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Desafio para o comitê paulista de combate à tortura é autonomia

Com possibilidade de aprovação do projeto até 14 de março, quando termina a atual legislatura, objetivo é criar grupo de peritos autônomos, desvinculados da polícia, e com livre acesso a presídios

Danilo Ramos/RBA

Os agentes públicos, como agentes penitenciários e policiais, são maioria (61%) entre os acusados de tortura

São Paulo – Deputados paulistas devem aprovar, até 14 de março, um projeto de lei que cria o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, com a responsabilidade de investigar e monitorar casos em locais de privação de liberdade. O principal desafio é garantir que o órgão seja formado por especialistas autônomos e independentes da Polícia Militar e de outras instituições e que eles tenham livre acesso a presídios, hospitais psiquiátricos e unidades da Fundação Casa. Das 715.655 pessoas presas no Brasil, 297.096 estão em São Paulo, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

“A lei será aprovada, mas ela cria só um órgão burocrático, sem designação de pessoal autônomo para investigar. Essa é a grande luta agora”, afirma o autor do projeto, o deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP), que no próximo mês encerra um mandato de 12 anos no Legislativo paulista. “A criação do comitê seria uma reforma no Estado, um passo significativo no processo civilizatório. Mas para funcionar ele não pode ser consistido por cabos eleitorais. Tem que ser gente autônoma, que trabalha realmente e com expertise.”

“Hoje as corregedorias da polícia são mecanismos de blindagem das instituições representativas. Se não forem reformadas para atender aos princípios da democracia vão continuar funcionando como um dispositivo de blindagem do estado”, afirma o membro da Associação para Prevenção de Tortura (APT) José de Jesus. “Ao todo 21 estados têm ouvidorias, mas pouquíssimas têm autonomia financeira, funcionários em número suficiente e corregedores autônomos. Já chegamos a entregar uma denúncia de tortura a um oficial que, no passado, tínhamos acusado de tortura.”

Os agentes públicos, entre eles policiais e agentes penitenciários, são maioria (61%) entre os acusados de tortura na segunda instância dos tribunais de Justiça do Brasil, segundo a pesquisa Julgando a Tortura, divulgada em janeiro pela Ong Conectas Direitos Humanos, pelo Núcleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), pela Pastoral Carcerária, pela Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acat) e pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). O levantamento analisou todos os 455 acórdãos (decisões de órgãos colegiados) de 2005 e 2010 nas quais foram julgados 752 réus de tortura, um total considerado “muito baixo” pela equipe de pesquisa.

“Avalio que o baixo número de processos tenha a ver com o peso que recai sobre as vítimas. Elas são muito depreciadas e os processos são lentos e exigem muitos detalhes”, afirma a coordenadora da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, Amelinha Teles. “Temos uma tendência a individualizar os casos, mas eles não são isolados. A tortura é um instrumento generalizado na sociedade brasileira.”

Apesar de a maioria dos casos ser cometida por agentes públicos, são eles que têm a maior chance de absolvição nesse tipo de crime, segundo a pesquisa. Nos casos de réus funcionários do Estado, 19% das sentenças condenatórias de primeira instância foram convertidas em absolvição e 47,6%, mantidas. Em relação a agentes privados, apenas 10% das sentenças foram revertidas e 61,4%, mantidas.

As motivações da tortura variam de acordo com quem a pratica: os agentes públicos, na maior parte dos casos (65,6%), usam a violência como método para obter informações ou confissão. Já para a maioria dos agentes privados (61%), o sofrimento é usado como forma de castigo, segundo a pesquisa. Das vítimas analisadas, 21% eram homens; 21%, homens suspeitos da prática de crime; 9%, homens presos; 20%, crianças; 13%, adolescentes; 8%, mulheres, e 1%, mulheres presas. Em 7%, os agredidos tinham outro perfil ou não puderam ser identificados claramente.

Em relação ao local do crime, 33% dos casos de tortura ocorreram em locais de privação de liberdade, como prisões, delegacias e unidades de internação; 31%, em residências, e 16%, em vias públicas.

O Brasil já possui um Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criado a partir da Lei 12.847, sancionada pelo governo federal em agosto de 2013. No entanto, o comitê que visitaria os locais de detenção no Brasil ainda não está em funcionamento. “De qualquer forma, o mecanismo nacional contará com apenas 11 membros para monitorar todo o país. Não é suficiente. Por isso, é importante que os estados criem seus próprios comitês”, afirma a advogada da organização Conectas Direitos Humanos, Sheila Carvalho.

Ao todo, sete estados no país trabalham na criação de mecanismos de prevenção de tortura: Rio de Janeiro, Paraíba, Alagoas, Espírito Santo, Rondônia, Minas Gerais e São Paulo. O comitê carioca, no entanto, é o único já em operação, desde 2011. O estado tem 35 mil pessoas privadas de liberdade.

“É fundamental que São Paulo aprove a lei, que ela seja transparente, que acolha a diversidade e que seja profissionalizado. Os membros têm que ter autonomia e livre acesso a todos os locais de privação de liberdade”, avalia o membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate a Tortura do Rio de Janeiro Fabio Simas. “A tortura é um elemento constituinte do nosso processo de formação social, marcado por exemplo pela escravidão indígena e africana e por duas ditaduras. Não houve um rompimento legítimo com essas práticas e a tortura ainda é muito legitimada socialmente no nosso cotidiano. E ela afeta ainda mais os mais pobres, que já não tiveram materializados seus direitos fundamentais.”

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