Por mais direitos

Com eleições em pauta, grupos recusam rótulo de ‘minorias’ e buscam igualdade

Construção da sociedade nos moldes machistas, monogâmicos e heteronormativos traz invisibilidade a determinados grupos e dificulta a compreensão das possibilidades de identidades de gênero e sexual. Por isso, reivindicar direitos e políticas públicas se torna um desafio

Eleven/Folhapress

Ser lésbica é subversão em dobro. Resultado: violências físicas e morais e agressões que podem ser fatais. Invisibilidade é mais uma violência

São Paulo – As palavras machismo, racismo e homofobia não são exatamente novidade no cotidiano da população brasileira, embora ainda restem discussões sobre o limite entre opressões e violências e liberdade de expressão. Já lesbofobia, transfobia, bifobia, entre outros conceitos, não parecem fazer parte do repertório de pessoas que encorpam determinados movimentos sociais. Uma discussão aprofundada, que dê conta de setores sociais tornados invisíveis, ainda costuma se limitar a ativistas específicos.

No entanto, alguns movimentos, como o feminista, perceberam que não era possível dissociar algumas discriminações e desconsiderar contextos de relações de poder, que causam dificuldades para aprofundar o debate sobre o aborto, por exemplo, sem ter um recorte de classe e sem abordar o racismo. É sabido que são as mulheres negras e de classes mais baixas que mais sofrem as consequências de procedimentos de interrupção de gravidez clandestina e insegura.

A pesquisadora da área da saúde e militante feminista Ana Maria Costa, médica e presidenta do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), revela que dados do Sistema Único de Saúde (SUS) mostram que a incidência de mortes de mulheres por complicações no aborto estão em 12,5%, ocupando o terceiro lugar entre as causas de mortalidade materna, ou seja, mortes relacionadas à gravidez, ao parto e ao puerpério. “Naturalmente, há variações entre regiões e estados brasileiros, sendo mais grave onde há mais pobreza e desigualdade social”, diz.

Considerando questões como essas, o conceito de interseccionalidade nasce do feminismo negro e lésbico e serve para pensar a complexidade das relações de poder, segundo Regina Facchini, pesquisadora do Pagu – Núcleo de Estudos de Gêneros da Unicamp.

Presente desde a década de 1960 na militância feminista negra estadunidense, que disputava espaço em um movimento predominantemente branco, a teoria sociológica sobre interseccionalidade foi apresentada pela feminista Kimberlé Crenshaw, em 1989.

A partir desse conceito, que hoje conta com diferentes perspectivas teóricas, é possível pensar características – a exemplo de gênero e identidade sexual – como diferenças apenas, ou como desigualdade, como no caso de mulheres negras e o aborto. “Pessoas concretas têm um sexo, uma marca racial, um pertencimento de classe, estão em determinada geração e tudo isso tem impacto sobre o que elas vivem”, explica Regina.

Para Luka Franca, jornalista e militante feminista, ainda é muito comum discutir o todo em padrões pré-determinados, sem fazer a interlocução com outros movimentos e com a realidade social. “Isso acaba descambando pra uma lógica de movimento muito autocentrado, sem pensar que a construção de uma vida melhor se faz no lidar com conflitos”, opina.

Um exemplo que permanece controverso mesmo dentro de movimentos, como o LGBT, é o de pessoas bissexuais. Uma identidade sexual muito questionada e frequentemente deslegitimada. Um dos relatos mais comuns é a exigência de “comprovação” da bissexualidade, mesmo sem haver uma forma de fazer isso efetivamente.

Um texto do Blogueiras Feministas, por ocasião do Dia da Visibilidade Bissexual, 23 de setembro, avalia que vivemos em uma sociedade monossexista, “ou seja, aquela em que existe uma crença que todas as pessoas são automaticamente monossexuais”. No senso comum, as relações se limitam a dois modelos: com alguém do mesmo gênero, relação homossexual; com alguém de outro gênero, relação heterossexual. Todas as outras formas são classificadas como “indecisão”, apenas “uma fase”, e relações não monogâmicas nem chegam a ser consideradas.

