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Letras e artes: resistindo

A literatura, o teatro, o cinema e artes visuais apresentaram obras pujantes e contestadoras até 1968, até serem destroçadas pelo AI-5. Já na música, os compositores e intérpretes conseguiram, ainda que sob forte perseguição, criar peças de resistência que marcam o cenário cultural deste período

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Obra-prima, ‘Cabra Marcado para Morrer’ era o espírito do Centro Popular de Cultura

Em 1964, a atmosfera cultural efervescente não preparou ninguém para o golpe, que caiu como um raio sobre as letras e as artes. O novo regime proibiu, censurou, mutilou, perseguiu, garroteou as vozes, causando esterilidades e inflexões de rumo. E, quando apeou do poder, não foi possível retomar o ponto de partida: a história derrapara em direções inesperadas.

Ficou o patamar de uma “idade de ouro”, panorama artístico e cultural de pujança única, tomando impulso ainda na era Kubitschek; e que, apesar do golpe, conheceria uma intensificação até 1968, para ser destroçado pelo AI-5. Nunca se recuperou: as consequências para o campo do imaginário foram tremendas e irreversíveis.

Ressalte-se que é no pré-golpe, ou seja, em 1962, que se inaugura um componente fundacional nesse tópico: o Centro Popular de Cultura (CPC), cujas filiais se multiplicaram pelo Brasil inteiro. Ativo órgão da UNE, abria-se à participação de quem quisesse trabalhar, intelectuais e artistas em geral, unidos no propósito de levar cultura para o povo. Um projeto desprendido e bem intencionado, que fecundaria a cultura brasileira com realizações notáveis. Paralelamente, a alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire era assumida como missão pelos estudantes, no país todo.

Para ter uma noção do que se tratava, convém assistir à obra-prima que é o documentário de Eduardo Coutinho, iniciativa do CPC, Cabra Marcado para Morrer. O filme tem o espírito do CPC e mostra em sua própria fatura tanto os tropeços trazidos pela história quanto a fortaleza ante a adversidade. Dedicado ao assassinato de um líder das Ligas Camponesas da Paraíba, João Pedro Teixeira, a mando dos proprietários de terras, foi interrompido pelo advento do golpe. Só seria terminado vinte anos depois, em 1984, sob a democracia resgatada, já incorporando a sua estrutura o hiato como fonte de renovadas reflexões.

Como se pode constatar naquilo que permaneceu, a exemplo desse filme, essa é uma das mais férteis fases de criação cultural já havidas no país.

Comecemos pelas letras. A prosa literária referente a 1964 traça um arco contínuo com aquela provocada pelo AI-5 de 1968,  transformando-se à medida que o regime enrijecia. Agrupa-se em três vertentes, que são o romance dos veteranos, o memorialismo dos jovens e a biografia.

De imediato, surgiram Quarup, de Antonio Calado, e Pessach – A Travessia, de Carlos Heitor Cony, em 1967. Não por coincidência, ambos terminam com seus heróis partindo para a guerrilha. A obra de Calado abriria uma sequência de romances que vão acompanhando as metamorfoses do monopólio do poder fardado, sempre do ponto de vista de quem o sofre na carne. Depois de Quarup viriam mais três. Bar Don Juan (1971) é povoado pela chamada “esquerda festiva”, que começava a pegar em armas. Reflexos do Baile (1976) já penetra pela ofensiva da retaliação, de uma brutalidade até então inédita no país, e pelo terror de Estado. Sempreviva (1981), ao tratar de um guerrilheiro regressando do degredo, completa o ciclo, que devemos àquele que se tornou o cronista da esquerda no período.

Por sua vez, Lygia Fagundes Telles escreveu o romance As Meninas (1973), em que, ao pôr em cena três colegas vivendo juntas num pensionato, uma delas ativista política, mostra o arrocho com que os tiranos do momento atormentam os estudantes.

Já rezando pela cartilha alegórica, na craveira do “realismo mágico” tão em voga na América hispânica coeva, outros veteranos procederiam a seu ajuste de contas. Os defuntos insepultos de Erico Verissimo, em Incidente em Antares (1971). Os desmandos de um prefeito que preserva a paz social castigando e exterminando, em Os Tambores Silenciosos (1977), de Josué Guimarães. A clausura do universo totalitário em que paira uma atmosfera de pesadelo, em A Hora dos Ruminantes (1966), A Máquina Extraviada (1968) e Sombras dos Reis Barbudos (1972), de José J. Veiga.

Em suma, como já não era viável falar diretamente do que se passava, desdobra-se uma literatura que revela o estrangulamento da expressão justamente nas tramoias para driblá-lo. São suas armas a elipse (o não dito) e a metáfora (o dito indireto ou figurado). Estamos no reino da alegoria, do simbolismo, do surrealismo, da colagem e da montagem, da linguagem críptica, dos personagens à clef – enfim, das muitas formas do circunlóquio.

