Repressão

Jornalista lança ‘biografia’ do DOI-Codi. Com ex-agente do Dops na plateia

Livro é resultado de dez anos de pesquisas e entrevistas, inclusive com 25 agentes. Autor conta que o coronel Ustra tentou proibi-los de dar declarações. Relatos detalham 66 mortes, 39 sob tortura

Marcia Yamamoto / Alesp

Comissão da Verdade de SP faz pré-lançamento do livro “A Casa da Vovó”, de Marcelo Godoy (à direita)

São Paulo – O lançamento de um livro sobre o mais ativo centro de repressão da ditadura, o DOI-Codi paulista, teve também uma representação dramática e real, ainda que em menor escala, do que foram aqueles tempos. Durante apresentação na Assembleia Legislativa, a convite da Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”, sexta-feira (12), o jornalista Marcelo Godoy dava detalhes de seu livro A Casa da Vovó, resultado de 10 anos de pesquisas e 97 entrevistas, sendo 25 com agentes – que aceitaram falar para contrariedade do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante daquela unidade nos anos 1970.

Quase no final, um senhor tomou a palavra. Era um ex-investigador do Dops, Carlos Alberto Augusto, o Carteira Preta, 70 anos. Completados, por sinal, em 1º de abril deste ano, no cinquentenário do golpe. Entre presos políticos, ganhou o apelido de Carlinhos Metralha, que o irrita.

Seguiram-se 20 minutos de diálogo até certo ponto respeitoso, mas tenso e áspero, entre Godoy, o deputado Adriano Diogo (PT), presidente da comissão, e o agora delegado, que se apresentou como amigo, “com muito orgulho”,  de Cabo Anselmo (José Anselmo dos Santos, líder dos marinheiros em 1964 e, posteriormente, delator a serviço do regime). Também disse que compraria dois livros – como de fato comprou –, e que um deles seria para presentear Ustra.

Godoy lembrava que seu livro identificava autores diretos de crimes como sequestro, tortura e morte. Com versões diferentes daquelas apresentadas por Ustra. “A estratégia do DOI era de neutralização do inimigo, era uma estratégia militar. Não era um órgão policial”, diz o jornalista sobre um dos principais símbolos da repressão, criado em 1969 ainda como a Operação Bandeirante (Oban), ganhando o nome nome (DOI, Destacamento de Operações de Informações) em setembro de 1970. O livro busca mostrar “quem são e o que pensavam os agentes e seu chefe e símbolo, o coronel Ustra”.

De capacete (“símbolo de segurança”) e gravata borboleta preta (“luto pelas vítimas dos ‘terroristas'”), Carlos Alberto Augusto, que atuou no Dops de 1970 a 1977, sob o comando de Sérgio Paranhos Fleury – que disse considerar um herói –, iniciou sua fala atacando os “comunistas”. Godoy o interrompeu, afirmando que se tratava de um discurso conhecido. “O que não se conhece é o que de fato o senhor fez”, retrucou. “Quem quer preservar a memória não queima a memória, conta o que sabe.”

“Estive infiltrado na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária, organização de esquerda), tendo contato com assaltante de banco e terrorista (como os militares se referiam aos militantes políticos)”, disse Augusto. Não negou ter participado da organização do chamado massacre da Chácara São Bento, em Pernambuco, em 1973, quando seis militantes da VPR foram mortos. “Não era chácara, era área de guerrilha”, contestou. Disse ainda ter escapado da morte, ao lado de Anselmo, após ser julgado por um “tribunal revolucionário”.

Juntamente com Ustra e com o também delegado Alcides Singillo, é apontado pelo Ministério Público Federal como autor do sequestro do corretor Edgar de Aquino Duarte, em 1971. “Nunca conheci”, afirmou. Em entrevistas, ele também negou a ocorrência de torturas durante o período autoritário. “Nunca trabalhei no Exército ou no DOI-Codi, mas respeito muito esses homens”, disse ontem.

O nome de Carlos Alberto Augusto consta da lista de 377 responsáveis por graves violações de direitos humanos no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado na última quarta-feira (10). “Teve participação em casos de detenção ilegal, tortura e execução”, diz o documento. A inclusão no relatório revoltou o delegado, que disse não ter sido chamado a depor. “Convocado para prestar depoimento à CNV, não foi localizado”, afirma a comissão no relatório. No ano passado, ele foi alvo de um “esculacho” em Itatiba, no interior paulista, para onde havia sido transferido como delegado.

Em vários momentos, Augusto criticou os “terroristas”, referindo-se a militantes políticos, e se dirigia à plateia, citando, entre outros, Maria Amélia (Amelinha) Teles, que esteve presa no DOI-Codi e assessora a comissão estadual. O deputado Adriano Diogo interveio: “O senhor fale o que quiser, mas não enquadra. Não enquadra. Não ameace”. E solicitou que o ex-agente se dirigisse apenas à mesa.

Sequestro da memória

Depois da intervenção, e ainda na presença de Augusto, o autor do livro criticou esse comportamento, observando que era um exemplo das dificuldades de se pesquisar o período autoritário. “Algumas pessoas continuam sequestrando a memória. É contra isso que se bate e se luta.” E lembrou que foram os próprios “colegas” do agente que falaram e admitiram a ocorrência de torturas, sequestros e mortes, apesar da determinação do ex-comandante, que “ligou diretamente para vários agentes ordenando que eles ficassem em silêncio”.

Ao final do debate, Augusto ficou na fila para autografar os exemplares. Perto dele, um homem que o acompanhava causou preocupação. Punha repetidamente as mãos à altura da cintura, onde havia um objeto, e houve quem receasse que estive armado. Não estava. Era um smartphone. Que ele usou, por sinal, para tirar uma fotografia do autor do livro e um personagem, citado à página 263. Houve tempo ainda para uma mensagem de Godoy ao portador: diga ao Ustra que as fontes – os antigos agentes que deram depoimentos – não serão reveladas.

