NetMundial

Mesmo com críticas, Conferência da Internet avança na governança democrática da rede

Governo e sociedade civil brasileira sentiram falta de menções mais explícitas à neutralidade e condenações à espionagem. Aplaudido, acordo deve ser aprimorado em fóruns globais no futuro

CC / netmundial

Apresentação do documento final do encontro que discutiu rumos para a governança global da internet, em São Paulo

São Paulo – A Conferência Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança na Internet, a NetMundial, terminou na noite de hoje (24) em São Paulo com um documento final aplaudido de pé pela maioria dos representantes de governos, empresas, sociedade civil, técnicos e acadêmicos que participaram do evento. Houve poucas – mas importantes – mudanças em relação ao texto inicial. E as expectativas do governo brasileiro acabaram parcialmente frustradas.

Não há no documento, por exemplo, menção literal à neutralidade da rede. O princípio tem sido considerado uma das principais conquistas do Marco Civil da Internet, sancionado ontem (23) pela presidenta Dilma Rousseff durante a abertura do NetMundial. Tampouco existe uma condenação explícita à vigilância em massa das telecomunicações ao redor do mundo. Isso desagradou alguns participantes, uma vez que as denúncias do ex-consultor da Agência Nacional de Segurança americana Edward Snowden – e a irritação que provocaram em Dilma – foram as motivadoras do encontro.

“O documento aumenta nosso ânimo”, discursou o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, que, minutos antes, havia feito algumas ressalvas à RBA sobre a declaração final. “O termo ‘neutralidade de rede’ não consta explicitamente no texto. Para nós, que acabamos de aprovar o Marco Civil da Internet, foi ruim. Mas há descrição de uma rede sem discriminação de conteúdo, sem violação da privacidade, enfim, todos os elementos de uma rede democrática estão colocados de forma bem assertiva.”

O ministro também sentiu falta de uma condenação mais enérgica da espionagem. “Por motivos óbvios, os Estados Unidos estavam incomodados com isso”, relata. “Ainda assim, o texto diz que não é possível aceitar a vigilância massiva das comunicações.” Bernardo avalia que o documento não é perfeito, mas que significa uma vitória para o futuro da governança. A ideia, agora, é aprimorar o texto em outros espaços. Um deles, citou, é o Fórum Global da Internet (IGF), que ocorre em setembro na Turquia. “Ano que vem será sediado no Brasil.”

Outro ponto que desagradou – nem tanto o governo, mas representantes da sociedade civil – diz respeito aos direitos autorais. O documento final submete a liberdade de informação e a liberdade de acesso à informação à observância dos direitos de autor e criadores, ressalva que não constava do texto inicial e que na prática pode limitar o fluxo de bens culturais e informacionais pela rede. No Brasil, também tem servido para censurar algumas iniciativas online, como ocorreu no caso do blogue Falha de S. Paulo, retirado do ar por ordem judicial em 2010 justamente sob alegação de violações de copyright.

“É ruim que se vincule um direito fundamental, como a liberdade de expressão, à garantia de direitos patrimoniais. Nos parece algo incompatível”, observa um dos representantes da sociedade civil brasileira na NetMundial, Pedro Ekman, membro do Coletivo Intervozes. Ekman ecoa as críticas do ministro das Comunicações quanto à neutralidade de rede e espionagem, mas também encara a declaração final como uma conquista. “O documento não é ruim, é bom, mas perdemos algumas conquistas que haviam no texto inicial.”

Apesar dos pesares, a avaliação geral é que a NetMundial pode ser considerada um sucesso pelo simples fato de ter ocorrido, e ter reunido em São Paulo representantes de 97 países para discutir o futuro da governança da internet de maneira plural. “Esse esforço pioneiro é um exemplo claro de como os processos multissetoriais resultam em soluções mais criativas em assuntos de governanças”, atesta Virgílio Almeida, presidente do Comitê Gestor da Internet brasileira (CGI.br) e coordenador da conferência. “Talvez não seja um documento perfeito, mas é resultado de processo de baixo pra cima.”

Histórico

A NetMundial teve início na manhã de ontem (23) com um discurso da presidenta, Dilma Rousseff, que antes de usar a palavra, aproveitou os holofotes internacionais para sancionar a lei que cria o Marco Civil da Internet. O projeto havia sido aprovado pelo Senado anteontem depois de uma intensa articulação da base aliada.

Apesar dos protestos da oposição, que queria prolongar a discussão sobre o Marco Civil, a matéria foi aprovada a tempo de Dilma apresentar-se à conferência com a “autoridade moral” de chefiar o primeiro país do mundo a elaborar uma legislação garantindo direitos aos usuários na internet – uma das principais conquistas de seu mandato em política externa.

Parece ter funcionado. O Marco Civil recebeu elogios públicos do vice-presidente do Google, Vint Cerf, e do criador da web, Tim Berners-Lee. Ambos apontaram o texto como “um exemplo” por garantir princípios como privacidade das comunicações, liberdade de expressão e neutralidade da rede. Dilma resumiu as conquistas do projeto dizendo: “Os mesmos direitos que os cidadãos possuem offline devem ser garantidos online.”

Não por coincidência, os valores expressos na nova legislação haviam sido exaltados por Dilma em seu discurso na 68ª Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em Nova York no ano passado. Na ocasião, a presidenta, que apenas algumas semanas antes havia cancelado uma visita oficial aos Estados Unidos, fez duras críticas ao sistema de espionagem mantido pela Agência de Segurança Nacional (NSA) norte-americana. E discorreu sobre a urgência de uma reforma nas instâncias administrativas da internet.

“Tudo começou há apenas 197 dias, quando conheci o ministro Paulo Bernardo e ele me levou para conhecer a presidenta Dilma num dia chuvoso em Brasília”, relatou Fadi Chehadé, presidente da Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (Icann), órgão que administra a rede. “Realmente, é um recorde de tempo e um ótimo documento. Isso é história. Eu entendo as críticas, mas precisamos que todos vocês estejam conosco. É um processo novo, e é assim que construiremos a internet que queremos.”

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