Outro lado

Judeus de São Paulo mobilizam grupo para questionar guerras entre Israel e Hamas

Jovens questionam narrativa sobre o conflito e cobram reflexão da comunidade judaica em São Paulo sobre crimes contra a humanidade em Gaza. Debate com apoiadores de Israel é passional e agressivo

Sandra Caselato

Yuri Haasz, contrário à guerra, discute com Rubem Duek, pró-Israel, durante protesto em São Paulo

São Paulo Um grupo de uma dezena de jovens judeus reuniu-se na manhã de hoje (6) em frente ao consulado de Israel em São Paulo para protestar contra a nova rodada de ataques militares do Estado israelense ao grupo Hamas e à população civil na faixa de Gaza, que dura cerca de um mês e deixou em torno de 1,8 mil vítimas. Com cartazes em português e inglês, o coletivo, que organizou seu primeiro ato público e ainda não tem nome, invoca a memória dos valores judaicos contrários ao assassinato e declara não ser representado pela historiografia oficial de Israel em relação ao que seria o direito exclusivo do povo judeu de viver na região onde se situa o Estado fundado em 1948 pela Organização das Nações Unidas. Para eles, Israel deve apoiar a criação do Estado palestino e garantir direitos em seu próprio território a pessoas de todas as etnias e religiões.

“Seguimos os passos de nossos pares no restante do mundo, que também se guiam pela defesa da dignidade humana e pela ética judaica para criticar esse sionismo de inclinação fascista que os governos de Israel implantaram ao longo dos anos, que não reflete todas as concepções de sionismo existentes. O Estado israelense diz falar por todos os judeus, inclusive os da diáspora [denominação para a comunidade judaica fora de Israel], mas isso não é verdade”, aponta Yuri Haasz, consultor organizacional de 42 anos nascido em Haifa, e que desde os 14 vive no Brasil. Referência dos jovens presentes ao ato, que têm em comum o envolvimento com organizações humanitárias pró-Palestina, Haasz acredita que o grupo ocupa espaço que estava em aberto no Brasil. “Que eu tenha notícia, somos a primeira iniciativa de judeus nesse sentido com um discurso tão duro”, pondera.

O pioneirismo não ocorre por acaso: apesar de irem pessoalmente à frente do consulado expor faixas e cartazes, alguns dos manifestantes preferiram não mostrar o rosto em fotos e não identificar-se à imprensa. “A reação da comunidade é muito forte, sempre. Sabemos que somos minoria, embora tenhamos convicção em nossas posições. Mas existem casos em que as pessoas até cortam relações”, conta um deles. Haasz, que passou pelo sistema educacional israelense, explica que as escolas de lá reafirmam a propaganda do governo a favor da política para os palestinos e ignoram o contraditório. “São ‘slogans’, ‘drops’ de cânones inquestionáveis que se repetem na imprensa, nas escolas, nas comunidades, tanto lá como aqui. Cresci com muito medo dos palestinos. No Brasil, quando busquei especialização acadêmica sobre Israel, tive contato com outras versões que desmontam as justificativas oficiais para a guerra”, aponta.

Durante o protesto, em duas ocasiões, a luta entre “slogans” e a detalhada desconstrução do discurso “sionista” foi reencenada duas vezes. Na primeira, Rubem Daniel Duek, representante da comunidade judaica de Alphaville, desviou seu caminho do consulado para discutir com os manifestantes. “Onde estão os cartazes contra os foguetes do Hamas?”, questionou, antes de citar tópicos recorrentes nas discussões entre judeus a favor das ações militares contra o Hamas, como os supostos planos do grupo para assassinar 10 mil judeus nos dois dias de Rosh Hashanah (feriado de ano novo judeu) e os episódios de violência de muçulmanos contra judeus e cristãos onde, segundo Duek, há planos para instalar califados, como Síria e Iraque. “Eles só querem aparecer. Se o Hamas se desarmar, o cerco acaba”, pontuou. Cerca de 20 minutos mais tarde, um cidadão israelense que não quis se identificar à imprensa repetiu o roteiro, com praticamente as mesmas citações.

“Muitas vezes, não há diálogo, só discurso. Eles repetem com muita rapidez os argumentos do governo israelense, que já estão cristalizados na memória, mas não estão dispostos a escutar todos os nossos argumentos. Desse ponto de vista, o protesto não ajuda a avançar, mas é como dizem: se incomodamos, estamos fazendo algo de certo”, avalia Haasz. Ele conta ainda que, se em São Paulo a recepção aos questionamentos a Israel pode chegar a ser agressiva, a situação não se iguala à vivida em Israel. “Lá, nossos colegas apanham na rua quando realizam protestos”, comenta. O momento de maior impacto foi a leitura coletiva e em voz alta dos nomes e idades das vítimas israelenses e palestinas do conflito na terça-feira (5). Passantes da região, ligação entre a Marginal Pinheiros e a avenida Berrini, próxima a diversos restaurantes e pontos de transporte público, pararam para tirar fotos e ler as faixas.

“Achei curioso o protesto aqui, resolvi tirar uma foto para compartilhar no Facebook. Não sei muito sobre o conflito, mas parece que é bastante desproporcional”, diz Thiago Afonso, 34, comprador. “Saio cedo de casa, então acompanho pouco, mas sou contra todas as guerras. É um absurdo, são muitas mortes”, completa Liliane Cristina, manicure de 30 anos. Embora unânime em condenar a guerra e até usar os mesmos termos da diplomacia brasileira para criticar o conflito, o público ouvido pela RBA durante as duas horas de protesto se dividiu sobre a atitude do governo federal, que emitiu nota condenando a ofensiva do exército israelense e convocou de volta seu embaixador para consultas: há defensores para a tomada de posição, mas, para outros, o Brasil “não tem nada a ver com o que acontece lá”, como disse o autônomo Paulo Ribeiro, de 30 anos.

Já a Relações Públicas Ana Laura Siervo, de 23 anos, lamentou a quantidade de crianças na lista de vítimas fatais da guerra. “É duro ouvir os nomes, as idades, e ver a quantidade de crianças, né? E, infelizmente, parece estar longe de acabar. Alguém precisa intervir, e acho que a gente tem de se envolver cada vez mais. Podemos ser incapazes de mudar a realidade, mas vale inspirar a discussão”, disse, em apoio ao protesto. Ela também é favorável à posição da diplomacia brasileira: “Concordei, sim, porque acho que temos sempre de tomar posição pela paz”, resumiu.

Em entrevista por telefone à RBA, o cônsul de Israel em São Paulo defendeu a realização do protesto. “O Brasil é um país democrático, como Israel, onde as pessoas têm o direito de manifestar seu ponto de vista. Mas a maioria de manifestações que recebemos da comunidade é de apoio a Israel e do seu direito de se defender das agressões do Hamas”, pontuou. Confira aquia íntegra da entrevista.