paulista, que tem uma demanda atual de mil ciclistas por dia, entre 6h e 20h.

A Eliseu de Almeida é um caso bem interessante de contagens. Em 2010, quando não tinha ciclovia, nós tínhamos 561 ciclistas utilizando aquela via e agora em 2015 fizemos uma contagem já com a ciclovia recém entregue e esse número já passou para 1.245 ciclistas, ou seja, já é quase o triplo do número que tínhamos há cinco anos.

Isso mostra que a infraestrutura vai induzindo demandas, as pessoas vão se acostumando, vão entendendo. Tanto que o número de mulheres na Eliseu de Almeida aumentou 1,4 mil por cento nesses cinco anos. Quando você tem mulheres, crianças e pessoas de idade usando, isso mostra que aquela infraestrutura está garantindo a segurança, faz sentido para a cidade e está incluindo mais pessoas. É um bom sintoma.

E muitos outros lugares em que fazemos contagem, o volume de ciclistas tem aumentado incrivelmente e queremos estimular isso cada vez mais. O grande desafio a partir de agora é transformar essas políticas para que sejam políticas de estado para que qualquer gestão por vir, seja reeleição do Haddad ou de outro candidato, que essas políticas continuem, sejam mantidas e ampliadas cada vez mais.

André Tambucci / Fotos Públicasciclovia paulista 2.jpg
Ciclistas experimentam a nova ciclovia neste domingo: desafio será manter a política de mobilidade nas próximas gestões da cidade

A cidade terá 400 km até o fim do ano. Estamos na reta final desse compromisso. Como você avalia a qualidade dessa malha? E para o trabalhador ainda falta ter os paraciclos…

Se você olhar o Plano Diretor Estratégico, que nós construímos junto com a relatoria do plano na época, você vai ver o que compete. O sistema cicloviário não é só um conjunto de estruturas viárias. Não é só uma rede de ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas. Ele compete também bicicletários, paraciclos, suportes de bicicletas, bicicletas compartilhadas públicas, campanhas de promoção do uso, diálogo intermodal, ou seja, como isso vai se articular com ônibus, com o trem, com o Metrô, tem uma série de dimensões importantes além das ciclovias.

Com 400 km, não acaba, pelo contrário. O compromisso do prefeito com os ciclistas vai para além dos 400 km. Tem uma carta de compromisso que ele assinou conosco na eleição de 2012 que garante outras dimensões que não são só infraestrutura. Não pode se furtar de lembrá-lo que não é só uma rede de ciclovias que nós precisamos, até porque ela não é suficiente para termos os percentuais e o volume de ciclistas que queremos nas ruas.

Mas tudo que está sendo feito é um bom caminho?

É um ótimo caminho, é o caminho correto, as correções de percurso, de implantação e tudo o mais isso está sendo feito ponto a ponto. E nós conseguimos junto com o prefeito e com o secretário de Transportes consolidar um espaço de diálogo permanente com os ciclistas; é a câmara temática, vinculada ao Conselho Municipal de Trânsito e Transporte, para onde levamos todas as questões que nos preocupam, como problemas de interligação de ciclovias, de manutenção, sinalização viária e tudo o mais.

Tem um espaço constituído de diálogo e participação social. Tem uma implantação estabelecida em agenda pública que foi referendada pelo pleito eleitoral de 2012. Tem a participação dos ciclistas no planejamento e execução, tem a consolidação de um acúmulo histórico, foi muito considerado nesta gestão o histórico de batalhas dos ciclistas, seja em planos regionais estratégicos, seja em projetos.

A própria avenida Paulista é uma demanda histórica, ela não é um projeto pontual, mas tem anos e anos de ofícios, petições, até projeto básico de ciclovia para a avenida Paulista a gente levou para a prefeitura, então, quando alguém diz que ciclovia do Haddad é uma loucura dessa gestão, não é. É desconsiderar tudo aquilo que a sociedade já acumulou, batalhou para que saísse do papel. Dizer que é loucura do Haddad é incorrer em um equívoco histórico gravíssimo. Há pessoas que perderam suas vidas lutando para que saísse do papel, então, é uma leviandade do ponto de vista histórico dizer que é um delírio dessa gestão.

Sofreu alguma pressão da indústria dos carros?

Isso nem arranha eles, o que arranha são as políticas do governo federal, econômicas, tributárias. A gente tem uma luta para ter uma política industrial do setor de bicicletas, com desoneração, pois por mais que a gente tenha os municípios criando infraestrutura, porque no quesito produção e acesso a bicicletas nós estamos muito atrasados.

Ano a ano a gente tem perdido consumidores de bicicleta e produtores, produzindo menos bicicletas e consumindo menos ano a ano. Isso diverge da discussão nas cidades, mas infelizmente o governo federal não entendeu a importância da bicicleta e ainda está inebriado pelo discurso e pela lógica da economia baseada no consumo e na produção de automóveis.

Do ponto de vista do acesso à bicicleta isso faz com que a questão ainda esteja muito atrasada. Nós temos uma bicicleta para cada três habitantes no Brasil, é um número bastante baixo, com potencial de crescimento enorme. Nós temos 40% de quem consome bicicleta no Brasil com renda familiar até R$ 1,2 mil, ou seja, são pessoas que precisam da bicicleta como meio de transporte ou até como ferramenta de trabalho mesmo, para sua sobrevivência.

São pessoas de baixa renda, marginalizadas e que nós estamos induzindo essas pessoas a bicicletas de baixa qualidade por conta da alta carga tributária que tem o setor. É tanta desigualdade no tratamento de acesso à bicicleta, que 40% da produção nacional de bicicletas estão na informalidade. É quase metade do que é produzido.

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