Operação delegada

Ambulante morto não é caso isolado. Libertação expressa de policial, também não

Para advogado da Conectas, episódio é mais um exemplo contumaz de um modelo de polícia militar que precisa ser repensado. Mesmo com vídeos comprovando crime, policial foi solto por juíza em 24 horas

circuito/reprodução

Sucessão de episódios violentos ampliam necessidade de desmilitarizar a polícia, que vê cidadãos como criminosos potenciais

São Paulo – A atuação da Polícia Militar durante uma ação de combate ao comércio ilegal de ambulantes, conhecida como Operação Delegada, na última quinta-feira (18) na Lapa, zona oeste de São Paulo, que resultou na morte do vendedor ambulante Carlos Augusto Muniz Braga, é mais um caso que demonstra a necessidade de uma urgente reforma da Polícia Militar. Esta é a opinião do advogado Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos. Ele diz que esse foi mais um episódio que comprova que não faz mais sentido a existência de um aparato policial militar violento no Brasil.

“É importante a gente abrir a lente e compreender que aquilo que aconteceu, na verdade, é o sintoma de uma doença muito maior, que é a existência de um modelo de polícia que é completamente anacrônico e dissociado de uma estrutura democrática de direito, que a gente teoricamente vive desde 1988”, principia Custódio, que lamenta pelo fato de a Constituinte do período não ter avançado na desmilitarização da polícia brasileira, mesmo com pedidos de setores da sociedade civil já na época de sua promulgação.

Na segunda-feira (22), opolicial militar Henrique Dias Bueno de Araújo, acusado da morte de Carlos Braga, deixou o presídio militar Romão Gomes, onde estava preso desde a última quinta-feira. A decisão foi da juíza Eliana Cassales Tosi de Mello, da 5ª Vara Criminal de Justiça da capital, que havia determinado a prisão preventiva do soldado na tarde da última sexta-feira (19), mas mudou de ideia horas depois e aceitou um pedido de revogação da prisão feito por advogados do PM ainda naquele dia.

Araújo ganhou liminar que revogou sua detenção, apesar de testemunhas terem gravado o momento em que o PM atirou em direção à cabeça dmagiso camelô, quando este tentou arrancar um spray de pimenta da mão esquerda do soldado. O vendedor acabou não resistindo ao ferimento e morreu antes de chegar ao hospital. Em depoimento, o PM alegou ter disparado de forma acidental.

Tosi de Mello entendeu que o policial tinha de estar armado e acabou agindo em legítima defesa. Além disso, considerou que o PM possui domicílio fixo em São Paulo, ocupação lícita e não tem maus antecedentes. Um tratamento incomum em casos de crimes cometidos por civis. Araújo responde ainda a outro processo por homicídio, pela morte de um morador de rua na Vila Leopoldina, zona oeste da capital, ocorrida no semestre passado, na qual alegou ter agido em legítima defesa.

Embora não conheça a decisão especificamente da magistrada, Custódio acredita que existe um grave problema de conivência do Poder Judiciário com a Polícia Militar. “O Ministério Público e o Judiciário são muito paradoxais na sua atuação. Com esse alvo do sistema, esse pobre, a população mais marginalizada, eles são muito rígidos na aplicação da lei, mas quando é com o Estado, eles são muito tímidos.”

O coordenador da Conectas Direitos Humanos alude a casos como de uma pessoa que furta um telefone celular e precisa responder ao processo judicial preso. “Temos um MP que acredita no encarceramento como resposta aos males da sociedade, a não ser que seja o próprio ente público que cometa o crime. Aí, eles articulam uma outra resposta do Estado. Isso é muito grave, demonstra um caráter de seletividade do sistema. O sistema judiciário só funciona para determinado grupo da população, que são as pessoas mais vulneráveis, os pobres, os negros. A Justiça, pelo que a gente conhece, é muito lenta para lidar com esse pobre que é colocado nas prisões”, ataca.

