direito da mulher

Aborto, tema ignorado pela sociedade, fica excluído também do debate eleitoral

Tema que motivou fortes discussões em 2010, agora se limita a opiniões pessoais. Aumento no número de candidatas não ampliou propostas de políticas para as mulheres. Hoje (28) é o Dia Latino-Americano de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto

Código19/Folhapress

Marcha das Vadias pela Descriminalização do Aborto realizada ontem (27), no calçadão da 13 de Maio, no Centro de Campinas

São Paulo – Se em 2010 o tema aborto causou polêmicas, discussões e troca de acusações entre presidenciáveis, em 2014 o tema passa ao largo do debate. As demandas femininas não ganharam força ou visibilidade nos programas de governo, apesar do aumento do número de candidatas no período, de 5.056 para 7.407 (46,5%), segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Luciana Genro (Psol) foge à regra. Em seu site de campanha, o texto intitulado “Pela vida das mulheres, legalizar o aborto” dá luz a informação por todos conhecida: quem pode pagar pode optar pela interrupção da gravidez de modo mais seguro, enquanto mulheres pobres acabam recorrendo a métodos precários e extremamente arriscados. Analisa que é preciso garantir educação sexual e acesso gratuito a métodos contraceptivos. “Defendemos a educação sexual para prevenir, contraceptivo para não engravidar e aborto legal e seguro, garantido pelo SUS (Sistema Único de Saúde), para evitar a morte de mulheres em decorrência de abortos clandestinos.”

Único a levantar o debate sobre o tema na televisão, até agora, o candidato Eduardo Jorge (PV) propõe educação sexual e a possibilidade legal de interrupção da gravidez “com regras e limites quanto à idade gestacional”, sem especificar qual seria esse limite.

No programa da presidenta Dilma Rousseff (PT), candidata à reeleição, a proposta apresenta uma política genérica para mulheres, prevendo empoderamento, autonomia e violência zero como diretrizes. “A implementação da Casa da Mulher Brasileira será decisiva para este objetivo, assim como as medidas de promoção da igualdade.”

Contrária ao aborto, Marina Silva (PSB) já justificou em entrevistas sua posição: “Porque a sociedade brasileira sabe que esse é um tema complexo, porque envolve questões morais, questões filosóficas, questões ligadas à espiritualidade”, disse no último dia 8, para a TV Record. A ex-senadora propõe promover direitos reprodutivos e sexuais das mulheres com a oferta de contraceptivos e a difusão do parto humanizado. Seu programa fala em consolidar no SUS os serviços de interrupção da gravidez conforme a legislação em vigor.

Sem fazer menção ao tema ou mesmo a políticas específicas para mulheres, o programa do tucano Aécio Neves,  no item “Saúde” prevê apenas a elaboração de um projeto de lei para que a licença-maternidade de mães de filhos prematuros comece a contar a partir da alta do bebê.

O silêncio em relação ao aborto não se limita aos presidenciáveis. Grande parte dos candidatos a deputados estaduais ou federais e senadores opta por não abordar o assunto em seu tempo de propaganda eleitoral gratuita. As raras manifestações são contra a descriminalização e a legalização da prática.

Mas para a médica e presidenta do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), Ana Maria Costa, é fundamental cobrar respostas também no legislativo. “É preciso que as mulheres prestem atenção em qual é o deputado que se compromete a levar o tema ao parlamento e a enfrentar as forças conservadoras que hoje barram esse debate. É preciso que a gente cobre dessas pessoas, porque são elas que vão mudar a lei.”

A médica avalia que nas últimas eleições a discussão sobre o aborto foi a pior possível e “levou para debaixo do tapete uns 20 anos de discussão”. Para ela, a presença de religiosos fundamentalistas no atual governo impediu o avanço da discussão no Congresso Nacional.