Logo surgiria Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, que, rejeitado por vários editores, acabaria saindo na Itália em 1974 e só um ano depois no Brasil, para ser apreendido e vetado em todo o território nacional. Integrado por cacos de prosa experimental de cunho variado mas sempre crítico, compõe um imenso mural em forma de mosaico.

Outro foi A Festa (1976), de Ivan Ângelo, em que um evento, invadido por baderneiros fascistas, termina apocalipticamente em incêndio. No mesmo ano saiu Quatro Olhos (1976), de Renato Pompeu, cujo protagonista, preso e torturado como o autor, fala de um manuscrito que se extraviou e do qual rememora frangalhos. Escrito extramuros é Maíra (1976), de Darcy Ribeiro, que traz para a épica o debate sobre a condição dos índios na sociedade brasileira.

Os romances da saga da esquerda, numerosos e relevantes, aos poucos cederam o passo ao memorialismo e à biografia.

O memorialismo, literatura típica de velhos, de repente passa a ser feito por jovens que antes dos 30 anos já têm reminiscências terríveis para contar. Embora leve mais de dez anos para aparecer, é consequência direta de 64. A pressão do totalitarismo acuou rapazes e moças no rumo das armas, assassinou-os, seviciou-os, fez deles clandestinos e desenraizados. O memorialismo resultante, que tem a peculiaridade de ser feito por jovens num gênero típico da velhice, não terminou até hoje.

Entre os primeiros, Renato Tapajós, que, trancafiado na cadeia por cinco anos, publicou Em Câmara Lenta (1977) e foi preso de novo, por causa do livro, até então nem punido, nem interditado, mas que o seria após a segunda detenção. Carro-chefe logo se tornou O Que é Isso, Companheiro?, de Fernando Gabeira (1979), relato em primeira mão de uma proeza espetacular: o sequestro de um embaixador norte-americano. Em seguida, surgiu Os Carbonários (1980), de Alfredo Sirkis, que estreou no ativismo rebelde ainda adolescente de colégio, dali passando à guerrilha. Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado federal Rubens Paiva, um dos mais célebres “desaparecidos” do regime, publicou Feliz Ano Velho (1982). Pela quantidade e pelo interesse, esse memorialismo dos jovens é fato único em nosso panorama.

Uma boa janela tanto para 1964 quanto para a saga da esquerda anterior ao período têm sido as biografias de militantes, que não cessam de se multiplicar, havendo muitas em progresso nesse momento. Pedem menção as de Olga Benário Prestes e de Patrícia Galvão, ou Pagu – ambas alvo da sanha da ditadura Vargas, mas com suas histórias só reveladas no pós-64 –, Iara Iavelberg, Marighella (que acaba de ganhar o prêmio Casa de Las Américas), Joaquim Câmara Ferreira, Lamarca, Pedro Pomar, Mário Alves, Luiz Carlos Prestes, Wladimir Herzog, Gregório Bezerra, Helenira Resende, João Amazonas, Eduardo Leite, o Bacuri. E estratégicas por devassarem a truculência das masmorras e das almas tenebrosas, as do cabo Anselmo e do delegado Fleury. Enriquecem o acervo as de dom Helder Câmara e de Sobral Pinto, bem como a autobiografia de dom Paulo Evaristo Arns.

O Cinema Novo, iniciado ainda nos tempos de JK, foi atingido em cheio pelo golpe. Fase de maior fastígio a que a produção brasileira já aspirou, obteve, em raro lance, reconhecimento no exterior. Culminou no festival de Cannes do ano de 1964, justamente, quando foram exibidos Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Depois dessa data, e até o AI-5, nosso cinema passaria a participar abertamente da discussão sobre o despotismo e os caminhos para confrontá-lo. É o que predomina tanto em Os Fuzis (1964), de Rui Guerra, premiado no festival de Berlim, quanto em Terra em Transe (1966) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1968), este premiado no festival de Cannes, ambos de Glauber Rocha. A catástrofe que foi o golpe teve um claro resultado: mais de uma década se passaria até que um filme brasileiro ganhasse prêmios de novo.

Por sua vez, o teatro conheceu a eclosão de uma dramaturgia nacional e altamente politizada, apanágio do Arena e do Oficina.

No Arena, liderado por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, o primeiro sucesso foi Eles Não Usam Black-Tie (1958), crônica de uma greve operária. Daí em diante, contou com um êxito atrás do outro, com peças recém-escritas em seu ateliê de dramaturgia. Após o golpe de 64, criou uma linha de shows musicais de recorte libertário, constituindo um repertório original por sua concepção. Arena Conta Zumbi,Arena Conta Tiradentes, Castro Alves Pede Passagem gerariam uma leva de espetáculos na mesma linha, como Opinião e Liberdade, Liberdade, só que em outros teatros.

