Inclusão

Luciana Temer: ‘Não há falta de atenção para a população em situação de rua’

Em entrevista à RBA, a secretária de Assistência Social da cidade de São Paulo responde às criticas de que foco no De Braços Abertos teria monopolizado esforços da prefeitura

Luisa Santosa/RBA

Para secretária, Braços Abertos é filho mais novo, o que justifica prioridade, mas não representa abandono

São Paulo – Embora o programa De Braços Abertos, uma das principais ações da gestão de Fernando Haddad (PT) à frente da prefeitura de São Paulo, acumule resultados positivos desde o lançamento em janeiro, a Secretaria de Assistência Social segue como alvo de críticas por parte dos usuários dos serviços de acolhimento à pessoas em situação de rua, militantes e entidades ligadas ao tema. A acusação é de que o programa voltado a dependentes de crack que vivem no bairro da Luz, a chamada cracolândia, ganha toda a atenção da secretária Luciana Temer, deixando à margem os demais moradores de rua.

Os problemas na rede de acolhida provocaram uma série de motins, cujo ápice foi no final de dezembro, com uma manifestação em frente à Estação Vivência, na Armênia. Quatro usuários do serviço chegaram a ser presos. Recentemente, uma entidade descredenciada em função de denúncias graves envolvendo crianças e adolescentes provocou quebra-quebra na sede do Conselho Municipal de Assistência Social (Comas), no centro, e chegou a gerar ameaças contra conselheiros. As entidades afirmam que, com baixas remunerações, nem a organização mais voluntariosa poderia prestar bom atendimento.

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As respostas de Luciana podem ser lidas na entrevista abaixo, concedida à Rede Brasil Atual com exclusividade. A secretária admite problemas, mas afirma que a população de rua não está abandonada: de acordo com ela, 960 vagas em repúblicas para moradores de rua devem ser inauguradas no começo de agosto, e o modelo de acolhimento deve ser ampliado.

Muitas pessoas que acompanham as ações da Assistência Social criticam a pasta por estar totalmente voltada para o De Braços Abertos, programa destinado a usuários de crack que vivem na região da Luz, em detrimento do restante da população de rua, que estaria abandonada. Como a senhora responde a isso?

A população em situação de rua sempre foi muito importante, desde que a gente entrou. Primeiro porque é um público extremamento vulnerável. Depois, porque havia uma relação muito ruim da gestão anterior com essa questão, que era aquela relação da GCM que os tratava de maneira muito truculenta. Logicamente, a gente entrou com um cuidado e um olhar muito especial para essa população, e verificamos que existe a necessidade imensa de construção de soluções diversas. Começamos a construir a ideia de centro de acolhimento para famílias. Conseguimos abrir um até agora. Ele está acolhendo 60 pessoas, o Família em Foco. O lar de Nazaré já era antigo na cidade, mas agora a gente está abrindo mais.

Até final de julho, começo de agosto, a gente vai ter mais 960 vagas para população em situação de rua abertas na cidade. Estão sendo construídas com perfis diferentes e propostas diferentes. Uma parte mulheres e crianças, uma parte família, uma parte homens. Tentamos atender essa diversidade da cidade. Além dessas 960 vagas, nós vamos começar a alugar hotéis para instalar repúblicas. Mas quero fazer uma diferenciação do De Braços Abertos, é outra proposta. Vamos tentar construir autonomia. Temos um número enorme de acolhidos hoje e a gente sabe que uma parte deles trabalha, formal ou informalmente. Então precisamos construir essa autonomia, dar um passo adiante. Também existe uma acomodação na rede, porque você não paga aluguel, come.

Qual a diferença entre a república e o centro de acolhida?

Na República, as pessoas participam da gestão do espaço, compram a própria comida e cozinham. Já existem algumas na cidade. Mas a gente quer aumentar esse modelo. Nele, nós ainda damos sustentação pública, acompanhada por uma entidade conveniada. Então, apesar de ter participação na administração, nas contas, tem um acompanhamento da Assistência Social. É exatamente a transição para sair de uma tutela absoluta. Nos acolhimentos, o sujeito não abre a geladeira porque, logicamente, todo o sistema é outro. As repúblicas são um lugar em que ele passa a ter autonomia. Entra e sai a hora que quer, sem aquele controle que há nos acolhimentos. Achamos que é um modelo interessante para começar a tirar dos acolhimentos pessoas que já estão fazendo Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), que já estão empregados de alguma forma. A ideia dessas repúblicas é pegar pessoas estruturadas. Isso é uma ideia que estamos construindo para além das 940 vagas. Com isso estou te dizendo que não há uma falta de olhar, falta de andamento ou de atenção às questões relacionadas à população em situação de rua.

