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Passe Livre tentará barrar na Justiça inquérito contra manifestantes em São Paulo

Movimento que encabeçou jornadas de junho denuncia ilegalidades em investigações conduzidas pela Polícia Civil: 'procedimento está mapeando politicamente cidadãos'

Alexandre Moreira/Brazil Photo Press/Folhapress

Depredação de carro da polícia foi uma das justificativas para instauração de inquérito

São Paulo – O Movimento Passe Livre (MPL) apresentará na segunda-feira (9) à justiça um habeas corpus pedindo a suspensão imediata e o arquivamento da investigação levada a cabo pela Polícia Civil de São Paulo contra manifestantes que vêm participando de protestos públicos na cidade desde o ano passado. “Queremos que o Judiciário encerre as arbitrariedades desse inquérito”, explicou Alexandre Pacheco, um dos advogados que assina a petição. “Caso contrário, entenderemos que os tribunais estão sendo cúmplices dos desmandos do governo estadual.”

Conhecido como Inquérito 01/2013, o procedimento passou a ser conduzido pelo Departamento de Investigações Criminais (Deic) em 9 de outubro do ano passado, um dia depois que o secretário estadual de Segurança Pública, Fernando Grella, e o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Márcio Elias Rosa, anunciaram uma força-tarefa para coibir crimes cometidos por adeptos da tática black bloc. No dia anterior, os jovens que compareceram às manifestações vestidos de preto e com o rosto coberto haviam virado uma viatura da polícia de ponta-cabeça no centro da cidade.

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Desde então, manifestantes – entusiastas ou não da tática europeia, com e sem passagem pelas delegacias – têm sido intimados a depor nas unidades do Deic. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, 205 já foram ouvidos. Como as investigações correm sob sigilo, porém, não há números oficiais sobre quantas pessoas estão na mira das autoridades. “Eu diria que são cerca de 300, mas essa informação não consta do inquérito”, arrisca Pacheco, comentando a magnitude da investigação. “Eu já tive acesso a 14 volumes. Neste momento, a polícia está pedindo para prorrogar os prazos.”

Ilegalidades

Os advogados do Passe Livre querem que o Inquérito 01/2013 seja arquivado porque enxergam nele uma série de ilegalidades. A Secretaria de Segurança Pública nega. “Os procedimentos seguem os princípios da legalidade”, atesta, em nota. “É preciso lembrar que a investigação não tem como alvo manifestantes, mas grupos de baderneiros que se associam para praticar crimes durante manifestações.”

A defesa dos manifestantes, porém, aponta que a primeira e mais grave irregularidade na atuação policial é a deturpação da natureza do inquérito. No habeas corpus, lembram que as investigações criminais servem para apurar “existência de infração penal e a respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem a promovê-la.”

A conduta criminosa investigada pelo Deic, na maioria dos casos incluídos no Inquérito 01/2013, é a de associação criminosa, definida pelo artigo 288 do Código Penal. No texto, o delito é tipificado da seguinte maneira: “Associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes.”

“Se você investiga uma suposta associação criminosa que é composta por manifestantes, você está considerando a manifestação como uma ação criminosa. Porém, trata-se de um direito fundamental garantido pela Constituição”, defende Pacheco. “É evidente que as pessoas vão para as ruas se manifestar. Não para cometer crimes. O ‘fim específico’ é o protesto. Se crimes são cometidos, como janelas e vidraças quebradas, as responsabilidades devem ser individualizadas. As pessoas que estavam no mesmo protesto não têm nada a ver com isso.”

Outro ponto questionado pelos advogados do MPL é o desvio de finalidade do inquérito. “Esse inquérito está destinado a identificar apenas pessoas e não crimes, como deveria ser”, afirma Pacheco, explicando que, durante os depoimentos, os policiais questionam os manifestantes sobre preferências políticas, filiação partidária e ligação com os black blocs. Também perguntam sobre a roupa com que as pessoas vão aos protestos. “A polícia tem pedido, ainda, a senha das redes sociais das pessoas, como Facebook, Orkut e Twitter. É um interrogatório.”