No mesmo dia 23, o UOL publicou uma galeria de fotos com celebridades “assumidamente” bissexuais. Porém, algumas legendas das imagens contradiziam a proposta da chamada. A atriz Cláudia Jimenez, por exemplo, é associada a uma declaração na qual afirma não ser “nem uma coisa nem outra”, mas a presença dela na galeria é justificada pelo portal por já ter se relacionado com homens e mulheres. “As identidades políticas são necessárias para fazer política, mas a política e a vida cotidiana não necessariamente andam no mesmo ritmo”, explica Regina.

Exemplos como esse mostram que definir e tentar encaixar pessoas em padrões pré-determinados pode ser mais difícil do que parece. “Quando a gente trabalha com sexualidade, vai trabalhar com a ideia de que você tem os desejos, as práticas e as identidades. E que essas três coisas não necessariamente andam na mesma direção”, enfatiza a pesquisadora. No entanto, para ela, alguns setores de movimentos sociais já têm um olhar flexível para os processos individuais.

A construção de uma sociedade dentro de moldes machistas, monogâmicos e heteronormativos traz como consequência a invisibilidade de determinados grupos e dificulta a compreensão das diversas possibilidades de identidades de gênero e sexual. Por isso, reivindicar direitos e políticas públicas se torna um desafio. “Quando você faz políticas para mulheres, você tem que pensar nas várias mulheres. Essa é a complexidade de fazer políticas no nosso tempo, em que essas demandas estão muito colocadas”, exemplifica Regina.

Mariana Rodrigues, ativista lésbica feminista da Liga Brasileira de Lésbicas, acredita que a lesbofobia, da mesma maneira que a homofobia e a transfobia, está atrelada ao machismo. “Essas opressões estão profundamente interligadas quando não correspondemos aos modelos de masculinidades e feminilidades concebidos na nossa sociedade, por mais que a orientação sexual esteja de um lado e a identidade de gênero, de outro.” Embora não sejam a mesma coisa, as discriminações e opressões podem se somar. “Eu penso que uma opressão não se sobrepõe a outras, elas têm a mesma base em diferentes intensidades”, ressalta.

Por sua homossexualidade, Mariana relata que o machismo a afeta em todos os momentos. Como se não bastasse ser mulher, tida como “inferior” no senso comum patriarcal, ainda não condiciona sua sexualidade, seu afeto e desejo a um homem. “Acaba sendo uma subversão em dobro.”

O resultado disso é uma série de violências tanto físicas quanto morais e agressões que podem ser fatais. E a invisibilidade é mais uma forma de violentar. O atendimento médico é um exemplo citado por Mariana. Mulheres que se relacionam sexualmente com outras mulheres não podem contar com atendimento ginecológico de qualidade, que aborde questões específicas dessas relações, pois o pressuposto é de que a mulher tem apenas relações heterossexuais.

Da mesma maneira, ao considerar o “grupo mulheres”, parte-se do raciocínio de que se fala de mulheres brancas. Intencionalmente ou não, são deixadas de lado as particularidades das negras e ignora-se a correlação entre machismo e racismo. Dessa forma, não são abordadas questões específicas.

Com raras exceções, as mulheres negras não estão representadas em meios de comunicação, programas de TV, revistas e anúncios publicitários. Quando aparecem, em geral, é de forma estereotipada.

Essa falta de representatividade pode parecer insignificante, mas reproduz diferentes faces do racismo. Como, por exemplo, um padrão de beleza branco, pele e olhos claros, cabelo liso.

O mesmo ocorre com homossexuais e travestis, lembra Regina Facchini. Casos de homicídios de homossexuais, principalmente de classe média, criam mobilização maior do que no caso de assassinatos de travestis. “É como se isso, de alguma maneira, infelizmente, fosse naturalizado. Ganha menos repercussão na mídia, mobiliza menos a opinião pública, no sentido de uma revolta, de reconhecer, de fazer o luto. Esse luto coletivo que existe quando um caso bárbaro de violência vai pra mídia.”