Mas há uma extrema dedicação ao De Braços Abertos.

Sim. Porque é o filho novo. É uma experiência muito nova, que está repercutindo no Brasil inteiro e até internacionalmente. Então estamos tendo um cuidado muito grande porque o que está acontecendo lá é, na verdade, uma mudança de paradigmas muito grande na questão do enfrentamento da questão da drogadicção.

Muitas pessoas deixaram o programa, 158 segundo o último balanço. Vocês já sabem para onde elas foram?

Foram três etapas de cadastramento. A primeira, a das barracas; a segunda, de gente que estava no fluxo e tinha interesse em entrar; e a terceira, também foi uma oferta para o fluxo, mas orientada por uma observação da GCM que indicou quem eram as pessoas mais frequentes. A gente percebe que muita gente que entrou no programa na primeira etapa acabou abandonando o programa, meio sem aviso. Tem uma parte desse grupo que, de fato, a gente não sabe o que aconteceu. Eles simplesmente sumiram da região. A gente não sabe por qual motivo, mas não é um grupo muito grande. Nós temos 16 encaminhamentos para famílias. Elas estavam no programa e nós fizemos vínculos com as famílias, que os foram buscar. Talvez agora seja o momento de a gente olhar mais e começar a fazer uma avaliação de quem deve continuar, quem não deve continuar. E o requisito não é simplesmente trabalhar ou não. Porque desde o começo a gente tem insistido que é um processo, que a gente entende que é difícil e lento para as pessoas. Mas a gente quer que elas estejam vinculadas a nossa proposta.

Pessoas que conhecem bem a cracolândia me disseram que a maioria dos que permanecem no programa não eram usuárias crônicas de crack. Isso é verdade?

O programa De Braços Abertos não é um programa para o crack. É um programa de enfrentamento da drogadicção. O Brasil tem um problema sério com o crack, mas, se você for olhar, o problema com alcoolismo é muito mais sério. No caso da região da Luz, que era chamada de cracolândia justamente porque a característica principal era o crack, o que a gente tem tentado demostrar é que é possível agir sem ter como foco principal a questão policial e da internação. É um programa em construção. Vou te dizer algumas evoluções do programa: A gente inseriu os hotéis no sistema de Assistência Social como se fossem acolhimentos, e não são. Mas hoje a gente tem informação diária de quem ficou e quem não ficou no hotel, para a gente ter o controle mais fino de todas as situações.

A gente tem um grupo de vinte e poucas pessoas que estão na jardinagem e que está muito animado. Nós temos um plano para eles: a formação de cooperativas. Então existe uma sequência programada. Quem está na varrição, por exemplo, está ainda no primeiro passo. Temos um grupo de cinco, seis pessoas fazendo o Pronatec. Encaminhei agora para a Cyrella nove pessoas que entraram em cursos da empresa de pintura, carpintaria, azulejista e construção civil da empresa com a promessa de que, se forem bem, podem ser contratadas.

Mas elas são usuárias cronicas de crack ou de alguma outra droga?

Acho que você está falando de um grupo que é da primeira leva. Porque a segunda e a terceira já têm outra característica, foram tiradas diretamente do fluxo. A primeira leva tinha a questão de ‘vamos organizar o espaço público’.

No começo do ano, a RBA fez uma matéria em que funcionários relatavam motins em centros de acolhimento e o temor de que isso pudesse se intensificar ainda mais em função da revolta dos usuários do serviço com sua qualidade…

A gente percebeu um movimento orquestrado no começo do ano.

Orquestrada por quem?

Havia um grupo de servidores de Assistência Social que estava prestando um desserviço. Vou contar uma coisa que foi bem chocante para mim: eu sempre vou aos espaços tranquilamente e, desde o início, eu vou no Parque Dom Pedro. E aí eu recebi um recado do Anderson [Miranda, presidente do Movimento Nacional da Pessoas em Situação de Rua], que disse ‘secretária, a senhora não deve ir na Dom Pedro porque a estão ameaçando fisicamente. Levaram para lá uma reportagem que a senhora teria feito para a TV dizendo que só tinha traficante lá’. Eu achei estranho. Porque o que eu disse era que aquele era um espaço de acolhimento da gestão anterior e que em abril do ano passado nós resolvemos fechar porque o espaço estava tomado pelo tráfico. E isso era verdade. Fui lá para esclarecer isso e fui escorraçada. Ameaçada fisicamente mesmo. Eles tinham a transcrição do programa. Alguém se deu ao trabalho de, supostamente, transcrever e distribuir mimeografado. Todos tinham uma cópia. Eu dizia para eles que se tivesse dito aquilo, não estaria lá como estava. Mas eles diziam que não me queriam lá. Ou seja, se isso não é orquestrado, o que é?

