Intolerância

Discursos de ódio ganham evidência no Brasil e incentivam violência contra minorias

Para especialistas, discursos intolerantes podem incentivar e reforçar opressões e casos de violência física. Formas mais atenuadas de reproduzir preconceitos são ainda piores

São Paulo – No último dia 3 de setembro, o delegado de Polícia Civil Henrique Pessoa, do Rio de Janeiro, foi espancado por um grupo de evangélicos após tentativa de conciliação entre ele e o neopentecostal Márcio Pereira de Carvalho, seguidor da igreja Geração Jesus. Pessoa é membro da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio (CCIR) e havia comparecido ao 5º Juizado Especial Cível de Copacabana para pedir que Márcio se retratasse por ofensas feitas em vídeos no YouTube. Não houve acordo e, na saída da audiência, liderados pelo pastor Tupirani da Hora Lopes, pessoas que vestiam camisetas pretas com os dizeres “Bíblia, sim” e “Constituição, não” encurralaram o delegado, que foi cercado e agredido.

Para tentar afastar o grupo, Henrique pegou a arma que carregava e atirou. A bala acertou, de raspão, o abdômen de um dos agressores, Carlos Gomes. O delegado tentou fugir dos ataques. No entanto, foi alcançado. Pessoa, delegado titular da 79ª Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro, foi afastado do cargo no último dia 5. Ele garante que provará a perseguição que sofre há seis anos por parte dos membros da igreja Geração Jesus e que atirou apenas para dispersar os agressores. Após o tiro de raspão, o evangélico Carlos Gomes não precisou passar por cirurgia e foi liberado.

Casos como o do delegado, em que a violência é consequência de discursos de ódio contra opiniões, crenças e classes sociais distintas, ocupam cada vez mais espaço no noticiário. Em fevereiro deste ano, um adolescente acusado de assaltar moradores foi espancado e amarrado num poste, no Flamengo, na zona sul carioca. Já no Guarujá, litoral sul de São Paulo, Fabiane Maria de Jesus foi linchada e morta, no mês de maio. Os agressores acreditavam que ela estava ligada a sequestros de crianças para rituais de magia negra. Esses são exemplos emblemáticos, amplamente noticiados, de diferentes tipos de intolerância que resultaram em confrontos físicos e até assassinatos.

Contudo, temas como defesa da redução da maioridade penal, pena de morte, machismo, racismo, homofobia, discursos que reproduzem preconceitos e opressões, estão presentes em propagandas eleitorais, publicidade, redes sociais, mídias e programas de TV.

Para Diana Luz Pessoa de Barros, professora titular aposentada do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o sujeito político e a mídia assumem uma posição de poder e do saber, e acabam por se tornar referências.

Em pesquisas sobre a intolerância nos discursos políticos, Diana trouxe a questão sobre a liberdade de uma pessoa pública expressar preconceitos e intolerâncias. A professora tem uma resposta muito objetiva para a pergunta: pessoas que ocupam esses papéis não podem evidenciar preconceitos e intolerâncias. “Quem ocupa essa posição, em que é considerado um sujeito que pode e que sabe, ao expressar seus preconceitos e intolerâncias, incita a violência. E mesmo que ele não faça nada, que ele não seja violento, a não ser verbalmente, que é uma violência contra o outro, ele vai levar outros a matar e a uma série de coisas dessa ordem.”

Os discursos intolerantes vindos de pessoas, como políticos ou professores, confirmam” o preconceito do outro, que passa a considerar justo o pensamento. “Se o mais sábio e o mais poderoso pensa assim, é correto que ele também o faça”, argumenta Diana. “Isso não é ser contra liberdade de imprensa e liberdade de pensamento, mas é ser a favor de responsabilidade do que se diz ao ocupar certos papeis”, completa.

O psicanalista e psiquiatra Oswaldo Ferreira Leite Netto, diretor do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, corrobora a visão de Diana. Para ele, o perigo desse tipo de linguagem é grande porque as pessoas são ávidas de orientação. “A nossa mente não tolera muito o desconhecido, o não saber. Qualquer coisa que aparece como orientação, facilmente se adere e se agarra. E, dito sutilmente, como graça, acho grave.”

