Meta de consumo ‘impossível’ cria temor de multa da Sabesp
Governo de SP impõe uso de água abaixo do recomendado pela ONU para consumo diário saudável e usa até tempo em que imóvel fica vazio para o cálculo
Publicado 12/05/2014 - 06h00
Primeiro, a falta de planejamento e investimento. Agora, governo de SP castiga população por falta d’água
São Paulo – A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) contabiliza o período que uma casa tenha ficado fechada no cálculo para estabelecer a meta de redução de consumo de água. Com isso, se o cidadão mudou-se para uma residência que estava vazia há seis meses, por exemplo, vai ter contados todos os zeros medidos nestes meses. Além disso, corre o risco de receber uma multa pelo mínimo aumento no uso da água, se o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) for autorizado a instituir a penalização.
A farmacêutica Fernanda Souza Lima, 28 anos, moradora da Vila Maria, zona norte de São Paulo, percebeu que o consumo no mês de abril (5 metros cúbicos) foi inferior à média da residência (8m³) impressa na conta. Porém, não recebeu desconto, pois a média registrada pela Sabesp para fins da meta de redução de uso de água em face da crise de abastecimento no Sistema Cantareira, seria 3m³ (3 mil litros) por mês.
Segundo a Sabesp informou, por meio do serviço de atendimento ao consumidor, a contagem para oferecer o desconto é de maio de 2013 ao mesmo mês de 2014. Assim, a farmacêutica tem quatro meses sem consumo (zerados) que entraram na conta.
“É muito baixo. É um patamar impossível de alcançar. Como pode contar o tempo que a casa esteve vazia?”, questionou Fernanda, que vive na residência há nove meses.
O gerente técnico do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Carlos Thadeu Oliveira, considera incorreto o critério da Sabesp. “Não se pode contar o consumo zero. Isso impõe clara desvantagem ao cidadão. Se for haver uma distorção no cálculo, o correto é que seja favorável ao consumidor”, explicou.
De acordo com a recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU), para atender necessidades básicas de consumo, higiene e alimentação, uma pessoa precisa de 110 litros de água por dia. O que resulta em 3.300 litros ou 3,3m³.
Fernanda vive com o marido, o que leva o consumo ideal da casa dela, definido pela ONU, a 6,6m³ por mês – 6.600 litros. Mais que o dobro do estabelecido na meta da Sabesp.
“Então, eu tenho que passar necessidade para atingir a meta?”, indigna-se.
O desconto de 30% no valor da conta para os consumidores que reduzirem 20% no consumo foi instituído por Alckmin em 20 de janeiro deste ano, como forma de motivar a redução do consumo das pessoas atendidas pelo Sistema Cantareira que, naquele momento, estava com 24,4% da capacidade. Hoje, o nível do reservatório está em 8,9%.
Segundo a Sabesp, 76% dos atendidos pelo Sistema Cantareira aderiram ao programa de economia de água. Desses, 37% tiveram bônus, outros 39% economizaram, mas não atingiram a meta. Em 31 de março, o governo estadual estendeu o benefício para 31 cidades da região metropolitana, mais a capital paulista.
Três meses depois, em 21 de abril, o governador anunciou que a Sabesp iria multar os consumidores que aumentassem o consumo em relação ao mês anterior. No entanto, questionada por entidades de defesa do consumidor e, aparentemente, sem embasamento legal, a medida ainda não foi instituída.
“Estou preocupada com isso. Se a multa é sobre aumento do consumo, sem definir o quanto, posso ser multada sobre a diferença de um mês para outro. É injusto”, protesta Fernanda. “Sempre gastei pouca água e agora posso ser penalizada por isso”, completou.
A preocupação faz sentido, já que a Sabesp e o governo Alckmin, até agora, não esclareceram de que forma a multa será aplicada. A RBA procurou a companhia solicitando informações, mas, mais uma vez, não teve retorno. O governador pretendia instituir a medida neste mês.
De acordo com um nota do Idec, sobre a proposta de multar os consumidores, a medida só poderia ser instituída se a companhia tivesse lançado mão do racionamento de água, conforme estipula o art. 21, do Decreto Federal nº 7.217, de 21 de junho de 2010, que estabelece diretrizes para o saneamento básico no país.
“Nunca é demais lembrar que o próprio Código de Defesa do Consumidor estabelece, no artigo 22, que o estado ou as empresas concessionárias são obrigadas ‘a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos’. Assim, as perdas físicas e negligências da Sabesp, como uma inequívoca ineficácia do serviço, também tornaria passível o enquadramento de tal caso no vício de serviço”, diz um trecho da nota.
As perdas a que remete o texto, são os 30% do volume de água tratada produzido pela Sabesp, que se perde nas redes de tubulações, algumas com mais de 40 anos de existência, em virtude de trincas e fissuras.
A medida de oferecer descontos na conta de água acaba por beneficiar quem sempre gastou muito. Afinal, é mais simples reduzir 20% do consumo quando se consome 30m³ – meta de redução para 24m³ – do que consumindo 10m³, com uma meta de redução para 8m³, pois o primeiro tiraria do excesso e o segundo de necessidades.
O instituto de pesquisas DataPopular, inclusive, divulgou um estudo, no último dia 7, demonstrando que a população de baixa renda é mais afetada pela crise de abastecimento do que os mais ricos. O levantamento aponta que 23% dos moradores da região metropolitana de São Paulo (6 milhões de pessoas) já sofreram com a falta de água nos últimos três meses. Os mais afetados são os que ganham até um salário mínimo mensal, 25%. Ao mesmo tempo, apenas 12% das pessoas ouvidas, que ganham mais de dez salários mínimos, foram afetados pela falta de água.
O estudo também demonstra que a maior parte dos afetados está em cidades da região metropolitana, 35%. Quando considerada somente a cidade de São Paulo, o mesmo parâmetro indica que 30% dos afetados estão em bairros periféricos da capital.
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