Comissão da Verdade

Perito contesta versão oficial para mortes de militantes da ALN durante a ditadura

Segundo perícia realizada em laudos, fotos e exumações de cinco guerrilheiros, eles não morreram durante 'trocas de tiros'

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Audiência conjunta da Comissão da Verdade estadual e nacional aborda casos de militantes da ALN

São Paulo – O perito da Polícia Civil de Brasília Mauro Yared, que colabora com as investigações da Comissão Nacional da Verdade, afirmou hoje (24) que cinco militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização armada que enfrentou a ditadura (1964-1985), não morreram em trocas de tiros, como consta das versões oficiais. “Não podemos concluir morte sob tortura, mas certamente as características não são de um confronto”, afirmou. As declarações foram dadas em audiência pública realizada em parceria pelas comissões nacional e estadual da verdade, na Assembleia Legislativa de São Paulo.

Yared afirmou que os cinco militantes cujos casos foram apresentados hoje – Alex de Paula Xavier Pereira, Gelson Reicher, Iuri Xavier Pereira, Ana Maria Nacinovic Corrêa e Marcos Nonato da Fonseca, todos mortos em 1972 – tinham outros ferimentos além dos causados por arma de fogo, como escoriações e pancadas. Também havia mais ferimentos a bala do que os descritos nos laudos de necrópsia.

No caso das mortes de Iuri, Ana Maria e Marcos, toda análise demonstra que não houve conflito e que eles não tinham condições para um enfrentamento. “Todos eles sofreram disparos paralisantes. Têm lesões diversas. As coincidências são muito grandes para que o evento da morte tenha ocorrido em situação de conflito. Quando há muitas coincidências, é improvável que o evento tenho sido aleatório”, observou.

Os disparos paralisantes citados pelo perito são os que atingem articulações, o tórax ou a coluna cervical, por exemplo, e impedem movimentos ou comprometem o equilíbrio. A versão oficial atesta que os três foram descobertos em um restaurante, em 14 de junho de 1972. Ao voltar ao carro, teriam sido surpreendidos por uma emboscada, contra a qual reagiram e morreram em confronto.

Ao descrever o caso de Iuri, o perito afirma que o laudo tem muitas inconsistências “À época, o laudo trouxe cinco ferimentos, que descreviam três projeteis. A exumação, pelo antropólogo argentino Luis Fonderbrider, encontrou nove feridas nos ossos, por entrada de projéteis de arma de fogo. Logo, não foram relatados 44% dos ferimentos, que são informações importantes para análise do crime. Isso muda a característica da morte. Também não foram citadas escoriações da face e de perfurações no tórax, estas que indicam que a pessoa não teria condições de reagir.”

O caso de Alex Xavier e Gelson Reicher é semelhante ao dos demais. “Os dois têm ferimentos na cabeça, na face, no tronco. Gelson tinha fraturas em todas as partes do corpo, o que torna impossível a reação descrita na versão oficial”, afirmou Yared.

Pela versão oficial, os dois ultrapassaram um farol vermelho e quase atropelaram uma senhora. Foram perseguidos por uma viatura e morreram durante troca de tiros.

No caso de Alex, as mesmas inconsistências no laudo foram verificadas. “Dos sete tiros, três são ascendentes e quatro descendentes. Logo, poderia estar caído, ao menos sentado. O microscópio eletrônico de varredura encontrou fragmentos de disparo a curta distância na cabeça. Pelas imagens é possível perceber que tem outras lesões além de balas e que não condizem com troca de tiros: pancada na cabeça, próximo aos dois olhos, escoriações, no queixo, nos ombros e peito”, disse o perito.

Com exceção de Ana Maria e Marcos, cujos corpos foram entregues às famílias em caixões lacrados, os militantes foram enterrados como indigentes no cemitério Dom Bosco, em Perus, onde dezenas de militantes também foram sepultados.

Segundo o também perito Pedro Luiz Lemos Cunha, os laudos do médico legista Isaac Abramovic, que atestou as mortes dos militantes da ALN, tem características comuns de ocultação das circunstâncias dos crimes. “Percebemos várias inconsistências nos laudos dele. Inclusive as características de como ele descrevia determinadas ocorrências”, afirmou.

As constatações corroboram com outras investigações que apontam para os procedimentos de execução usados por agentes do Estado no período ditatorial. O perito, porém, admite não ter como precisar se houve tortura. “Não temos como dizer isso. Só podemos definir que não foi característico de troca de tiros. Mas não podemos concluir algo inconsistente como feito no passado”, disse Yared.

Familiares têm documentos

A irmã mais nova de Alex e Iuri, Iara Xavier, representante da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, espera que os laudos periciais, acompanhados dos documentos que possui, não só mudem o registro da morte como levem à punição dos executores. “É importante que a Comissão da Verdade mostre que as pessoas não morreram como diz a versão oficial. E que se identifique e puna os agentes públicos que cometeram tais crimes”, afirmou.

Ela possui uma lista com os possíveis autores dos assassinatos. E cópias de documentos que registram a entrada em dependências como o DOI-Codi. “Iuri tem uma ficha de identificação, em estado cadavérico, do DOI-Codi, com descrição da miopia. Se ele morreu no combate, como se sabia que tinha miopia? Não é uma coisa visível”, afirmou. Na exumação, se constatou que o militante tinha levado um tiro na nuca, que não estava descrito no laudo do IML.

“Não houve só os assassinatos, houve a ocultação de cadáveres, enterrados como indigentes”, acrescentou Iara, afirmando que crimes de lesa-humanidade não podem ser anistiados.

Testemunha

O militante da ALN Francisco Carlos de Andrade, testemunha na Comissão da Verdade, contou que viu os corpos dos cinco militantes, em ocasiões distintas. Ele estava preso em uma dependência da Operação Bandeirante e foi levado para reconhecer corpos de dois militantes mortos.

“Um dia, eles (os militares) recebem uma comunicação e me colocam em uma C14 (veículo) e me levam a uma avenida. A pista tinha um canteiro central. Do outro lado havia um fusca branco, a porta do motorista estava aberta. O veículo tinha marcas de tiros na porta. Vidros quebrados. O Gelson estava caído para trás e tinha um tiro na testa. Alex estava no banco do carona, com uma jaqueta preta, caído sobre si mesmo, com a cabeça para baixo”, descreveu.

Em outra ocasião, ele viu os corpos de três militantes da ALN. “Na volta de um desses depoimentos, quando o veículo parou no pátio, tinha um portão de ferro que dava acesso às celas. Ali eu vi os três corpos. Os três vestidos. No pátio de onde funcionava a Oban, na rua Tutoia. Dava impressão de terem sido trazidos da rua. Estavam meio jogados, não foram colocados alinhados. Já estavam muito brancos, cadavéricos”, disse. Os corpos eram de Ana Maria, Iuri e Marcos.

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