Militantes de diferentes áreas buscam evidenciar preconceitos e opressões presentes em notícias, propagandas e programas de TV. Comerciais de cerveja, por exemplo, não raramente, reproduzem o machismo e são alvo de críticas por parte de feministas.

Uma delas mostrava o que um grupo de homens faria se fosse invisível. Para espanto de algumas pessoas, esses homens agrediriam mulheres, passando a mão nas que saíam do mar e invadindo um vestiário feminino. Embora não mostre o que ocorreria dentro do vestiário, não é difícil imaginar ao ver mulheres saírem correndo assustadas após as latinhas entrarem “flutuando”. A intenção de fazer uma propaganda bem-humorada se tornou apenas mais uma maneira de tentar amenizar agressões às mulheres, um problema grave no Brasil, que tem números alarmantes de violência contra a mulher – no mínimo, 597 mil pessoas são estupradas por ano no país, segundo o Ipea, sendo 89% mulheres.

Um programa humorístico de TV da maior emissora do país também foi alvo de denúncias por reproduzir cenas de violência contra a mulher no transporte público e por racismo. O tom de “piada” de homens “encoxando” passageiras e a reprodução de esteriótipos preconceituosos de pessoas negras foram os maiores motivadores das críticas. Um ator interpreta uma mulher negra que, não por acaso, é pobre, feia, banguela, ignorante e faz referências pejorativas, por exemplo, aos cabelos de pessoas negras.

Esses são apenas alguns dos exemplos facilmente encontrados no nosso cotidiano, que conta, ainda, com inúmeros casos de transfobia e gordofobia, entre tantos outros preconceitos e opressões, que têm como justificativa argumentos como “é só uma piada”, “é só uma música”, “é só um comercial.”

Às vezes, em tom mais sutil, um discurso intolerante pode parecer inofensivo, mas não é o que avalia Oswaldo. “Acho tão nefasto quanto, talvez pior, porque é insidioso.” Oswaldo cita o livro A Linguagem do Terceiro Reich, que analisa o discurso nacionalista e nazista na Alemanha da Segunda Gerra Mundial. “Era sempre enfatizando o bom da superioridade, dos valores, da riqueza, do que eles podiam, do que eram, e isso foi construído e inoculado na sutileza, no cotidiano.”

Diana também acredita que as consequências de discursos atenuados podem ser ainda mais graves. “Muitas vezes, o que as pessoas fazem é esconder com preconceitos e intolerâncias que a sociedade aceita melhor aqueles que a sociedade proíbe. Revistas que não aceitariam publicar um discurso explicitamente racista aceitam publicar contra certos usos linguísticos. Mas, na verdade, essa intolerância em relação a linguagem, esconde racismo, preconceito pelas classes menos favorecidas”, exemplifica, ressaltando a importância de examinar “como o uso de certos preconceitos considerados ‘aceitáveis’ esconde preconceitos que são condenados na sociedade.”

Raw Image/FolhapressCTG
Centro de Tradições Gaúchas foi incendiado dias antes de receber casamento coletivo, sendo um deles entre duas mulheres

Alvo frequente da violência resultante dos discursos de ódio, a comunidade LGBTT sofre cotidianamente com ataques. Exemplo disso foi o ocorrido na quinta-feira da semana passada (11), no palco do Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Sentinelas do Planalto, em Santana do Livramento (RS) que, segundo o jornal Zero Hora, foi atingido pelo fogo. O motivo tem relação com o recebimento, no espaço, de um casamento coletivo no sábado (13), sendo um deles entre duas mulheres. O administrador do CTG, Gilbert Gisler, registrou, na Polícia Civil, ameaças recebidas após o anúncio da realização da união de casais homossexuais no local.