A pesquisadora enfatiza a importância de casos que têm maior repercussão e mobilização, por trazerem à tona questões que, não raramente, são ignoradas por grande parte da sociedade.

Segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB) de 2013/2014, um gay é morto a cada 28 horas no Brasil, número que deixa o país em primeiro lugar no ranking mundial de crimes homotransfóbicos, motivados por identidade sexual ou de gênero. O relatório aponta ainda que 40% dos assassinatos de transexuais e travestis no mundo são cometidos no Brasil.

Dados como esses evidenciam a importância de aprovação de leis e criação de políticas públicas voltadas para LGBTs, como o Projeto de Lei 122, que criminaliza a homofobia e a transfobia, entre outras discriminações, uma das principais bandeiras atualmente do movimento LGBT.

Avanços e recuos

Pequenas, mas significativas conquistas têm ocorrido no país. Uma das vitórias do movimento LGBT veio em 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou, por unanimidade, o reconhecimento legal da união homoafetiva.

Nas eleições deste ano, o deputado federal Jean Wyllys (Psol-RJ), conhecido pela forte militância nos temas LGBT, foi reeleito com 144.770 votos, sendo sétimo federal mais votado do Rio de Janeiro.

A votação de Wyllys pode ser considerada uma sinalização para maior abertura da sociedade às demandas LGBT e de outros grupos invisibilizados. “Na minha atuação como parlamentar, que foi 100% pró-LGBT e direitos humanos, sempre vimos o indivíduo como alguém plural: o gay negro, o gay pobre… Essas questões, gênero, identidade religiosa, raça, são indissociáveis”, declarou Wyllys em entrevista à BBC.

Contudo, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o Congresso eleito no último dia 5 de outubro é o mais conservador desde 1964, ano do golpe civil-militar no Brasil. Fato que indica a dificuldade de avanços no que diz respeito a leis que objetivem a garantia dos direitos humanos e aponta ao possível retrocesso em questões como a criminalização da homofobia e descriminalização do aborto.

Alguns candidatos ilustram essas situação: Jair Bolsonaro (PP), defensor declarado da ditadura civil-militar, foi reeleito com 461 mil votos, a maior votação para deputado federal do Rio de Janeiro; e Marco Feliciano (PSC), pastor evangélico extremista ligado à Assembleia de Deus, teve 392 mil votos, o terceiro federal mais votado em São Paulo.

Na eleição para presidência, os dois candidatos que estão no segundo turno, Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), pouco abordam questões específicas desses grupos invisibilizados. No site da candidata petista à reeleição, nas 42 páginas das “linhas gerais do Programa de Governo”, um trecho específico sobre direitos humanos aborda de maneira genérica poucas questões. “Ainda no elenco de desafios institucionais, a luta pelos direitos humanos se mantém, sempre, como prioridade, até que não existam mais brasileiros tratados de forma vil ou degradante, ou discriminados por raça, cor, credo, orientação sexual ou identidade de gênero.”

O texto cita como proposta a criação da Casa da Mulher Brasileira – compromisso do primeiro mandato de Dilma – sem especificar como funcionaria. Também fala em “desafio de tornar realidade” a Lei de Cotas no serviço público federal e a ampliação do Programa Juventude Viva, voltadas para pessoas negras, e “continuidade da implementação do Viver sem Limite, que garantiria igualdade de oportunidades aos brasileiros e brasileiras com deficiência, com ações de acesso à educação, atenção à saúde, inclusão social e acessibilidade.”

Já no site do candidato tucano, as diretrizes do programa de governo têm somente um trecho para direitos humanos dentro da seção “Cidadania”. O texto afirma que “será dada forte prioridade às políticas afirmativas” a setores sociais, como mulheres, idosos, crianças, afrodescendentes, LGBT, quilombolas, ciganos, povos indígenas e pessoas com deficiência.

São apresentadas superficialmente algumas propostas, como apoio a linhas de pesquisa universitárias relativas à questão étnico-racial e de diversidade sexual, implementação de programas de apoio e auxílio a comunidades quilombolas.