No Oficina, entre as várias realizações de José Celso Martinez Corrêa distinguem-se O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, e  Roda-Viva, de Chico Buarque, estreias brilhantes e inventivas. Acrescente-se Galileu Galilei, de Brecht, falando de um cientista constrangido a abjurar de suas ideias sob pena de ser questionado pela Inquisição.

Duas obras, todavia, ambas de inspiração popular e sertaneja, alheias a esses teatros e disseminadas por amadores estudantes, tiveram outros destinos. Uma delas, O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi a peça mais divulgada no país em toda a década. A outra, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto, encenada pelo Tuca de São Paulo, com música de Chico Buarque, ganharia o prêmio do festival de Nancy, na França, em 1966.

As artes visuais também reagiriam à ingerência do golpe de 64. Os artistas engrossariam as fileiras da oposição e organizariam Opinião 65, a mostra coletiva carioca antiditatorial que marcou época. Na continuação, haveria o Mês de Arte Pública (1968), realizado ao ar livre no Aterro do Flamengo, no Rio. Um arroubo de obscurantismo negaria licença para a exposição dos artistas brasileiros selecionados para a VI Bienal de Paris, programada para o Museu de Arte Moderna do Rio, no ano seguinte. A Associação Brasileira de Críticos de Arte, presidida por Mário Pedrosa, protestou oficialmente, enquanto se convocava o boicote internacional à próxima Bienal de São Paulo.

Enquanto isso se passa nessas artes, o golpe de 64 recai em cheio sobre a bossa nova. Intimista, de temática romântica e hedonista, bem “carioca zona sul”, as agruras do novo regime a fariam desgarrar-se à força do minimalismo de seu paradigma.

Se o teatro se desmantelava, o cinema perdia o rumo e a literatura ia para a gaveta, já a música popular conheceria o apogeu, fielmente acompanhando os matizes das várias fases que a insurgência atravessaria. Foi um período em que a canção e os compositores se encastelaram em trincheira de contestação, e sofreram as consequências de sua postura, retribuída com censura, perseguição, cadeia, banimento.

A resistência que se expressa na canção tem várias faces. Sem deixar passar muito tempo, Chico Buarque, em Sonho de um Carnaval (1965), utilizaria a velha metáfora sambística do contraste entre a euforia fugaz do carnaval e o luto subsequente da Quarta-Feira de Cinzas, para falar do golpe. Seguem-se, desse autor, vinte anos de uma obra de inquebrantável dissidência.

Outra face é a da propaganda da luta armada, que se avizinhava. O mais impressionante dentre esses brados de rebeldia é Carcará (“Pega, mata e come/ mais coragem do que homem”), de João do Valle, sucesso sem igual em 1965 e nos anos imediatos, divulgado país afora pelo show Opinião. Em Viola Enluarada, de Marcos e Paulo Sérgio Valle (1967), a reversibilidade entre, de um lado, cantar, e de outro, pegar em armas, é explícita: “A mão que toca o violão/ se for preciso faz a guerra”.

Ainda mais uma face traz o compromisso do artista de levar alento aos oprimidos, anunciando a futura libertação. É disso que fala Porta-Estandarte (1966), de Geraldo Vandré. Com êxito cada vez maior, o compositor faria Disparada (1966), que avançava a proposta de violência e expunha didaticamente o processo de aquisição de uma consciência revolucionária: “Aprendi a dizer não”. Depois disso, Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores (1968) admoestava sem meias palavras os soldados. Doravante, essa canção se tornaria o hino cívico das manifestações coletivas. Após o AI-5 o próprio autor, execrado e caçado pelo Exército, seria forçado a emigrar.

O advento do tropicalismo em 1967-1968 traria mais água para o moinho, com outras canções levantando a bandeira da transgressão. Como as de Caetano Veloso: Enquanto Seu Lobo Não Vem; Divino Maravilhoso; Alegria, Alegria; Tropicália. E as de Gilberto Gil: Domingo no Parque, Geleia Geral, Miserere Nobis, e seu sarcástico adeus partindo para o desterro – Aquele Abraço.

Surgem inúmeras composições alusivas ao amordaçamento, dentre as quais sobressai uma do pior período, Pesadelo (1972), de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, verdadeira ode à tenacidade no inconformismo: “Você corta um verso, eu escrevo outro/ você me prende vivo, eu escapo morto”.

Essas canções exemplares subsistiram, como tantas outras afora as aqui examinadas, como marcos históricos de um momento candente, em resposta ao golpe e a suas consequências, que, como se viu, atingiram as diferentes artes de modos também variados.

As produções artísticas passadas em revista acima permanecem como monumento ao flagelo que é uma ditadura. É típico da tirania, afora a panóplia de males de que se faz portadora, baixar uma mortalha sobre as artes, sufocando a criação e acossando os impulsos da invenção. É só quando ela cessa e a liberdade volta a pairar sobre a sociedade civil que novamente reina o livre espírito de experimentação, necessário para que o arbítrio e a força bruta não prevaleçam.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH-USP

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