Mapeamento

Muitos manifestantes presos durante as passeatas realizadas em São Paulo desde junho do ano passado têm recebido intimações do Deic, mas a polícia também tem convocado pessoas que jamais foram detidas, como é o caso da mãe de um militante do Movimento Passe Livre e o pai de outro. Até mesmo um dos advogados do MPL, Rodolfo Valente, recebeu intimações. “Gente que trabalha na organização de manifestações e que deu declaração na imprensa passou a ser intimada”, complementa o advogado.

“Isso mostra que o inquérito, ao invés de investigar crimes, está investigando pessoas e servindo para tabular e mapear manifestantes”, conclui Pacheco. “Não temos certeza do uso que será feito dessas informações, mas a perspectiva não pode ser boa. Nada pode ser bom quando o Estado começa a mapear cidadãos que questionam a ordem vigente. Isso extravasa o plano jurídico e vai para a esfera política.”

Em entrevista à Agência Reuters publicada na última quinta-feira (29), o secretário de Segurança Pública de São Paulo admitiu que “trabalhos de inteligência” da polícia deverão oferecer subsídios para que o Ministério Público peça a prisão preventiva de manifestantes antes do início da Copa do Mundo. De acordo com Grella, as autoridades estão “usando escutas telefônicas e outros mecanismos de vigilância para evitar confrontos que prejudiquem o torneio”, marcado para começar em São Paulo na próxima quinta-feira (12).

‘Até o fim’

Os militantes do Passe Live estão confiantes de que conseguirão barrar o Inquérito 01/2013 na justiça. Porém, se dizem cientes das dificuldades. A primeira batalha se dará no Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária (Dipocor). “Se perdermos, faremos outro habeas corpus ao Tribunal de Justiça de São Paulo. E, se for preciso, iremos ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal”, adianta Nina Capello, militante do MPL. “Vamos até o final.”

Há pelo menos doze pessoas ligadas ao MPL incluídas no inquérito. Outras organizações, como a Fanfarra do Movimento Autônomo Libertário (MAL) e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), também tiveram membros intimados pelo Deic. Revoltados com os “absurdos” da investigação, alguns se recusaram a comparecer à delegacia. “É uma ação de resistência à criminalização do protesto e um ato questionador: não vamos legitimar um inquérito ilegal”, explica Nina.

A recusa contínua de alguns militantes do Passe Livre fez com que a Polícia Civil desse início a uma série de conduções coercitivas, buscando jovens nas casas para levá-los à força à delegacia. “Por sorte, não encontraram ninguém”, comenta a militante, para quem a pressão fez com que alguns membros do MPL aceitassem comparecer à delegacia, porém sem responder às perguntas do delegado. “Teve um caso em que a polícia ficou mais de uma hora conversando com os pais de um militante. Teve outro que a polícia ficou na frente da casa dele por quatro horas.”

O cerco policial fez com que quatro membros do Passe Livre se acorrentassem na porta da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo na última sexta-feira (30) para pedir o fim do Inquérito 01/2013 e a interrupção imediata das conduções coercitivas. Cerca de oitenta manifestantes bateram tambores e impediram o trânsito na rua Líbero Badaró, no centro, onde fica o edifício. Eles protocolaram uma carta ao secretário Fernando Grella, mas ainda não obtiveram resposta nem foram recebidos por ele.

De acordo com Nina, o habeas corpus apresentado é mais um passo na tentativa de denunciar o que consideram arbitrariedades policiais contra os manifestantes. “Queremos expor todas essas contradições”, diz. “A criminalização não se dá apenas com as prisões durante o protesto. Essas intimações, a polícia na casa das pessoas, ameaças e o inquérito também são resultado da criminalização. Queremos ver se todos os tribunais vão, de fato, legitimar esses procedimentos.”