Drogas

Congresso incluído, Brasil começa a desafiar ‘visão medieval’ sobre maconha

Temporada de marchas pró-legalização começa com inspiração de novas políticas no Uruguai e nos EUA, além de promessa de debate na Câmara em torno de projeto que prevê liberação de consumo e venda

Robert Van Den Berge/EFE

Em parte dos Estados Unidos e no Uruguai, produção legalizada de maconha se torna realidade

São Paulo – Alheio aos vizinhos, ao debate universal e às discussões em curso na sociedade, o Congresso Nacional parece disposto a repetir com a questão da maconha a postura mantida em relação a outros temas de cunho moral que, ignorados no Legislativo, acabaram abordados de maneira aberta pelo Judiciário. A despeito da postura mantida pela maioria dos parlamentares, porém, a cannabis ao menos conseguiu subir as rampas da Câmara e do Senado graças a três iniciativas bastante diferentes entre si e terá a sorte lançada ao longo dos próximos meses em meio a uma corrida eleitoral que tem sempre significado má sorte para assuntos que despertam pavor entre as bancadas religiosas.

Apesar da lentidão institucional, os ventos trazidos de fora garantem ao Brasil de 2014 um debate bem mais presente que em outros tempos. É neste contexto que se inicia a temporada de Marchas da Maconha, aberta no próximo dia 26, em São Paulo, e com previsão de encerramento em junho, nas cidades de Salvador e Foz do Iguaçu, segundo a agenda fechada até agora. Só de as marchas poderem ocorrer, sem proibição judicial, é um sinal de melhoria no quadro geral: nos últimos anos, foi comum a expedição de liminares proibindo protestos do gênero, considerados como alusivos a condutas ilegais.

Na capital paulista, a manifestação será precedida pela realização, esta semana, de uma série de debates e atividades de esclarecimento. Não faltarão argumentos e casos a serem abordados pelos participantes. 2014 é um ano especial para as correntes pró-descriminalização: o Uruguai está nos detalhes finais da regulação do projeto que prevê plantio, distribuição e venda da maconha controlados pelo Estado; Espanha e Portugal adotam políticas liberalizantes e não tratam o usuário como criminoso; e o estado do Colorado, nos Estados Unidos, libera a substância para uso recreativo. Na terra de Barack Obama, aliás, cada vez mais estados debatem a questão e concluem que despenalizar pode significar aumento na arrecadação de impostos e menos gastos com prisões e forças policiais.

No mês de março deste ano, até mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) admitiu, em um relatório de 22 páginas do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (Unodoc), que os objetivos da luta mundial contra as drogas não foram cumpridos e sugeriu, pela primeira vez, a descriminalização do consumo de entorpecentes.

O relatório, assinado pelo diretor-executivo do Unodoc, o russo Yury Fedotov, avalia que, na situação atual, há “progressos desiguais” e reconhece que “a magnitude geral da demanda de drogas não mudou substancialmente em nível mundial”, o que contrasta com os objetivos fixados internacionalmente em 2009.

Em terras brasileiras, das três propostas, aquela considerada mais ampla e mais próxima dos anseios dos setores pró-liberação é também a mais recente. Há um mês, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) apresentou o Projeto de Lei n° 7270/2014, que regula a produção, a industrialização e a comercialização de cannabis, além de derivados e produtos feitos a partir da planta. A iniciativa é ousada, tendo em vista o conservadorismo da sociedade brasileira e do Congresso Nacional.

De acordo com o projeto, fica “livre a comercialização, em todo o território nacional”, de maconha e derivados. O texto também torna isentos de inspeção e fiscalização pelo Ministério da Agricultura o plantio, o cultivo e a colheita domésticos da planta, quando destinada a consumo pessoal ou compartilhado em domicílio, de até seis pés de cannabis maduros e seis imaturos, por indivíduo, ao ano.

O PL dispensa de inspeção até 480 gramas da colheita cultivada e prevê os seguintes “direitos fundamentais” de pessoas que fazem uso “problemático de drogas”: não serem excluídas de comunidades, escolas e espaços públicos pela condição de usuários; não sofrerem discriminação em campanhas contra o uso de drogas; terem acesso a tratamentos voluntários de superação da dependência química.

Para Wyllys, é realista projetar aprovação de projeto na próxima legislatura, a partir de 2015

Para Wyllys, o projeto é apresentado num momento em que de fato está se definindo qual será o novo paradigma social da maconha. “Acho, sim, que o momento é esse. Quando o presidente dos Estados Unidos sinaliza para uma nova política de resposta ao consumo de maconha, quando um conjunto de líderes mundiais ou de notáveis como Kofi Annan, Bill Clinton, os ex-presidentes da Colômbia [César Gaviria], do México [Vicente Fox] e do Brasil [Fernando Henrique Cardoso] se juntam pra dizer ao mundo que a atual resposta às drogas é um equívoco, quando nosso vizinho Uruguai legaliza e regulamenta a cannabis, é porque o momento é esse”, acredita o parlamentar.

