Cemitérios no foco

Comissão vai apurar relação entre prefeitura de SP e militares na ditadura

'A cidade de São Paulo tem muitos fantasmas', diz prefeito. Durante posse do colegiado, Forças Armadas foram criticadas pela resistência a prestar informações sobre o período

Heloisa Ballarini/SECOM

A cerimônia de posse foi realizada no Arquivo Histórico de São Paulo, no Edifício Ramos de Azevedo

São Paulo – A ligação entre órgãos da prefeitura de São Paulo e do comando das Forças Armadas durante a ditadura (1964-1985) será objeto de investigação da Comissão da Memória e Verdade do município, que tomou posse ontem (25) à noite e fará hoje a sua primeira reunião, com a ex-vereadora Tereza Lajolo na presidência. Ela comandou a CPI da Câmara Municipal que, em 1990, apurou o episódio das ossadas encontradas em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, zona noroeste da cidade. Na época, uma das descobertas foi sobre um projeto para instalar um crematório no local, que poderia ser destinado a incinerar corpos de indigentes e desaparecidos políticos. Também haveria a intenção de multiplicar a prática em cemitérios de outros países da América do Sul. Era um período de cooperação entre regimes autoritários do continente.

“A gente conseguiu descobrir que a vala de Perus foi o crematório que não existiu naquele momento, porque sentiram que poderia haver resistência”, diz Tereza Lajolo. Ela lembrou episódio envolvendo uma empresa inglesa (Dowson & Mason), que seria a responsável pela instalação do crematório, mas viu inadequações no projeto, que terminou descartado – posteriormente, em 1974, foi construído um crematório, ativo até hoje, no cemitério de Vila Alpina, na zona leste.

A ex-vereadora e ex-secretária municipal de Transportes, professora da rede estadual, destacou a ex-prefeita Luiza Erundina, que “tinha assumido a posição de tornar pública a existência da vala de Perus”. E fez questão de homenagear os familiares de mortos e desaparecidos. “Se não fossem eles, nós não estaríamos aqui fazendo comissão da verdade.”

O uso de cemitérios, entre outras instalações públicas, será certamente um dos focos da comissão. Recentemente, a prefeitura paulista firmou parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a fim de destinar as 1.049 ossadas encontradas na vala de Perus, para efetiva análise, à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com participação de peritos internacionais. “Começamos, finalmente, a fazer o nosso dever de casa”, afirmou o secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Rogério Sottili.

Além de Tereza Lajolo, a comissão empossada ontem tem o jornalista Audálio Dantas, o escritor Fernando Morais e os advogados Fermino Fecchio e Cesar Cordaro – este último não compareceu à cerimônia por motivo de viagem ao exterior. “O que nos espera é uma montanha de trabalho”, disse Fernando Morais, citando informação da prefeitura de que mais de 20% dos mortos e desaparecidos políticos do país se concentram na capital paulista. “Há muita coisa a apurar da promiscuidade da administração municipal com o Estado-Maior (das Forças Armadas)”, acrescentou.

Desaforo

O escritor e jornalista, ex-deputado e secretário estadual (Cultura e Educação), também criticou a resistência do atual comando militar de prestar esclarecimentos à Comissão Nacional da Verdade. “É um corporativismo doentio das Forças Armadas. E, sobretudo, um desaforo à presidente da República, que é a comandante em chefe das Forças Armadas. Não adianta. A verdade vai vir à tona. É lamentável. Nenhum desses oficiais participou da repressão. Apontar e punir é bom para a instituição.”

Também para Sottili, ainda que as Forças Armadas estejam associadas à chamada governabilidade, não podem ser tratadas como caso à parte. “Temos de começar a enfrentar de forma mais firme o envolvimento das Forças Armadas (com a ditadura). A maior parte não tem compromisso com a ditadura, com a repressão.” Ele avalia que as comissões da verdade em atividade já têm material suficiente para que os atuais comandantes reconheçam erros cometidos naquele período.

Em discurso, Sottili defendeu a terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), citando o ex-ministro Paulo Vannuchi, presente ao ato. Contudo observou que se trata de um “processo nada consensual, como mostra o posicionamento atual das Forças Armadas.”

Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo à época do assassinato de Vladimir Herzog, o Vlado, em 1975, Audálio Dantas também criticou a postura dos militares, que “devem obediência legal às forças constituídas”. “Acho que essa posição é um acinte”, afirmou, atribuindo certo receio de governos no período democrático à demora de se instalar uma comissão da verdade, o que só ocorreu dois anos atrás. “A Comissão Nacional da Verdade veio tardiamente porque faltou coragem aos sucessivos governos.”

O deputado estadual Adriano Diogo (PT), que preside a comissão da Assembleia Legislativa paulista, fez um pedido público à presidenta Dilma Rousseff pela demissão do comandante do Exército, general Enzo Peri; entidades de direitos humanos acreditam que o militar está obstruindo investigações, o que foi negado pelo ministro da Defesa, Celso Amorim. “Ele afrontou a senhora, afrontou as instituições, a sociedade brasileira”, afirmou o parlamentar, para quem a comissão da prefeitura preserva atualidade, mesmo sendo instalada quase ao mesmo tempo em que outras estão para encerrar atividades, caso da comissão nacional, que entregará relatório em dezembro.

