Cidade do Futuro

Urbanista quer classe média em cena, mas não a que ‘olha só para o próprio umbigo’

Ermínia Maricato analisa processo de mobilização fragmentada em torno da aprovação do Plano Diretor, papel do MTST na atualidade e do 'casamento entre capitais' que submetem a cidade ao caos

Movimentos sociais, liderados pelo MTST comemoraram, em frente à Câmara Municipal, a aprovação  <span>(ernesto rodrigues/folhapress)</span>'MTST não centra apenas no PDE. Mostra que o boom imobiliário agrava a questão da moradia', afirma Maricato <span>(Dário Oliveira/Código19/Folhapress)</span>

São Paulo – A mobilização em torno da aprovação do Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade de São Paulo, ocorrida na segunda-feira (30), sem dúvida, aumenta a expectativa em relação à aplicação da legislação. O PDE é um conjunto de ferramentas, diretrizes e orientações para o desenvolvimento de uma cidade e, na capital paulista, estará em vigor durante os próximos 16 anos. Se cumprido, espera-se que, em 2030, São Paulo seja uma cidade mais compacta, mais voltada à mobilidade por meio do transporte público e menos segregada entre ricos e pobres.

A vitória obtida pelos movimentos sociais que participaram da formatação da lei e fizeram pressão fundamental para a aprovação na Câmara Municipal é encarada como grandiosa pelos movimentos. No entanto, a urbanista e professora da Universidade de São Paulo Ermínia Maricato ainda vê limites nessa conquista. Para ela, é preciso que haja atenção para questões mais amplas em contraponto aos interesses pontuais.

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“Os avanços que a gente conseguiu no Plano Diretor foram graças à mobilização popular. A gente sabe do peso do capital imobiliário na cidade de São Paulo. Se não fosse o povo organizado, a grande vitória que tivemos não seria alcançada. Pra nós, apesar de o Plano Diretor não ser o melhor dos mundos, o consideramos uma vitória”, afirmou o coordenador estadual do MTST, Josué Rocha.

Ermínia já foi secretária de Governo durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1992) na capital paulista, e trabalhou na criação do Ministério da Cidade, além de ocupar o cargo de relatora especial da Organização das Nações Unidades para Moradia Adequada. Autora de diversos livros, insiste em denunciar que quem planeja a cidade não são as leis, mas o capital.

Na entrevista a seguir, com alguns trechos já publicados na reportagem “Participação social deve colaborar para que Plano Diretor de SP saia do papel”, Ermínia enfatiza a importância da entrada em cena de setores da classe média, não “a estúpida, conservadora, que só olha para o próprio umbigo”, mas outras, mais esclarecidas, especialmente aquelas que adquirem conhecimento por meio do investimento do Estado nas universidades públicas para tentar resgatar as cidades da “coligação entre o capital de construção, o imobiliário e de financiamento de campanha”.

Muitos movimentos se mobilizaram para que o texto do relator, o vereador Nabil Bonduki (PT), fosse aprovado sem modificações. Eles diziam que aquele era o plano construído por eles e em benefício deles. Isso dá mais força para que a lei saia do papel e passe a governar a cidade, em vez da força do capital?

De um lado. você tem os empreiteiros de obras públicas, o Secovi e outros, como o filho do presidente da Fiesp, que queria o aeroporto em Parelheiros. São interesses pontuais. Por outro lado, parte dos movimentos que estão se mexendo também tem interesses pontuais. Outros interesses são mais amplos, como aqueles que dizem que é preciso ter maior número de Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) e a previsão da função social da sociedade, mas boa parte dessa mobilização não se faz porque ‘ai, eu quero uma cidade melhor’. Se faz por conta de interesses localizados. Acho isso normal. Seria incrível que tivéssemos uma sociedade em torno de interesse difuso. Ainda mais a nossa, tão desigual, de baixa escolaridade, com uma mídia tão dominada como é a nossa.

Sem dúvida nenhuma, o fato de ter pessoas acompanhando o plano dá mais importância a ele. Dá mais chance de se tornar efetivo. Mas as questões mais gerais, que poderiam contrariar setores dominantes, aí eu já acho que nada garante. Por exemplo, há um interesse localizado em relação àquele terreno em Itaquera, a Copa do Povo, que é pontual de um lado e do outro. Mas eu estou falando de coisas mais gerais. Estou falando de defesa de predominância do transporte público. Da preservação absoluta das áreas de proteção dos mananciais ao sul, que são coisas gerais na cidade.

A sra. considera o PDE um bom plano?