Para elaborar o projeto, Wyllys se baseou nas recentes experiências bem-sucedidas de Uruguai, Estados Unidos e nações europeias. O principal motivo de se modernizar a lei é o despropósito da visão e uma legislação draconianas sobre o assunto, com efeitos sociais catastróficos. “O custo da guerra às drogas é muito grande. O custo econômico-financeiro aplicado no policiamento, no efetivo policial, armamento, toda a infraestrutura das polícias para enfrentar o tráfico. O custo de vidas e da população carcerária. Somos o quinto país que mais gasta com população carcerária no mundo e a quarta população carcerária mundial. Apesar disso, o consumo de maconha só aumentou nos últimos anos. Então, a resposta não pode ser essa”, diz Wyllys.

Recentemente, ao julgar um habeas corpus, o ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), evocou a necessidade de debater a despenalização do porte de pequenas quantidades de drogas. Para ele, mais que uma questão ideológica, trata-se de uma visão prática sobre os efeitos nocivos de encarcerar tantas pessoas. Barroso contou que, ao chegar à Corte e se deparar com tantos casos de pequenos traficantes, mudou a visão sobre como lidar com o tema, convencido de que o que se está fazendo é prender jovens sem nenhuma importância na cadeia de comércio ilegal. “É por essa razão que em relação à maconha penso que o debate público sobre a descriminalização é menos discutir acerca de uma questão filosófica e mais discutir acerca da circunstância de se fazer uma escolha pragmática.”

Também de maneira pragmática Wyllys encara a previsível dificuldade que a proposta enfrentará no Congresso. E diz não ter pressa. “Minha expectativa é de que, na próxima legislatura, a gente consiga aprovar esse projeto. Acho que este ano a gente inicia o debate. O debate será aprofundado no início da legislatura que vem”, prevê. “O principal ganho, agora, não é nem um ganho legislativo. É político. É ter colocado esse debate na agenda nacional.”

Ele explica que o relator da matéria na Câmara será o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) e que o projeto foi apensado ao do deputado Eurico Junior (PV-RJ). “Ele apresentou um projeto menor que o meu, mas, antes de mim, apenas pra não perder o mérito de ter sido o primeiro partido na história que tocou nesse tema. E o meu foi apensado ao dele”, alfineta.

Políticas públicas

O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor do Programa de Orientação e Tratamento a Dependentes (Proad), concorda com Wyllys que as políticas de combate às drogas são equivocadas e ineficientes. Mais do que isso, lembra que a filosofia dessa política no Brasil é importada de um modelo fracassado.

Em setembro do ano passado, em audiência pública no Senado Federal para debater o Projeto de Lei da Câmara n° 37, de autoria do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), ele fez contundente explanação sobre os motivos da oposição à proposta do parlamentar gaúcho, já aprovada na Câmara e em tramitação no Senado, que prevê a internação involuntária para usuários, entre outras determinações repressivas.

Dartiu lembra que a política de combate às drogas na qual o Brasil se inspirou é dos Estados Unidos. Depois de 15 anos de guerra às drogas e U$ 20 bilhões de dólares gastos até 1990 para fazer o sistema funcionar, a eficácia foi considerada nula.

“Eu chamaria o projeto de Osmar Terra de medieval. Vai contra todo o bom senso, tudo que está se discutindo em termos de tendência no mundo com relação à política de drogas”, afirmou o psiquiatra à RBA. “Osmar Terra puxa para as coisas mais reacionárias, comprovadamente ineficazes, baseado, em linhas gerais, naquilo que a gente chama de modelo de guerra às drogas, algo prevalente nos Estados Unidos no final do século passado, uma maneira de olhar o problema baseado em ideologia e que, na prática, foi desastroso, responsável por muitos danos à humanidade.”

Há quem ache que há interesses inconfessáveis por trás do projeto de Terra. “Enquanto o mundo todo, o Brasil, a Globo, o Fernando Henrique Cardoso reconhecem que a guerra às drogas falhou e que é um fracasso, o Osmar Terra chegou à mesma conclusão: só para ele a guerra às drogas falhou por falta de guerra. Ele quer mais guerra”, diz Júlio Delmanto, membro do coletivo DAR e um dos organizadores da Marcha da Maconha de São Paulo.Marcha da Maconha no Pará: até há pouco eventos do tipo sofriam bloqueio judicial

Lucro com sofrimento

Delmanto aponta o que entende ser o principal motivo de o projeto de Osmar Terra prever a internação involuntária como solução para o problema das drogas. “Osmar Terra é um médico muito ligado aos interesses da internação, das pessoas que vivem do sofrimento. Querem internar as pessoas porque esse é um mercado que dá muito dinheiro”, conta. “Terra se utiliza de argumentos que são do mesmo nível dos que o Bolsonaro usa para defender a ditadura, que não têm a mínima sustentação científica, são mal intencionados e isso acontece para esconder a verdadeira intenção dessas pessoas, que é evidentemente política e econômica.”