Ana Maria lamenta que na disputa eleitoral apenas Eduardo Jorge tenha tratado publicamente do assunto, ao abordá-lo num debate televisivo. A resposta dos demais ficou no campo pessoal. “Não se trata de opiniões pessoais. Nós precisamos que o assunto seja assumido e discutido, como merece e precisa, por aqueles que têm responsabilidade pública, porque é um assunto público, é um assunto de saúde pública”, critica Ana Maria. “A falta do debate é irresponsável, é uma pauta para a democracia brasileira. Nós não podemos mais constranger a sociedade brasileira com uma legislação tão inadequada aos tempos atuais”, desabafa.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase 70 mil mulheres morrem por ano em decorrência de aborto inseguro. No Brasil, é permitido por lei apenas em caso de risco de vida para a mãe e em casos de gravidez decorrente de estupro. Mas isso não significa que as mulheres conseguirão realizar o procedimento com segurança. Dados do SUS mostram que a incidência de morte por complicações do aborto está entre as principais causas de mortalidade materna – cerca de 12,5% dos registros.

“Naturalmente, há variações entre regiões e estados brasileiros, sendo mais grave onde há mais pobreza e desigualdade social”, ressalta Ana Maria Costa em artigo publicado no site do Cebes, dando conta que cerca de 800 mil de abortos são realizados por ano no Brasil.

Nas últimas semanas, duas mortes decorrentes de procedimento inseguro no Rio de Janeiro ganharam destaque na mídia trazendo à tona o debate ignorado a maior parte do tempo por noticiários e governantes. Desamparadas e com receio de problemas no trabalho, Jandira Magdalena dos Santos e Elisângela Barbosa se submeteram a aborto em clínicas clandestinas e morreram em consequência de complicações.

Os dois casos não são isolados. Representam a realidade de muitas brasileiras, como ressalta a feminista Djamila Ribeiro, em entrevista à Rádio Brasil Atual: “Mulheres negras e pobres acabam fazendo por conta própria ou em clínicas sem as mínimas condições de higiene e cuidados. E, ou morrem, ou causam danos irreversíveis aos seus corpos”.

“Nessas discussões, a vida da mulher não é levada em conta, tanto pela religião quanto pelo Estado. Ninguém se preocupa com a mulher, que é tratada como cidadã de segunda classe e não é dona do seu corpo e das suas decisões”, critica Djamila.

Silêncio vira combustível

Embora o silêncio de candidatos seja grande, movimentos sociais e ativistas continuam fazendo barulho na tentativa de fomentar o debate. Hoje (28) é o Dia Latino-Americano de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto. Para marcar a data, o projeto 28 Dias Pela Vida das Mulheres reúne no site informações, dados, depoimentos e diversos outros materiais sobre o tema, além de organizar atos em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre (veja a programação para cada cidade no Facebook).

O projeto visa a oferecer informações políticas, sociais e científicas sobre o aborto e defende que a decisão de interrupção da gravidez é única e exclusivamente da mulher: “Criminalizar essa mulher é um ataque aos direitos humanos, à autonomia e às liberdades individuais”.

Outras organizações se posicionam favoráveis à legalização do aborto, como o próprio Cebes, que conta com uma série de artigos e textos sobre o tema em seu site, e a Anistia Internacional, que publicou um texto, no qual defende que “o aborto não seja tratado como uma questão criminal, e sim de saúde pública e direitos humanos”.

A Anistia faz parte também, entre outros projetos relacionados, da campanha internacional “Meu corpo, Meus direitos”, que pede aos governos que assegurem os direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos universais.

O presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), Sidnei Ferreira, também se manifestou favorável à causa. “O aborto é um problema de saúde pública que os Três Poderes precisam resolver. A sociedade tem de discutir esse assunto, para que seja liberado o mais rápido possível. Dentro das regras , mas o mais rápido que puderem. Se continuar sendo um crime, mulheres continuarão morrendo”, afirmou em entrevista à Agência Brasil.

A omissão de governantes não diminuiu a força de militantes e a disposição deve se manter nos próximos quatro anos. “A nossa perspectiva é tensionar para avançar”, garante Ana Maria. O retrocesso na discussão sobre o aborto acaba por ser mais um motivador da luta e evidencia sua importância.

“Neste momento, o debate do aborto está perdendo. Então, é muito importante que a sociedade se aproprie dele”, diz a médica. Com um longo caminho pela frente, Ana Maria defende a união de forças e faz um chamado: “Precisamos convocar inclusive a imprensa e os poderes que têm influência na formação”.

 

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