Mas há problemas nos serviços que motivam um clima espontâneo de motim?

Temos que melhorar muito os atendimento para pessoas em situação de rua. Muito e em muitos aspectos. Em alguns casos, a questão é o prédio. Nós temos muita dificuldade para conseguir espaços físicos para esse serviço, a rejeição é absurda. Conseguimos a desativação do Pedroso, que era totalmente insalubre, e levamos um ano para conseguir porque a gente não conseguia prédio. Os proprietários não aceitam, ou, quando aceitam, o entorno se revolta. Eu guardo aqui, porque são a minha defesa, pilhas e pilhas de abaixo-assinados para que não se monte abrigos. E, claro, qualquer gasto com prédio alugado é difícil porque tem que prestar contar para o Tribunal de Contas.

Tem outra questão é que o serviço em si, que também tem que ser aprimorado. Esses serviços são muito distintos entre si. Tanto no número de pessoas que acolhem, tanto da entidade que cuida, o gerente que toma conta. Às vezes você tem uma mesma entidade tomando conta de dois serviços, um funciona bem e o outro não. Temos que uniformizar algumas questões. Acho que não faz o menor sentido, por exemplo, que o cardápio dos centros não seja absolutamente o mesmo. Porque comida é uma demanda. Tem coisas que são difíceis de resolver, mas tem questões que a gente começou a trabalhar agora, que são as questões cotidianas, de simples solução.

No caso do Pedroso, havia muitas reclamações em relação ao serviço e a entidade que assumiu no novo endereço a mesma de antes. Publicamos uma reportagem o vice-presidente do Conselho Municipal de Assistência Social (Comas) diz que a prefeitura é “refém dessas entidades” por elas serem enormes e poucas. A senhora concorda com isso?

É verdade que tem grandes entidades em São Paulo, mas tenho que esclarecer o seguinte: existe uma lei, a Lei de Parcerias, que regulamenta toda forma de parceria em assistência social. Nós temos mais de 1.200 serviços conveniados. E quando a gente precisa de um serviço a gente tem que abrir um edital público, e aí quem aparece são sempre as mesmas entidades. Para contornar isso, estamos tentando fazer um processo de fortalecimento das pequenas entidades. O Conselho reclama, mas ele é responsável por dar inscrição para essas entidades. Pela lei, só podemos conveniar com entidades credenciadas pelo Comas. E a dificuldade para conseguir um credenciamento pelo Comas? Então o Comas também tem que agilizar esse processo de inscrição. Agora, quando eu abro um chamamento e aparece uma entidade grande, que tem vários serviços, o que eu faço?

Mas esse modelo de credenciamento é o melhor? Por mês a pasta repassa R$ 56,3 milhões para essas entidades. O município não poderia assumir esses serviços?

Esse é o modelo da lei. E é uma legislação, em tese, boa e protetiva da transparência e da democracia dessa escolha. Porque em tese se eu abro um serviço e chamo todo mundo que está habilitado a participar, em tese, é um processo democrático. Mas o que eu já escutei é que existe um acordo entre as entidades. Se uma se apresenta, outra não se apresenta. Agora, que controle eu posso ter sobre isso?

Eu que pergunto. O que a prefeitura pode fazer em relação a isso?

O que eu tenho feito: dar ampla divulgação. Tenho recebido muitas entidades que não são inscritas e as incentivo a se inscrever. O esforço tem sido para valorizar entidades pequenas que trabalham o território.

Já as entidades reclamam que com o desenho desses editais em relação aos valores pagos, as exigências de quadro funcional seria impossível prestar um bom serviço.