Foi um longo trabalho de aproximação, para que então eles começassem a falar. Para isso, era importante não tentar transparecer nenhum tipo de condenação prévia. “Era necessário compreender por que agiram dessa forma”, disse o autor, repetindo que “compreender não é aceitar”. Mesmo que estivessem em uma guerra – termo que causou alguma polêmica conceitual durante o debate –, não haveria qualquer justificativa para cometer crimes contra a humanidade. Duas pessoas pediram que nem sequer o codinome fosse citado. Outros autorizaram a divulgar o “nome de guerra”, enquanto alguns não fizeram qualquer tipo de reserva.

“Cada linha deste livro foi muito pensada. Traz informações, relatos e dados muito sólidos”, diz o editor da obra, Haroldo Ceravolo Sereza, que dirige o site Opera Mundi. Para Adriano Diogo – que também foi preso e torturado naquele local –, mais do que um livro, trata-se de “um documento, uma das maiores contribuições para a recuperação da memória brasileira”. É um retrato do mais conhecido centro de torturas da ditadura, que originou o primeiro desaparecido (Virgílio Gomes da Silva) e onde morreram dezenas de pessoas, com alguns casos emblemáticos, como os do jornalista Vladimir Herzog, morto após tortura em 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, no ano seguinte.

Morto a pedradas

“Até hoje muitos dos que trabalharam lá preferem chamá-la de Casa da Vovó, pois, como explicou um de seus agentes, “lá é que era bom”. A antinomia é evidente. Ainda mais quando esses homens e mulheres resolveram contar o que sabiam sobre as mortes de 66 pessoas, das quais 39 sob tortura após a prisão e outras 27 depois de gravemente baleadas durante a detenção no que foi descrito como emboscadas ou tiroteios. Em seus depoimentos surgiram relatos de como foram presas 19 pessoas que oficialmente desapareceram em meio ao chumbo daqueles anos. Há também corrupção, saque e traição”, diz o autor, na apresentação do livro, que surgiu a partir de pesquisas sobre a Polícia Militar. “A Polícia Civil e o Exército já tinham sido suficientemente estudados, mas a PM ainda não”, justifica Godoy.

Está ali descrito, por exemplo, o assassinato de Antonio Benetazzo, dirigente do Movimento de Libertação Popular (Molipo), preso no final de 1972. Depois de interrogatório, foi levado a outro local, na periferia de São Paulo (o Sítio 31 de Março), golpeado na cabeça e jogado no chão. Uma das rodas do Fusca que levava os quatro agentes e seu prisioneiro passou por cima da cabeça do militante. Os algozes acharam suficiente para a encenação de atropelamento. Mas no caminho para o bairro do Brás (em cujo distrito havia um delegado “amigo”), Benetazzo acordou. Os agentes voltaram ao sítio “para terminar o serviço”, matando o prisioneiro a pedradas.

“A história de Benetazzo é desses segredos que os militares gostariam de ver sepultados. Trata-se de um caso brutal e traumático, um tabu entre os próprios integrantes da Casa da Vovó“, escreve Godoy. E prossegue, linhas adiante: “O esquecimento era o desejo de Ustra”. Mas o jornalista conta que serão os antigos subordinados do coronel “que vão revelar uma das mais cruéis execuções do Destacamento”. Uma das fontes do jornalista, identificada apenas como Tenente Chico, levou um ano, após o primeiro encontro, para contar a história, que deixou marcas, como ele relata no livro.

Você não tem ideia do que é passar uma noite inteira vendo um homem e sabendo que no dia seguinte ele vai morrer… E você ali com ele… Essa foi uma das coisas que me deixaram mal depois. Todos nós carregamos um fantasma que te acompanha a vida inteira. Esse é o meu.

Na primeira conversa, quando veio acompanhado de um coronel, o agente não quis dar nem o nome. Durante o diálogo, provocou o jornalista, achando as perguntas “fáceis” demais – era apenas o início, cuidadoso, da abordagem de Godoy, que quis saber o porquê. “Você não quer saber como era o pau?”, pergunta o interlocutor. Ele lembra que atuar naquele local não era obrigatório. “Havia um aspecto voluntário de trabalhar no DOI. Havia possibilidade de recusar. Quem ficou queria trabalhar lá.” A área, entre os bairros de Vila Mariana e Paraíso, na zona sul paulistana, abriga hoje o 36º Distrito Policial. Entidades de direitos humanos e de familiares de mortos e desaparecidos querem transformar o loca, já tombado, em memorial.

Os depoimentos dos agentes também revelam naturalidade na descrição de suas ações cotidianas. E trazem à luz outros personagens. Como o capitão Ênio Pimentel da Silveira, o “Doutor Ney”, ou “Neyzinho”, que Godoy aponta no livro como “um dos maiores responsáveis pelo esmagamento da guerrilha urbana no país”. E acrescenta: “Se o Dops teve o delegado Sérgio Paranhos Fleury, o DOI teve o capitão Ênio”. Foi o homem que “comandou em pessoa o sequestro, a tortura e a morte de pelo menos quatro dezenas de pessoas em São Paulo”.

Em livros de registro de acesso ao Dops, na década de 1970 – uma descoberta da comissão estadual –, o nome do oficial aparece com frequência. Ele morreu em 1986, oficialmente por suicídio, versão que alguns contestam. “Teria uma carreira brilhante se problemas financeiros e afetivos não o tivesse levado ao suicídio”, disse Ustra, por e-mail, em 15 de março de 2005, ao autor do livro.

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