Ainda de acordo com o jornal, o vereador Xepa (PDT-RS), como Gilbert é conhecido, recebeu um telefonema anônimo no dia 29 de julho. A ligação era de um homem que dizia ser parte de um grupo que se articulava para impedir a realização da cerimônia. “Segundo o rapaz, o pessoal desse grupo disse que o casamento não saía de jeito nenhum, nem que, para isso, tivessem  que ‘dar um pau nesse tal de Xepa, dar um jeito na juíza e botar fogo no CTG’”, relatou. O casamento coletivo, que precisou ter o local transferido, foi realizado no dia previsto.

Oswaldo Ferreira ressalta que o casamento como conhecemos hoje, monogâmico e heterossexual, é uma “invenção”. “São fatos estabelecidos, mas é tudo inventado, não era assim antes. É difícil você desarmar depois que se instalou um esquema, uma cultura desse tipo, justamente por causa dessa inoculação sutil”, argumenta o psicanalista.

Discursos intolerantes e violentos podem ser fatais e ter consequências graves de diferentes formas. Em 2012, a canadense Amanda Todd, de 15 anos, se suicidou após sofrer bullying. As agressões verbais começaram quando tinha 13 anos. Em um grupo de bate-papo da internet, um homem a elogiou e a convenceu a mostrar os seios.

ReproduçãoAmanda Todd
Amanda Todd fez um depoimento em vídeo, relatando as agressões e ameaças que sofreu durante dois anos

Um ano depois, a mesma pessoa a encontrou no Facebook e ameaçou divulgar as imagens. Mesmo sem conhecer pessoalmente a adolescente, ele sabia o endereço da jovem, nomes de pessoas da família e a escola em que estudava. As fotos foram enviadas para muitas pessoas. Uma chegou a virar avatar de um perfil na rede. Amanda perdeu todos os amigos. Mudou de escola e conheceu um garoto por quem se interessou. O menino, que tinha namorada, a convidou para ir até a casa dele. A garota aceitou. Dias depois, o rapaz e outras pessoas a cercaram na saída da escola. Ela apanhou, foi xingada e humilhada.

Amanda, que já havia tentado o suicídio anteriormente, sofreu de ansiedade e depressão, fez terapia e deixou um forte relato, em vídeo, poucos dias antes da morte. “Eu errei, mas por que continuar me seguindo? Todo dia eu penso: Por que ainda estou aqui?”. E deixou um último pedido de ajuda: “Não tenho ninguém. Preciso de alguém.”

A violência sofrida por Amanda ultrapassou o mundo virtual e teve um final trágico, mas comentários em blogs, sites e redes sociais ameaçadores, ofensivos, agressivos e violentos são recorrentes. O psiquiatra Daniel Martins de Barros, no texto Psicopata é você!, publicado no seu blog, em agosto deste ano, fala sobre a frequência com que agimos com desprezo nas redes sociais.

Para Daniel, o problema do mundo virtual é “a falta do olhar alheio”, que funciona como um “freio social” para alguns impulsos. “Nas redes sociais, somos todos assim: não vemos as expressões de nossos interlocutores, tanto pela invisibilidade como pela assincronia do diálogo. E sem esse feedback, não sofremos com a dor alheia, já que não a testemunhamos diretamente.”

Diana lembra que o discurso da internet não é “por definição preconceituoso ou intolerante” e tem características que o tornam complexo, “ele é, ao mesmo tempo, fala e escrita, um discurso em que você tem anonimato, mas fala para milhões.” Dessa forma, ele se torna mais exacerbado, mais intenso e com alcance maior, sendo “um lugar de aparecimento de intolerâncias, dos preconceitos e do incitamento à violência.”

No entanto, o psiquiatra Daniel Martins de Barros reforça que a maioria das pessoas não sofre “uma transformação” no mundo virtual. “Não se pode ignorar que essa nova forma de interação humana, na qual o exercício da empatia fica prejudicado, está associada a mais atitudes de desprezo pelos outros.” No entanto, ele se mantém com esperanças de que essa situação mude. “Como acredito na capacidade de adaptação humana, acho que a solução virá com o tempo. Só não sei quando.”

Leia também

Últimas notícias