A Copa na Rua

Sem ‘fetiche pela rua’, Comitê Popular tenta alertar população sobre a Copa que já foi

Articulados com movimentos sociais 'abaixo e à esquerda', Comitê vê evento como indicativo do modelo de desenvolvimento adotado pelo país e aponta contradições

Comitê Popular da Copa/Divulgação

Comitês estão articulados em todas as cidades-sede do evento. Em São Paulo, reuniões ocorrem dentro de ocupações

São Paulo – O grupo que há mais tempo se mobiliza politicamente em torno da realização da Copa do Mundo de futebol, que será realizada em 12 cidades brasileiras a partir de amanhã, não tem dúvida: o torneio, na verdade, já ocorreu. Pelo menos para as famílias dos trabalhadores mortos nas obras dos estádios, para as famílias removidas em função das obras de mobilidade urbana e para pessoas em situação de rua expulsas dos trajetos que, pelo próximo mês, pertencerão a turistas estrangeiros e delegações de atletas. Os Comitês Populares da Copa estão presentes em todas as cidades-sede da Copa e atuam desde 2011 com o nome, que faz referência aos Comitês Locais de Organização, órgãos oficiais de realização do evento esportivo. Seu objetivo, explicam, é problematizar o que significa para um país ou uma cidade sediar a Copa do Mundo.

A RBA oferece ao leitor uma perspectiva diferente sobre o Mundial de futebol: a série “A Copa na Rua” traçará diariamente o perfil dos movimentos sociais mais atuantes neste período, de forma a expor suas origens, objetivos estratégicos e ideologia, com ou sem Copa do Mundo.

“A partir do momento que o nome do Brasil foi escolhido pela corporação Fifa, que está sob várias denúncias, que é uma máfia, já estava tendo Copa. É isso que a gente entende. Nossa linha não é de ‘não vai ter Copa’ porque a gente não é ingênuo. Os jogos começam dia 12, mas a Copa já está existindo há muito tempo. A gente entende que quando sai o nome de um país para sediar um megaevento como esse, isso já indica o tipo de desenvolvimento que esse país está seguindo: na nossa avaliação, o caminho da exclusão, que beneficia a poucos e exclui sua maioria”, afirma Vanessa dos Santos, que participa do Comitê de São Paulo há três anos. Ela e Matheus Marestoni fazem parte do grupo de trabalho responsável por conversar com jornalistas.

O Comitê Popular é formado por integrantes de origens e formatos bastante heterogêneo: organizações não governamentais (ONGs), sindicatos, movimentos sociais e coletivos de militantes, cooperativas, associações de amigos de bairro, diretórios estudantis e pastorais da Igreja Católica, entre outros, em um total de 50 entidades apenas em São Paulo. A palavra de ordem que unifica as vozes diversas dos comitês populares nas cidades-sede da Copa reafirma o foco do grupo na defesa dos direitos dos excluídos prejudicados pela realização do evento. “Copa para quem?”, perguntam em hashtags pelas redes sociais e nos cartazes que levam aos atos públicos. O Comitê Popular é também um dos organizadores da “série” de protestos “Copa sem povo, tô na rua de novo”, que soma ao coletivo o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e o Movimento Passe Livre (MPL), entre outros.

Atos dessa natureza, no entanto, são exceção. Apesar da reconhecida importância do trabalho dos Comitês Populares, é comum que movimentos com uma linha de ação mais radicalizada os chamem de “pelegos” por conta da opção do Comitê Popular de não recorrer continuamente às manifestações públicas como principal forma de militância. Segundo seus porta-vozes, trata-se de uma decisão política que reflete a não “fetichização” dos atos. “A gente não tem esse fetiche. De uma rua para outra a gente tem uma série de atividades para poder construir, fortalecer os movimentos. Nós não somos um grupo que está dentro de uma universidade, no qual cinco pessoas dentro de uma sala de aula decidem o que vai ser a pauta. Nossas pautas foram construídas há um bom tempo”, afirma Vanessa. “Estar na rua é saber o que está acontecendo com as mulheres em situação de prostituição na Luz, no centro de São Paulo; é saber o que está acontecendo com as pessoas em situação de rua; saber como anda a questão da moradia.”

