Líder operário

Assassinato de Santo Dias, ‘pacifista’ e ‘apaixonado’, completa 35 anos

Pelo menos 50 pessoas pintaram de vermelho rua da zona sul de São Paulo e seguiram para o Cemitério de Campo Grande, onde foi celebrada uma missa em memória ao metalúrgico morto pela ditadura em 1979

Folhapress

Corpo de Santo Dias foi velado em 31 de novembro na igreja da Consolação e levado até a catedral da Sé, no centro de São Paulo. Cerimônia foi celebrada por dom Paulo Evaristo Arns

São Paulo – Uma procissão de cerca de 50 operários, sindicalistas e militantes políticos se reuniu na tarde de hoje (30) na rua Quararibeia, zona sul de São Paulo, para relembrar um episódio trágico da história brasileira que ocorreu naquele endereço há exatos 35 anos: o assassinato do metalúrgico Santo Dias da Silva pela Polícia Militar, minutos após ele aceitar pacificamente encerrar um piquete que ocorria em uma fábrica no local. O crime, considerado “incompreensível” por amigos e familiares, fez do operário um mártir da democracia e da luta sindical contra a ditadura civil-militar (1964-1985).

Em memória de Santo Dias, os manifestantes pintaram a rua de vermelho, cor que ilustra ao mesmo tempo a ideologia de Santo e o sangue derramado em defesa de seus ideias. Seguiram em procissão para o Cemitério de Campo Grande, onde foi celebrada uma missa sobre o túmulo do operário, lembrado pelos companheiros presentes como um “pacifista”, “apaixonado” e “muito querido”.

“Santo Dias era um líder de comunidade, que participava ativamente da igreja e representava a Pastoral Operária na CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Era um companheiro de luta, apaixonado pelo trabalho social, com uma capacidade ímpar de organizar os trabalhadores. Era conhecido por todos”, lembrou o ex-padre Raimundo Perillat, que militou com Santo Dias.

Natural do município paulista de Terra Roxa, primeiro dos oito filhos do casal de pequenos agricultores Jesus Dias da Silva e Laura Amâncio Vieira, Santo Dias se envolveu com a luta dos trabalhadores rurais ainda adolescente. Católico, foi influenciado pelos párocos progressistas ligados à Teologia da Libertação e, ao lado de outros empregados da fazenda em que trabalhava, organizou seu primeiro movimento por melhores salários entre 1960 e 1961. A combatividade do filho mais velho levou a família a ser expulsa da colônia em que morava, com destino à capital, São Paulo.

Santo se mudou para Santo Amaro, na região sul da capital, onde conseguiu trabalho como ajudante geral na Metal Leve, uma empresa de componentes automotivos. Com a formação ideológica iniciada ainda nas lutas do campo, a transição para a luta dos operários da cidade foi natural. Já no primeiro emprego uniu-se ao movimento operário que lutava por reajustes e melhores condições de trabalho. A partir de 1965, iniciou sua atuação na chapa de oposição do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, considerado “pelego” por parte da categoria, por seguir as restrições impostas pelos militares à ação sindical.

“Até 1978, ele participava da chapa de oposição do sindicato, que o governo militar não reconhecia, temendo uma postura combativa dos trabalhadores. A situação era pelega e era a oposição que articulava as greves. Santo Dias era especialmente importante porque era um líder de comunidade nato”, lembra Perillat.

O final dos anos 1970 foi de retomada da ação sindical, ainda sob o período autoritário. Em 12 de maio de 1978, os metalúrgicos da Scania, em São Bernardo do Campo, ABC paulista, entram em greve. Naquele ano, três chapas (uma ligada ao movimento de oposição metalúrgica) concorrem no sindicato da categoria em São Paulo, que continua sob o comando de Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão. No sindicato de São Bernardo e Diadema, Luiz Inácio da Silva, o Lula, é reeleito em chapa única.

A atuação militante de Santo Dias, no entanto, não se restringiu ao movimento operário. Como membro ativo das recém-criadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e dos movimentos de bairro, ele se engajou na luta por transportes, escolas e melhoria na qualidade de vida dos de trabalhadores. Participou ainda da coordenação do Movimento do Custo de Vida, entre 1973 e 1978, ao lado de sua mulher, Ana Maria do Carmo, liderança sindical e feminista.

“Ele é a memória do povo em luta na época da ditadura. É um militante que deu seu sangue e que mantém viva toda uma história de luta. Todos os que estão aqui hoje e todos os anos, já há 35 anos, relembram sua vida e confirmam que o que ele fez não foi em vão. Jamais vão conseguir tirar a luta e a esperança de um povo”, diz Ana Maria.

Ela ainda lembra vividamente os fatos que antecederam o crime contra Santo Dias. No primeiro dia da greve da categoria em outubro de 1979, as subsedes do sindicato, que abrigavam os comandos de greve, foram invadidas pela PM, que prendeu mais de 130 pessoas. Sem apoio do sindicato e com a intensa repressão, os metalúrgicos passaram a se reunir na Capela do Socorro. No dia 30, Santo Dias, então integrante do comando de greve, foi engrossar um piquete na frente da fábrica Sylvania e conversar com os operários do turno da tarde.

Pouco antes disso, viaturas policiais chegaram ao local. “Nós estávamos em só cinco pessoas no piquete. A pedido de Santo Dias, o mais pacífico de todos, já tínhamos concordado em deixar o local, mas de repente mais viaturas chegaram, nos cercaram e nos mandaram deitar no chão. Foi aí que eles dispararam contra Santo Dias, pelas costas. É difícil de compreender porque aconteceu uma coisa tão absurda”, lembra, emocionado, o ferramenteiro Vicente Garcia, que presenciou o assassinato. “Um companheiro viu tudo e reconheceu o policial. Ele foi julgado, mas acabou absolvido.”

Santo Dias foi levado já sem vida pelos policiais para o Pronto-Socorro de Santo Amaro. Sua esposa entrou à força no carro que transportava seu corpo para o Instituto Médico Legal (IML), o que, para ela, foi o gesto que impediu que seus restos mortais desaparecessem, como era comum com adversários políticos da ditadura. “Eles queriam sumir com o corpo para não ficarem com a culpa, mas nós não estávamos sozinhos. Tivemos muita coragem e enfrentamos os militares e toda a repressão que estava ao nosso redor naquele momento”, lembra Ana Maria.

A morte do metalúrgico foi anunciada por vários veículos de comunicação. No dia 31 de outubro, 30 mil pessoas saíram às ruas de São Paulo para acompanhar o enterro e protestar contra a morte do operário. “Era como se Santo Dias fosse uma pessoa marcada, porque participava das comunidades de base e porque era muito respeitado no sindicato. Acima de tudo, era uma pessoa muito pacífica”, lembra Garcia.

O corpo de Santo foi velado na Igreja da Consolação e levado para a Catedral da Sé, na região central. “Não é certo que a violência arme a mão de outro pobre para terminar com a vida de Santo, não é certo que andem armados policiais que se vão encontrar com o povo de braços cruzados, não é certo que haja dois pesos e duas medidas, uma para o patrão, outra para o operário”, afirmou, durante a cerimônia, o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns.

Uma das homenagens organizadas pelos operários, à época, foi a gravação de um disco com canções e poesias que narram a luta camponesa e operária em São Paulo, bem como a vida e a morte de Santo Dias. Ouça, abaixo, a íntegra da gravação:

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