Estruturas

“A ditadura pode ter acabado no seu prazo legal, mas suas estruturas continuam intactas, como a Rota, como aquele coronel da Câmara Municipal que se vangloria dos seus assassinatos”, disse Diogo, em referência ao Coronel Telhada. O deputado lembrou ainda que foi também em um 25 de setembro, data de posse da comissão da prefeitura, que o militante Virgílio Gomes da Silva foi preso e morto pela ditadura, em 1969.

Secretário da comissão da Assembleia e presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), o ex-preso político Ivan Seixas afirmou que o serviço funerário precisa ser “desmontado”, para que seja apurado o uso indevido durante o período da exceção. Ele chamou a CPI das ossadas de Perus de “a primeira comissão da verdade” brasileira. Segundo Seixas, o Instituto Médico Legal (IML) e os serviços funerários faziam parte do aparato repressivo dentro do chamado Sistema de Segurança Interna (Sissegin), organizado pelo regime. “Eles criaram, dentro do Estado brasileiro, uma grande máquina de controlar informações e matar os opositores”, afirmou.

Um sistema que ainda se mantém, acrescentou Seixas. “Até hoje, a PM é vinculada ao Estado-Maior do Exército. O P2 (serviço reservado da Polícia Militar) não presta contas nem ao seu comandante, presta contas ao S2, do Exército.”

Além de investigar ações da prefeitura em benefício da repressão política, prejuízos causados aos cidadãos, perseguições a servidores e cessão de edifícios públicos para práticas como tortura, Audálio Dantas espera que a comissão possa avançar em outro terreno, relacionado à memória da cidade. Ele defende rediscutir os logradouros com nomes de pessoas ligadas à ditadura.

Essa reivindicação foi apresentada também, durante a cerimônia, pela estudante Lira Alli, do Levante Popular da Juventude. “A gente precisa que o povo acesse os espaços de poder”, ressaltou, lembrando que mulheres, negros e jovens ainda têm pouca representação no Congresso. “A gente espera que essa comissão seja pública e transparente de fato, e que seja mobilizadora. E que a gente consiga tirar os nomes de todos os torturadores”, acrescentou, para em seguida cantar música criada pelo movimento: “Desejo a todos golpistas vida longa/ Pra que eles vejam cada dia mais nossa democracia.”

Para Lira, é importante, particularmente para os jovens, que se identifiquem os legados da ditadura, como o conservadorismo, a violência policial e o monopólio dos meios de comunicação. “Se não houver democratização, não adianta fazer comissão da verdade, porque eles não vão divulgar.” Ela defendeu ainda mudanças no sistema político: “Empresas financiadoras têm mais poder que o povo.”

Fantasmas

O prefeito Fernando Haddad (PT) afirmou que houve “muita resistência para instalar a comissão, em parte pela ideia de que o colegiado seria criado tardiamente. Ele justificou a iniciativa, incluída em seus compromissos de campanha, também por motivos políticos. “Desde a redemocratização, se faz esse esforço de ‘naturalizar’, de dizer que eram dois lados (na ditadura), que era uma guerra. A instalação da Comissão da Verdade é um repúdio da autoridade municipal a esse tipo de pensamento”, disse o prefeito, garantindo que “todas as condições materiais e políticas serão colocados à disposição” dos integrantes. “A cidade de São Paulo tem muitos fantasmas. Acho que o principal, não só em São Paulo, é a ideia de que nossa democracia é frágil, que as forças de repressão podem se reorganizar.”

Audálio Dantas também refuta o argumento dos defensores do golpe de 1964. “A Comissão Nacional da Verdade deflagrou esse movimento no país. Não significa que a história vai ser reescrita, agora que vai ser escrita. Agora é que vamos escrever a verdadeira história. Não existem dois lados. Havia o lado opressor, governos ilegais, não eleitos, e os cidadãos têm o direito de se opor a esses regimes. Dizer que era uma guerra é mentira, porque seria a guerra mais desigual do mundo.”

A cerimônia de posse foi realizada no Arquivo Histórico de São Paulo, no Edifício Ramos de Azevedo, bairro do Bom Retiro, na região central. Serão nesse local as reuniões dos integrantes da comissão, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania. O mandato é de dois anos, prorrogável por um. Perto dali, funcionou o Presídio Tiradentes, para onde eram levados presos políticos desde o período do Estado Novo, governado por Getúlio Vargas. O escritor Monteiro Lobato foi um desses presos, assim como, anos mais tarde, durante a ditadura civil-militar, a militante Dilma Rousseff.

O ato começou com uma apresentação da Cooperativa Paulista de Teatro. O grupo interpretou três “clássicos” do período ditatorial. Suíte dos Pescadores (Dorival Caymmi) era cantado pelos presos políticos. O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc) virou um hino informal da anistia. Eu Quero é Botar meu Bloco na Rua, de Sérgio Sampaio, traz um forte protesto contra a repressão.

Leia também

Últimas notícias