Essa forma de construir os atos marca a principal diferença do Comitê Popular em relação ao Território Livre, grupo que defende a palavra de ordem “Não Vai ter Copa”. Para o Comitê, a construção do “poder popular”, objetivo declarado pelo TL, tem outras etapas além da “rua”. “O discurso do Território é que cancelar a Copa demonstraria uma vitória do poder popular. Significa que, se o jogo acontecer, dane-se o poder popular, dane-se as violações? É tudo ou nada? Para nós, não é tudo ou nada. São vidas de pessoas que estão sofrendo diretamente com isso”, explica Matheus. “No nosso entendimento, o poder popular não se constrói somente em atos de rua. Se constrói com articulações e o fortalecimento dos movimentos que já existem. Não se pode falar de poder popular sem autonomia, autogestão. Isso está intrínseco: autonomia, autogestão e ação direta. Ação direta significa que as pessoas que estão tangenciadas têm de construir seu movimento e dizer o que precisam.”

Exemplo das ações “além-rua” dos comitês populares foram os dossiês publicados pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop), que reúne as lideranças locais para alinhar o discurso e programar as atividades nacionais do coletivo. Os materiais reúnem as violações a direitos básicos de cidadãos, especialmente os mais pobres, nas cidades que receberão jogos, e podem ser acessados na página da Ancop. O tom da crítica não se restringe à Copa, mas inclui dados sobre a exclusão social antes e depois da realização do evento. Os documentos, formulados a partir de dados fornecidos pelos próprios atingidos, embasou a luta de diversos grupos que se puseram na rua mais tarde, especialmente depois de junho do ano passado.

“A gente entende que a Copa não criou esses processos de gentrificação, de violação. Mas os acelerou. Então ter ou não ter o Mundial não é a grande questão. A grande questão começa a partir do momento que as cidades estão sendo tomadas por grandes corporações. A gente pergunta ‘Copa para quem’ porque estamos em cima do evento, mas, se a gente radicalizar o significado, o que a gente está perguntando é: ‘a cidade é para quem?’. Enquanto segue ocorrendo higienização social, o jogo é o de menos”, afirma Matheus.

O foco na ocupação da cidade é reflexo da gênese dos comitês populares, pautados principalmente pela questão da moradia antes da formação do “mosaico” de movimentos que deram corpo ao coletivo. “A moradia é a coisa concreta para quem perdeu a casa, vai para a ocupação e o movimento de moradia tem histórico de ocupar a rua. Mas temos coletivos feministas, a questão do trabalho ambulante, que é muito forte. A população em situação de rua, a elitização do futebol, a militarização do Estado”, explica Vanessa. “Para nós, é muito importante essa construção junto aos movimentos sociais, porque muitos grupos e coletivos da esquerda falam sem conhecer a realidade das pessoas. Nossa ideia é potencializar as lutas que já existem”, afirma Matheus. “A gente não é porta-voz de ninguém”, completa Vanessa.

As reuniões organizativas são organizadas sempre em ocupações de sem-teto, uma forma de evitar “aparelhamentos políticos” e manter o caráter de “articulação e união”. Atualmente, participam dessas reuniões um núcleo duro, formado por cerca de 30 representantes dos diversos movimentos. A decisão de restringir os encontros, antes abertos a mais pessoas, é apontada como uma questão de segurança. O temor é que policiais, por exemplo, se infiltrem e que a promessa do secretário da Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella, de prender preventivamente ativistas organizando-se para o período da Copa do Mundo se concretize. Eles acreditam já ter seus celulares grampeados e suas conversas pela internet vigiadas. Por isso, até a troca de e-mails entre eles foi repensada. “Cinquenta anos depois da ditadura, somos premiados com essa situação”, lamenta Vanessa.

O grupo se sente perseguido e criminalizado, mesmo sem adotar táticas violentas, como os black blocs. Para eles, o crescimento do uso da tática anarquista é demonstração legítima de revolta, mas não pode ser atribuído a isso o endurecimento do Estado em relação às manifestações. “A militarização já estava prevista como legado da Copa. São R$ 2 bilhões destinados para isso, sendo R$ 54 milhões só para artefatos, essas ‘bombinhas’ que custam quase mil reais cada uma e que são jogadas aos montes. Independente do que aconteceu em junho do ano passado, do que vem acontecendo agora. Essas armaduras para a Polícia Militar, agentes brasileiros sendo treinados por Israel, já estava tudo previsto. Foi uma decisão política”, pondera Matheus.

“A gente não usa essa tática porque quando vamos para rua, para um ato, a gente tem um roteiro que tem começo, meio, e que deseja ter um fim. Temos coisas a fazer. E essas coisas não são quebrar banco, apesar do banco quebrar pessoas todos os dias; não é quebrar a Zara, a Marisa, que usam de trabalho escravo. A gente quer questionar e comunicar a população de outra maneira”, avalia Vanessa.

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