Em quatro anos

Postura de empresas tenta varrer para debaixo do tapete plano de resíduos sólidos

Política Nacional previa responsabilidades compartilhadas entre cidadão, poder público e setor privado na destinação de resíduos

Wilson Dias/ABr

Reciclagem deveria ser feita por setor empresarial e rejeitos deveriam ser levados para aterros sanitários. Em Brasília (f), tudo vai para um lixão

São Paulo – O lixo não foi varrido: nem para debaixo do tapete, nem para lugar mais adequado. Desde que a Lei Nacional de Resíduos Sólidos foi sancionada, em 2010, apenas um dos cinco acordos que deveriam ter sido firmados com o setor produtivo foram fechados para implementar a logística reversa, um dos pilares para o funcionamento da nova política. Os acordos deveriam definir como as empresas cumpririam a responsabilidade compartilhada prevista na legislação, mas o setor empresarial não quis assumir os custos, calculados em R$ 6,7 bilhões pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe).

A lei prevê que apenas os rejeitos – materiais que não poderiam mais ser aproveitados economicamente na reciclagem – podem ir para aterros sanitários. As prefeituras são responsáveis por destinar adequadamente para matéria orgânica, como restos de comida e podas de árvores, e cada empresa é responsável por aquilo que produz. Assim, uma empresa que vende biscoitos recheados, por exemplo, deve ser responsável por recolher, fazer a triagem e reaproveitar a embalagem de produtos.

Isso pode ser feito em sistema próprio, que envolva todas as empresas da cadeia produtiva, desde o fabricante da embalagem até o comerciante do petisco, ou o setor privado deve pagar para que a prefeitura execute o serviço. Tudo isso, no entanto, precisa ser especificado em acordo firmado entre os representantes de determinado setor e o poder público.

O Ministério do Meio Ambiente coordena a elaboração dos acordos dos setores de embalagens plásticas de óleos lubrificantes, lâmpadas fluorescentes de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista, produtos eletroeletrônicos e componentes, embalagens em geral e resíduos de medicamentos e embalagens, mas, até agora, apenas o de embalagens plásticas de óleos lubrificantes foi firmado, em dezembro de 2012.

Duas outras propostas, de embalagens em geral e de lâmpadas, foram aprovadas no mês passado, no Comitê Orientador para a Implantação da Logística Reversa (Cori), que tem a finalidade de definir as regras para devolução dos produtos que podem ser reciclados e é compostopelos ministérios do Meio Ambiente, da Saúde, da Fazenda, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Essas propostas ainda devem passar por consulta pública. Os acordos preveem responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos e garantem que esses materiais, depois de usados, possam ser reaproveitados.

A expectativa é de que, se tivesse sido implementada, a logística reversa contribuiria para a diminuição do volume de material levado para aterros e lixões. Estima-se que 40% de todo o material descartado pelos brasileiros seja reciclável, mas cerca de 3% é de fato reaproveitado.

Para o diretor-executivo do Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre), André Vilhena, apesar dos números, a lei pegou. “Nós não podemos generalizar, muitas prefeituras cumpriram o prazo. As que não fizeram foi claramente um problema de gestão, de organização. Até porque havia muitos recursos disponíveis. Quem não cumpriu, vai ter que se regularizar no plano local”, afirma. Para ele, os acordos têm apenas papel complementar ao papel que as prefeituras têm na gestão dos resíduos. “O que está sendo desenhado (nos acordos setoriais) é como o setor empresarial pode colaborar para ampliar a logística reversa, mas isso é independente da coleta seletiva municipal”, garante.

No entanto, outros especialistas ouvidos pela RBA apontam que a falta desses acordos foi um dos motivos para que prefeituras não conseguissem cumprir até o último sábado (2) o prazo para dar destinação correta para os resíduos e eliminassem os lixões. Dados da Confederação Nacional das Cidades mostram que 32,5% dos municípios com até 300 mil habitantes ainda enviam resíduos para lixões e 45,7% (1.132) disseram não contar com Plano de Gestão Integrada dos Resíduos Sólidos, mas a situação também atinge o Distrito Federal, que tem a maior renda per capita do país. Lá, todo o lixo produzido no plano-piloto e cidades-satélite vai para o lixão da Estrutural.

“O lixão da Estrutural tem 2.500 catadores trabalhando em três turnos e recebe diariamente cerca de três mil toneladas de resíduos domésticos e 8 mil toneladas da construção civil”, explica Ronei Alves Silva, da coordenação do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis. “Faltou interesse político. A gente poderia resumir isso em uma palavra: descaso. O lixo, novamente, foi jogado para debaixo do tapete.” A lei também previa a inclusão, nos sistemas de tratamento de resíduos dos catadores, responsáveis pela coleta e triagem da maior parte do que é de fato reciclado do país. Hoje, na maioria das cidades, eles são remunerados apenas pelo que conseguem vender, o que deveria evoluir para o pagamento do serviço prestado.