O plano de 2002 também era bom, mas nós temos mais de um doutorado mostrando que ele foi contrariado pelas operações urbanas com legislações específicas e pela política de transporte. O que quero dizer é que o plano pode ser bom e esse que está aí tem uma tese geral que é muito boa – o adensamento nas bordas dos corredores de mobilidade –, mas, o que de fato vai ser implementado…

Sinto muito a falta dos arquitetos, engenheiros, economistas e advogados se interessarem mais pela questão fundiária, imobiliária e urbanística porque isso poderia se tornar um braço de força para fazer valer a lei.

O fato é que nós temos uma super fragmentação na sociedade. Essa mobilização é boa? É. Mas ela garante que as linhas gerais da lei que garantem o direito público e social vão ser aplicadas? Não. Acho que precisaria ser uma coisa mais forte. Acho que os setores populares têm que estar mobilizados, mas precisamos ter os setores de classe média. Não essa classe média estúpida, conservadora, que só olha para o próprio umbigo, que é a maior parte aqui. Uma classe média esclarecida.

Parece que esses setores da classe média se aproximaram muito da questão da mobilidade, com o cicloativismo e a luta pela tarifa. Mas em relação à moradia e à terra, ainda parecem distantes…

O problema da mobilidade atingiu a classe média. Por isso, ela se aproximou. Mas mesmo assim, quem se aproximou da questão das ciclovias é um setor da classe média que viaja, conhece alguns países da Europa. Parte dessa classe média está pedindo horta urbana também.

Sem dúvida, a classe média é importante. Eu sinto muito a falta. Você não vê as universidades se mexerem, principalmente as públicas, financiadas com orçamentos públicos. Elas deveriam estar aí, deveriam estar preocupadas com essa questão dos mananciais. Estamos em uma super crise de água e você não vê o setor que tem um conhecimento financiado publicamente se envolver. É preciso ter retorno para a sociedade desse investimento feito nas universidades. Um retorno que é ajudar a pensar, ajudar a bater, a equilibrar esse massacre que nós vivemos hoje, que é a desinformação, que eu chamo de analfabetismo urbanístico.

Os grupos ligados à União Nacional de Moradia, à Central de Movimentos Populares e à Frente de Lutas por Moradia participaram intensamente do debate. O diferencial do MTST foi a presença nas ruas. A sra. entende a participação deles como uma renovação?

Não tenho a menor dúvida que o MTST é uma oxigenação, que vem junto com as jornadas de junho. Essas jornadas foram uma grande renovação nas manifestações e movimentos no Brasil. Os movimentos mais tradicionais foram engolidos pelas institucionalidades. Isso fica muito evidente. A vocação do Estado brasileiro é a cooptação, não precisa nem de uma força muito grande de um governo para isso. Nunca fomos tão participativos e isso não mudou a nossa questão urbana. Ao contrário, as cidades pioraram no contexto participativo. O que houve é que os movimentos tradicionais, históricos, perderam a capacidade ofensiva.

O MTST traz de volta as origens da questão da reforma urbana. Nesse sentido, o ganho que ele traz não é só a aprovação do Plano Diretor. O PDE é uma ferramenta evidentemente indispensável – e ter a lei contra torna tudo mais difícil –, mas não é suficiente. E o MTST não centra apenas no plano. Mostra que o boom imobiliário agrava a questão da moradia e do planejamento urbano. Nossas cidades ficaram realmente entregues ao que é uma coligação entre o capital de construção, o imobiliário e de financiamento de campanha. Você tem uma articulação de interesses que está dominando as cidades. Incluindo o automobilístico. Nossas cidades viraram apenas um capitalismo selvagem. É lucro, é negócio. Dá emprego? Dá. Tem esse lado importante. Vivemos uma condição de pleno emprego que é importante.

Mas se desenvolvesse a periferia, por exemplo, esses setores não poderiam ganhar dinheiro também?

Poderiam. Mas nem tanto. Essa incrível valorização imobiliária que acompanhamos desde o lançamento do Minha Casa, Minha Vida é decorrente de algumas condições. Eles não teriam as mesmas taxas de lucro se construíssem na periferia. O capital de construção está atrelado ao imobiliário. Porque há uma ligação com a valorização do metro quadrado. São dois capitais que andam juntos, o imobiliário e a construção de infraestrutura.

E é importante a gente pensar que essa valorização é que afasta as pessoas de menor renda. O grande desafio no Brasil é como ter um crescimento urbano sem segregação. Isso exige controle da valorização. A valorização segrega. Não tem jeito. O mix de renda é uma das coisas mais importantes para conter essa valorização e segregação. Porque elas andam juntas. A democracia é uma coisa interessante. Porque o acesso ao direito à cidade segura preço. A solução seria você ter a função social da terra. Nós temos instrumentos para fazer isso. Está tudo em leis, mas nunca conseguimos aplicar a função social.

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