Conjuntura

As relações de poder entre machismo, racismo e lesbofobia são apenas uma pequena parte das tantas possibilidades de intersecções. Hoje, existem movimentos como o transfeminismo e o feminismo negro, entre outros.

Em uma análise da atual conjuntura política e a relação entre os poderes da República, Regina Facchini diz que a melhor maneira de fazer política, muitas vezes, é fazer a política de modo a fazer aliança para poder avançar nas questões: “Tudo isso tem a ver com o aprofundamento da democracia, mas, claro, isso traz cada vez mais desafios do ponto de vista de fazer política”.

A pesquisadora analisa que compreender as possibilidades e singularidades de outras pessoas também pode ser um grande desafio. “A gente acostumou muito a pensar as coisas separadas. Você tem a política para mulheres, a política para negros, a política para LGBT”, observa, destacando que cada vez mais ativistas circulam em vários movimentos.

“É com isso que a política tem que lidar hoje, dar conta de promover condições de participação do sujeito na vida democrática, levando em consideração essas diferenças todas”, avalia.

Com exceção de momentos pontuais sobre alguns direitos LGBT, questões de setores invisibilizados da sociedade foram preteridas durante as eleições. E, para Regina, os próximos quatro anos serão de acirramento de conflitos. “Num primeiro momento, esses políticos conservadores tentavam barrar apenas projetos de lei. Na última eleição, a de 2010, a grande marca que ficou é que eles passaram a intervir também com relação ao Executivo. Isso passou a ter impacto também nas políticas públicas”, comenta.

Apesar de considerar o momento tenso no que diz respeito a direitos sexuais LGBT e de mulheres, a pesquisadora acredita que existe uma sinalização de abertura maior em relação à eleição passada, quando o discurso moral em torno do aborto foi central e os dois candidatos envolvidos, Dilma Rousseff e José Serra (PSDB), recuaram em relação à descriminalização no segundo turno. “Desta vez, a gente não está tendo só recuo”, ressalta. Ela reforça que o Brasil passa por um período de mudança social, de reconhecimento de direitos na sociedade e que vem sendo tensionado, por um lado, por movimentos sociais e, por outro, políticos conservadores.

A ativista Mariana Rodrigues acredita que hou um “ganho imenso” nas eleições com debates que foram trazidos por Luciana Genro (Psol) e Eduardo Jorge (PV), candidatos à Presidência da República que abordaram temas como casamento civil igualitário, aborto e descriminalização da maconha.

Para a ativista, o início do governo Dilma trouxe avanços em políticas sociais e direitos humanos, mas depois houve uma estagnação e “agora, só retrocesso, com essas alianças pela governabilidade e pressões fundamentalistas”. Porém, Mariana enfatiza que o Brasil ainda é tido como “referência de boas práticas em relação aos direitos humanos” e cita o programa Internacional com a União Europeia de trocas de experiências e práticas exitosas no combate à homofobia.

Independentemente do cenário nos próximos quatro anos, ela ressalta que não é minoria. “Somos invisibilizadas até pela própria construção machista da nossa sociedade, mas a gente se apropria. LGBT sempre existiu e a humanidade não acabou. Inclusive, se multiplicou e produziu pessoas como o Fidelix (candidato à presidência pelo PRTB que disse ser contra o casamento homoafetivo e que era preciso “combater essa minoria” durante um debate presidencial no primeiro turno das eleições).”

A cantoria Ellen Oléria, negra, lésbica e que compõe e canta músicas feministas, reforça: “Acho que talvez a primeira coisa interessante para os próximos quatro anos seria cada pessoa brasileira parar de chamar categorias de minorias. Acreditar que se você é homem, branco, cristão, heterossexual faz de você maioria é muita inocência. E inocência depois de certa idade não pode mais ser considerada uma virtude”.

A artista chama a atenção para a importância de trazer mudanças para o dia a dia e avisa: “Eu faço questão de, nos próximos quatro anos, seguir cantando a minha fé, a minha cultura, o legado dessa ancestralidade que me reveste de esperança, meu amor, minha paixão, meus desejos. Visibilidade”.

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