A reportagem procurou o deputado Osmar Terra, mas não obteve retorno.

Dartiu Xavier afirma que não apenas conceitos, mas, números, comprovam o equívoco de políticas repressivas contra as drogas. Um estudo da década passada nos EUA mostra que, nas prisões federais daquele país, 59% dos presos estavam nas penitenciárias por crimes relacionados ao uso de drogas. E 89% desses presos são jovens de menos de 30 anos, sem antecedentes criminais e réus primários.

Para o psiquiatra, é inexplicável que, na segunda década do século 21, o Brasil mantenha políticas tão obsoletas. “Na Europa, existem políticas públicas de tolerância com a maconha há mais de 20, 30 anos.” Ele conta que, no período em que trabalhou com dependência química em Paris, há mais de 20 anos, policiais não prendiam jovens ou adolescentes por fumarem maconha na rua, apesar de ser uma droga ilícita e embora “a postura da França não fosse nada ousada em termos de modernidade”. “Era um país até considerado tradicional demais, mas era senso comum que você não vai pegar um menino e prender porque ele está usando maconha. Isso 20, 30 anos atrás. E, hoje em dia, a gente aqui ainda está brigando pelo simples direito do indivíduo não ser chamado de traficante só porque está consumindo uma droga ilícita.”

Psiquiatria

Do ponto de vista da psiquiatria e da dependência química, diz Xavier, a maconha se insere num contexto geral: “Uma droga – álcool, maconha, heroína, tanto faz – vai ser boa ou má não por causa da droga em si, mas dependendo da pessoa, do padrão de uso.”

Porém, embora reconheça que alguns dos seus pacientes tiveram problemas graves com maconha, “do ponto de vista da dependência”, ele cita dados para ilustrar que o álcool, uma droga legalizada, tem efeitos mais nocivos à mente e ao corpo humano. Segundo Dartiu Xavier, de cada 100 pessoas que consomem maconha, nove se tornam dependentes. “Isso significa que 91% de quem consome maconha não vai ter esse problema. Já para o álcool, essa porcentagem é de 15%. De cada 100 pessoas que bebem, 15 vão se tornar dependentes.”

Esquerda e preconceito

O problema do preconceito contra as drogas, em particular a maconha, não é exclusividade de setores à direita do espectro político. Segundo um estudo da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, partidos e organizações de esquerda claramente ignoraram a política de descriminalização das drogas entre 1960 e 2000.

Para Julio Delmanto, autor da tese de mestrado para a USP intitulada Camaradas caretas: drogas e esquerda no Brasil após 1961, “a esquerda, se não foi sempre conservadora, no mínimo nunca deu atenção a este debate. Se bateu muito na questão da liberdade individual, no problema da repressão política, em uma série de assuntos, mas o uso da maconha nunca foi um tema da esquerda.”

Ele atribui esse descaso a diferentes fatores, dependendo do período histórico. “Durante a luta armada, a questão era pela existência de organizações hierarquizadas e militarizadas que tinham muita disciplina. Nessa época, era mais a questão da disciplina e do ideal de sacrifício militante.”

Porém, mais recentemente, os fatores são outros, segundo o acadêmico. “Depois, nos anos 1980, no caso do PT, é uma questão mais ligada ao que o partido se tornou. Houve o eleitoralismo saltando sobre todas as outras discussões. Por mais que algumas pessoas defendessem que era uma questão de saúde pública, ninguém queria mexer nesse assunto porque faria o PT perder votos. Acho que essa ideia acabou sendo predominante no período pós-ditadura.”

Na questão das drogas, os cenários não são muito animadores diante das eleições presidenciais, que apontam para o favoritismo da presidenta Dilma Rousseff e chances menores para o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos (PSB).

Jean Wyllys vê a postura do atual governo sobre o tema como decepcionante. “A Dilma já mostrou que não construiu cenário positivo pra nenhuma agenda ligada a minorias e a comportamento. Ela provou isso no mandato dela. A questão LGBT e a violência homofóbica, que é uma desgraça, a questão indígena, tudo ficou esquecido no governo dela”, diz. “Não sei se com esse comportamento e com as alianças vai ter um cenário positivo.”

O fato de o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso defender políticas mais avançadas, para o deputado, não deixa claro como seria uma eventual abordagem de Aécio, caso eleito. “Como vai ser para Aécio Neves durante a campanha ser contra a uma nova política de drogas, se o ex-presidente, do partido dele, defende a legalização? Tem isso, mas, por outro lado, o PSDB tem pendido muito para a direita”, questiona. “Então, pode ser que o Aécio não fale sobre essa questão.”

Já com Eduardo Campos, o tema talvez ganhe alguma relevância, na visão de Wyllys. “Pode ser ele trate da questão por causa da presença da Marina que, com a Rede Sustentabilidade, de alguma maneira, tem um acúmulo nessa questão da maconha e de uma nova resposta às drogas também dessa perspectiva da sustentabilidade”, acredita.

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