Custódio explica que a polícia foi idealizada na Constituição Federal para combater um inimigo e, como uma força militar do Exército, foi pensada, estruturada e equipada – incluindo seus agentes treinados ou não treinados – para o conflito, ou seja, para enxergar a população como um potencial inimigo. “Isso não faz mais sentido em um regime democrático de direito. O Brasil é um dos poucos países do mundo que tem uma polícia militarizada patrulhando as ruas. No geral, você tem forças militares com papel de Exército mesmo, ou seja, patrulhando fronteiras, combatendo inimigos externos, atividades próprias das Forças Armadas.”

“Se a gente pegar fatos recentes – não só a letalidade e casos de abuso policial, o modo como a polícia lida com o direito à manifestação –, com esse caso do vendedor ambulante fica inquestionável a urgência de refletirmos sobre esse modelo de Polícia Militar. É mais um caso de uma lista de violações de direitos humanos, de brutalidades policiais, de exemplos que mostram como nossa polícia não pode mais ser estruturada com essa ideologia”, acrescenta o advogado.

Ele lembra que a morte do vendedor ambulante na última quinta-feira (18) está longe de ser um caso isolado, fato comprovado pela estatística de que a PM de São Paulo matou 424 pessoas no primeiro semestre de 2014, 62% acima do que o ano passado inteiro. O número de PMs mortos também passou de 33 para 44.

“É uma polícia que mata muito, não tem freios, ou seja, as instituições de Justiça não funcionam como um contraponto. O Ministério Público é absolutamente omisso ou, no máximo, tímido ao controlar a polícia, que é função dele”, opina o advogado, evocando mais uma vez a Constituição Federal, que estabelece o Ministério Público como um órgão que deveria fazer o controle da atividade policial.

“[Mas] ele não o exerce satisfatoriamente, muito pelo contrário. Você tem o respaldo político das autoridades, ou seja, o comando das polícias, os chefes do Executivo, os secretários de segurança, em geral, ficam muito confortáveis de virem a público e defender esse tipo de abuso – ou, no máximo, dizer que determinado abuso foi um erro daquele policial especificamente, como se isso fosse uma casualidade. Eles defendem esse espírito guerreiro da polícia, da dureza e tal. E o sistema de Justiça é conivente. Você tem uma corregedoria corporativista, uma ouvidoria que não é externa à polícia, que não tem autonomia”, critica.

Além de respaldo político, o ativista da Conectas diz que os PMs têm agido de uma maneira que lhe dão certeza de que nenhuma outra instituição irá controlá-los. “O PM tem a certeza de que não será punido, a não ser que ele dê muito azar – que tenha uma testemunha, que tem alguém filmando. A certeza de que ninguém controla a polícia é um dos principais motivos de preocupação para a população. A gente naturaliza essa questão, mas as pessoas têm medo da PM. Isso não pode ser comum. Nenhum agente público podia ter a certeza da impunidade.”

“Nas imagens gravadas é perceptível uma tensão no local, principalmente decorrente da postura dos PMs, que gerou uma situação de conflito que culminou naquela situação [a morte de Braga]. Talvez uma polícia treinada com outra perspectiva, uma polícia – que a gente fala aqui – pensada para garantir segurança, e não violar direitos da população, teria reagido de uma maneira diferente, e aquele momento não tivesse acontecido”, acredita o advogado.

Para Custódio, a melhoria e a desmilitarização da polícia brasileira não depende de grandes milagres, mas sim de um esforço político e uma reflexão sobre a realidade. “O Brasil tem discussões muito apaixonadas para alguns temas, e essa discussão encaminhada desta maneira acaba muitas vezes sendo vantajosa para quem quer manter o estado das coisas como estão. As pessoas precisam pensar se vale a pena ter uma polícia militar que a gente teme ou uma polícia para garantir direitos e segurança. Quando o país entender que a gente não precisa mais de um modelo tão violento de polícia, a gente vai conseguir caminhar. Esse é um dos principais pontos do debate público brasileiro sem sombra de dúvidas”, finaliza.

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