violência policial

Educafro vai ao STF pedir ilegalidade de autos de resistência

Entidade defende que norma dos anos 1940 é incompatível com preceitos que nortearam a Constituição de 1988. De 2009 a 2013, foram registradas no Brasil 11.197 mortes por intervenções policiais

Edison Temoteo/Futura Press/Folhapress

Em São Paulo, estado com maior incidência de violência policial no país, foram 369 autos de resistência em 2013

São Paulo – A Rede Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) entregou ontem (10) uma representação ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pedindo que o artigo 292 do Código de Processo Penal – Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941 –, que embasa os autos de resistência (registro de morte em confronto com a polícia), seja considerado inconstitucional. Para o coordenador da Educafro, frei David Santos, “a declaração da ilegalidade pode mudar a situação de milhares de jovens brasileiros, principalmente os negros”.

Entre 2009 e 2013, em todo o Brasil, houve 11.197 mortes causadas por intervenções policiais. Segundo relatório da organização não governamental Human Rights Watch, o número de mortes registradas como autos de resistência, em São Paulo, cresceu de 369, em 2013, para 728, em 2014, um salto de 97%.

No Rio de Janeiro, foram 416 mortes em 2013 e 582 no ano passado. Dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro mostram que, entre 2001 e 2011, aproximadamente 10 mil pessoas foram mortas pela Polícia Militar sob alegação de resistência.

Pesquisa feita pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), indica que 61% das vítimas da polícia paulista são negras, 97% são homens e 77% têm de 15 a 29 anos. No Brasil, a taxa de homicídios dos homens de cor preta com idade entre 20 e 24 anos supera os 200 por 100 mil habitantes. A taxa de homicídio geral do país chegou a 29 para cada 100 mil habitantes, no ano passado.

“Não podemos mais conviver com essa licença para matar os nossos jovens. O artigo 292 do Código, de 1941, não foi assimilado pela Constituição Federal de 1988, que garante o respeito à integridade física e moral das pessoas, que não haverá penas cruéis, nem juízos de exceção”, argumentou frei David.

Para o advogado Renato Ferreira, que dá apoio jurídico a entidade, apoiado no artigo 23 do Código Penal – “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito” – o auto de resistência se tornou a justificativa perfeita.

“O auto de resistência é a rainha das provas. Uma vez lavrado esse documento, que deve contar com a assinatura de duas testemunhas – que podem ser outros policiais – não há investigação sobre a morte. E isso banalizou a ação dos maus policiais”, disse Ferreira.

Ele acredita que é possível questionar a legalidade do artigo por que o mesmo contradiz a Constituição e, portanto, deve ser considerado ilegal. Para isso, foi apresentada a representação, que propõe um instrumento jurídico conhecido como Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

“A Constituição de 1988 foi elaborada com base na dignidade da pessoa humana e impõe o respeito aos direitos fundamentais. Assim, preconiza a releitura de toda a ordem jurídica a partir de uma ótica pautada por estes valores. É urgente que a estrutura do Código de Processo Penal de 1941 seja adequada à ordem constitucional vigente”, explicou o advogado.

Entre os pontos da Constituição afrontados pelo artigo 292 do Código Penal, estão: adignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), o direito à vida (artigo 5º), à segurança (artigo 5º), à legalidade (artigo 5º, inciso II), ao devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV), à não discriminação (artigo 3º, inciso IV e artigo 5º incisos XLI e XLII), à inadmissão de provas ilícitas no processo (artigo 5º inciso LV) e aos princípios da administração pública (artigo 37).

Se for levado adiante pela Procuradoria-Geral da República, o processo deverá ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que analisa causas relacionadas com a Constituição.

O artigo 292 do Código de Processo Penal diz que “se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas”. Não há, no texto, nenhum determinação, nem impedimento, a que se investigue como se deu o conflito, o que tem sido usado, na opinião dos movimentos de direitos humanos, para acobertar execuções.

A medida foi regulamentada em 2 de outubro de 1969, durante a ditadura (1964-1985), pela Superintendência da Polícia do extinto estado da Guanabara, por meio da Ordem de Serviço “N” n° 803, determinando a dispensa da prisão em flagrante ou de inquérito contra policiais nas circunstâncias previstas no artigo 292 do Código de Processo Penal.

Segundo o advogado, o objetivo não é questionar o uso da força pelos policias, mas garantir que ela seja proporcional à necessidade e que haja a devida investigação dos casos para evitar abusos. “Toda morte precisa ser investigada. Nada mais antidemocrático do que permitir que alguém possa ser morto sem determinar que tal ação deva ser periciada, sem questionar as circunstâncias em que isso ocorreu”, afirmou Ferreira.

Outras ações

Frei David defendeu que a ação de hoje não é um isolado, mas um elemento a ser somado na luta contra os autos de resistência. “Estamos chamando o judiciário para o debate. Existem ações políticas, ações de movimentos, de organizações internacionais. Faltava esta frente”, afirmou.

Uma das principais medidas que une os grupos de defesa dos direitos humanos é a aprovação do Projeto de Lei 4.471/2012, do deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), que determina a investigação de todas as mortes decorrentes de ações policiais, além de fixar normas sobre preservação de cena da ocorrência e notificação ao Ministério Público, à Defensoria e outros órgãos públicos.

No último dia 4, o Senado criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar os assassinatos de jovens no Brasil. O requerimento foi apresentado pela senadora Lídice da Mata (PSB-BA). Após a indicação do membros, a CPI terá 180 dias de funcionamento.

O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, do governo federal, publicou em 2012 a Resolução número 08, que defende a abolição de “designações genéricas” – como resistência seguida de morte – de registros policiais, boletins de ocorrência, inquéritos policiais e notícias de crime.

A Anistia Internacional lançou uma campanha reivindicando que as autoridades brasileiras assegurem os direitos dos jovens negros. E elaborem políticas públicas integradas de segurança pública, educação, cultura e trabalho.

Em 2013, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), determinou o fim dos registros de autos de resistência. A medida foi regulamentada pela resolução 005 de 2013, da Secretaria da Segurança Pública paulista. Houve redução de 26% nas mortes por ação policial nos meses seguintes.

Mas em 2014 a situação piorou. A Secretaria da Segurança Pública informa que ocorreram 694 mortes no ano. Porém, segundo reportagem da Ponte Jornalismo, o cruzamento de dados do Centro de Inteligência e da Corregedoria da PM indica que houve926 homicídios cometidos por policiais militares. Os dados diferem dos divulgados pela Human Rights Watch, citados no início da reportagem. “O número exato é incerto, mas centenas de mortes anuais não podem ser ignoradas”, afirmou frei David.


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