Ditadura

‘Luta pela verdade ainda não terminou’, diz viúva de Vladimir Herzog

Após quase 40 anos de seu assassinato no Doi-Codi, Unesp recebe acervo com documentos sobre o jornalista. Clarice Herzog afirma que falta apurar e punir os responsáveis pelo crime

Acervo cedido à Unesp contém tudo o que foi publicado desde o assassinato de Vlado

São Paulo – O Instituto Vladimir Herzog oficializou na noite de ontem (26) a doação ao Centro de Documentação e Memória (Cedem) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) do acervo sobre o jornalista, também conhecido por Vlado – ele foi torturado e assassinado no Doi-Codi, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975. Ao assinar o convênio, a viúva de Herzog, Clarice, disse que a ideia da parceria com o Cedem se iniciou em 2010, com o projeto Resistir é Preciso, cujo objetivo é resgatar fragmentos da história brasileira a partir de publicações e pessoas que “resistiram à ditadura militar através da palavra impressa”.

“O acervo (cedido à Unesp) contém tudo o que foi publicado desde o assassinato de Vlado, em um órgão do Estado brasileiro, incluindo os documentos do processo pelo qual a família responsabiliza a União pela prisão, tortura e morte dele”, contou Clarice. Qualquer pessoa pode consultar o acervo.

O Estado reconheceu somente 38 anos depois que Herzog não se suicidou, como foi divulgado pelos órgãos da repressão. O jornalista morreu um dia após se apresentar espontaneamente ao Doi-Codi, depois de ter sido procurado por agentes. Em março de 2013, a família finalmente obteve uma nova certidão de óbito, atestando a morte de Vlado por “lesões e maus tratos”.

“Em 2013, com apoio da Comissão Nacional da Verdade, conseguimos finalmente um atestado de óbito verídico, que certifica que a morte do Vlado decorreu de lesões e maus tratos, em São Paulo, e não de suicídio, como sugeriu documento emitido pela ditadura”, afirmou Clarice.

Mas, segundo ela, ainda falta a investigação sobre as circunstâncias e sobre os envolvidos no crime. “E que esses envolvidos sejam levados à Justiça. A batalha em busca da verdade completou quase quatro décadas e ainda não terminou”, disse.

Daniel Patire/ACI/UNESPClarice Herzog
Viúva de Herzog, Clarice (esq), e a coordenadora do Cedem, Sonia Troitiño Rodriguez, na assinatura do convênio

Clarice Herzog é citada nos célebres versos de João Bosco e Aldir Blanc na canção O Bêbado e a Equilibrista, cuja versão mais conhecida é a gravada por Elis Regina: “Chora a nossa pátria mãe gentil/ Choram Marias e Clarices/ No solo do Brasil”.

Ela disse ser fundamental, pela importância histórica, compartilhar o material com a sociedade. “Não tinha sentido ficar guardado dentro de um armário. Muita coisa se esquece no decorrer dos anos. Tenho tudo que saiu publicado sobre a vida, a morte e o processo.”

Memórias

A professora Sonia Maria Troitiño Rodriguez, coordenadora do Cedem, disse que, sob os cuidados da instituição, os documentos passam a ter “garantia de preservação e acesso irrestrito“.

À RBA, a viúva disse discordar de que haja muitas pessoas pedindo a volta da ditadura ao país, como visto nas manifestações de 15 de março. “Não concordo que sejam muitas pessoas. Na medida em que a gente vive num Estado democrático, a gente convive com a diversidade. Mas a gente precisa ficar de olho aberto”, alertou.

Fotógrafo

Em 27 de maio de 2013, o fotógrafo Silvaldo Leung Vieira, que foi funcionário da Polícia Civil de São Paulo e aos 22 anos foi o autor da conhecida foto divulgada pela polícia repressora para “provar” que Herzog havia se enforcado na cela, visitou o prédio do antigo Doi-Codi, a convite da Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo.

Silvaldo Vieira / ReproduçãoHerzog.jpg
Herzog, morto na cela do Doi-Codi: tortura e assassinato cometidos pelo Estado

No local, onde hoje funciona o 36º Distrito Policial, no bairro do Paraíso, o fotógrafo, que hoje mora em Los Angeles (Estados Unidos), afirmou que na época, ao fazer a foto, notou haver algo estranho. “Num suicídio, normalmente a pessoa salta de uma cadeira, ela fica pendurada, e não era aquilo que eu via”, lembrou. “Foi clara (a montagem da cena) para mim.”

Na época, Silvaldo fazia um curso de fotografia na USP. “Foi uma fatalidade para mim (ter fotografado o corpo de Herzog). Eu estava iniciando a minha vida, de 21 para 22 anos. Só recebi a ordem de fotografar, não me movimentei pela sala, não vi mais nada a não ser o cadáver. Fiz a foto da porta.”

Na ocasião de sua visita, Vieira disse à imprensa e a membros da comissão municipal que não houve comentários sobre quem era a vítima, enquanto fotografava, nem antes e nem depois de fazer o trabalho.

Leia também:

Leia também

Últimas notícias