“É preciso enfrentar o desafio do fechamento dos lixões com todos os cuidados necessários para a inclusão dos catadores por meio das cooperativas ou frentes de trabalho, mas, simultaneamente ao fechamento, tem que ser estruturado um plano municipal para ir caminhando para outra forma de gestão de resíduos, outro paradigma. Não é só fechar. Esse não era o objetivo da lei”, destaca a coordenadora-executiva e de ambiente urbano do Instituto Pólis, Elisabeth Grimberg.

Quando foi sancionada, em 2010, toda a sociedade organizada que havia se envolvido no plano celebrou o fim de uma etapa que se desenrolava há 20 anos apenas dentro da Câmara dos Deputados e no Senado. Todos sabiam que era preciso fazer a lei valer, mas, de qualquer maneira, era uma etapa vencida: a da criação de um marco legal inovador, que compartilhava a responsabilidade entre governos, cidadãos e empresários para a destinação correta daquilo que se habituou chamar de lixo. Findo os prazos, a bola dividida ficou quicando na área e ninguém fez sua parte.

“Os recursos para a coleta seletiva deveriam ter vindo do setor empresarial, fabricantes, distribuidores, comerciantes, exportadores. Ou seja, o recurso para a coleta seletiva e a remuneração dos catadores, que os ajudaria a estruturar o segmento, não veio. Houve uma resistência do empresariado em assumir os custos disso”, diz Elisabeth. “Mas isso não impedia que os municípios fizessem a sua parte.”

Especialistas que acompanham a implementação da lei até concordam que a falta de capacidade técnica dos municípios, especialmente os menores, atrapalhou a elaboração de planos municipais que planejassem o fechamento dos lixões, a construção de aterros e a coleta seletiva que incluísse os catadores, apesar de acreditarem que nos editais havia espécies de “receitas de bolo” para que os planos pudessem ser feitos da maneira mais simples possível, mas não concordam com a alegação de que não havia condições financeiras. O governo federal, por meio do Ministério do Meio Ambiente, colocou à disposição R$ 1,2 bilhão para os municípios. No entanto, era preciso ter um plano para acessar à maior parte dos recursos. No final, apenas metade do valor foi usado.

“Se o município é pequeno e a renda é pequena, a produção de resíduos consequentemente também é pequena. Agora, se o município é grande, como é a capital do país, que gastou R$ 800 milhões no último ano para tirar resíduos da rua e jogar no lixão, não dá para dizer que não tem dinheiro”, pondera Ronei.

“Essa interpretação de que a lei é para acabar com os lixões é incorreta. Na verdade, o fim dos lixões já está decretado há mais de 30 anos pela Política Nacional de Meio Ambiente e é considerado crime desde 1998, pela lei de crimes ambientais”, argumenta Gabriela Otero, coordenadora técnica da Abrelpe. “Então, o foco dessa política não é o fim dos lixões. O foco é que se faça gestão integrada dos resíduos. E, quando se faz isso, você só tem rejeito, que é aquilo que não pode mais ser aproveitado e, aí sim, ele tem que ser disposto em aterro sanitário.”

O primeiro prazo para que os planos tivessem sido apresentados se encerrou em 2012. Na época, explica Gabriela, apenas 10% das cidades brasileiras apresentaram. De lá para cá, a situação não avançou muito. Os estados, que também poderiam ter assumido a elaboração de acordos setoriais e a elaboração de planos, se omitiram, mas Gabriela acredita que a baixa adesão das empresas foi um “banho de água fria” nas expectativas da sociedade civil organizada.

Contudo, como são os gestores da limpeza pública, os municípios devem sofrer as sanções previstas na lei, que chegam a responsabilização jurídica, aplicação de multas e processos contra prefeitos por improbidade administrativa.

Exatamente por temer essa perspectiva de sanções, os prefeitos tentaram pressionar a União e o Congresso para estender o prazo, mas não tiveram apoio do governo federal, que preferiu buscar diálogo com o Ministério Público para antecipar medidas punitivas com o estabelecimento de Termos de Ajustamento de Conduta.

Segundo o presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente, Sávio Renato Bittencourt Soares Silva, será criado um observatório de acompanhamento da lei cuja missão será verificar a veracidade dos dados fornecidos sobre a produção de resíduos. “Estamos muito preocupados com os dados contidos nesses acordos. Parte deles, não sabemos se é verdadeira, de onde saiu, se foi lançada por uma universidade, por alguém sério”, explica Silva.

Segundo Silva, a associação incentivará os promotores a instalar inquéritos civis públicos para verificar o cumprimento da legislação, inclusive se aquelas cidades que dizem ter fechado os lixões e construído aterros o fizeram de fato.

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