O que é repassado está determinado pela Portaria 46, que estabelece a estrutura dos serviços, o número de servidores e todo o resto. Já a Portaria 47 aponta o quanto se repassa para cada um dos serviços. Então não é algo aleatório. Quando cheguei havia uma crítica muito grande ao pouco diálogo entre a secretaria e o Conselho de Assistência Social. Eu imediatamente me comprometi, porque é da característica da gestão do prefeito Fernando Haddad, em fazer uma gestão muito democrática. Propus logo que eu entrei que o Comas fizesse uma proposta de revisão da portaria 46 e aí faríamos contrapropostas, faríamos audiências públicas e acharíamos um caminho melhor. O fato é que acabou o ano, mudou agora a gestão do Conselho, e não se apresentou uma proposta de modificação. Então precisamos dividir as responsabilidades. Se o serviço não está bom, se a estrutura não é essa, a gente está disposto a repensar. A crítica era à falta de participação do conselho e das entidades, mas aí eu proponho uma revisão e ninguém faz. Se eu mudo a portaria por minha conta, eu passo a ser autoritária.

Muitas pessoas ligadas à questão da pessoa em situação de rua elogiavam o diálogo com a prefeitura no inicio da gestão, mas agora dizem que esse diálogo não é mais produtivo e que muitas vezes sequer existe. O que mudou?

Acho que tem uma questão aí em relação ao Comitê da População em Situação de Rua, criado logo no começo da gestão, e que ficou sob responsabilidade da Secretaria de Direitos Humanos. Acho que tem uma divergência estruturante em relação a uma postura da gestão e acho que a queixa vem daí. É uma postura desta gestão que as praças não sejam ocupadas de forma permanente como acontecia na Sé, que era uma mini-cracolândia a céu aberto. Na verdade, foram feitas algumas ações, sempre com a participação da Assistência Social. Nós participávamos e dizíamos: ‘olha, não dá para vocês ficarem aqui’, e oferecíamos acolhimento. Uma parte aceitava, outra não. Acho que isso desagradou muito a população em situação de rua.

Nós acompanhamos um caso de atendimento a uma pessoas em situação de rua hospitalizada em que ficou claro que não há intersetorialidade entre a saúde e assistência social, primeiro durante o seu socorro, depois na hora da alta. O diálogo maior entre as secretarias não poderia melhorar o atendimento?

A intersetorialidade é um desafio imenso. Porque, às vezes, as coisas estão tão arraigadas no setor público, tão arraigadas, que não adianta os secretários tomarem uma decisão que, quando chegar lá no corpo técnico, a dificuldade de integração será tremenda. Acho que se tem uma marca nesse governo é o prefeito forçar a intersetorialidade desde o primeiro momento. Tanto é que ele faz reuniões individuais, mas criou grupos específicos. A Saúde e a Assistência têm uma intersecção muito grande. Eu tenho defendido que os serviços têm que ser híbridos. Nós estamos construindo com a Saúde uma solução para a parte de convalescentes do Boraceia, e o projeto está bem avançado. Mas, do mesmo jeito que no De Braços Abertos a gente há cinco meses enfrenta um problema de 15 anos, a questão da intersetorialidade é uma luta de um ano e meio contra uma situação crônica.

A prefeitura tem planos para levar uma espécie de De Braços Abertos 2 no Parque Dom Pedro. Quando vai começar?

Estamos amadurecendo. A secretaria de Governo está puxando essa discussão. A gente está pensando ainda qual vai ser a ação. Já temos ideia do perfil, quem é, quem não é. Acho que lá é uma situação bem diferente da Luz, a gente tem uma situação diversa. E estamos olhando com muito cuidado. Sair, vão ter que sair. Porque é um espaço público, a prefeitura quer usar aquilo como um parque. Eu recebi aqui outro dia duas lideranças locais para saber quais são as demandas.

Já está pronta a operação inverno? No ano passado, houve muitas críticas à ação que gerou várias instabilidades e agravou problemas, como no caso do Zachi Narchi, que abriga quase 500 homens em condições precárias até hoje.

O que o Comitê quer, o Conselho quer e eu também quero, mas não consigo: é montar abrigos decentralizados. Mas eu não consigo prédios. Sobre o Zachi Narchi, a gente precisava de um lugar grande porque era uma emergência, mas a gente também não conseguia vários espaços pequenos. Eu não posso impor que alguém me alugue um espaço.

Mas já está sendo preparada a operação inverno?

Claro. A secretaria de Governo sempre puxa isso. A portaria está sendo preparada, a gente pede para as secretarias indicarem espaços para montar esses pequenos acolhimentos. Agora, se eu vou conseguir atender a demanda descentralizada eu não consigo responder ainda.