comissão da verdade

Ex-escrivão admite que havia torturas no DOI-Codi e cita ‘visitas’ de empresários

Manuel Aurélio Lopes também afirmou que não via os itens descritos nos autos de exibição e apreensão – apenas recebia a lista, transcrevia e assinava. Para deputado, ele 'enrolou' na audiência

Márcia Yamamoto/Alesp

Manuel Aurélio Lopes, o “Pinheiro”, fez rodeios, mas admitiu que havia tortura e documentos não conferidos

São Paulo – Manuel Aurélio Lopes, em depoimento dado hoje (25) na Assembleia Legislativa de São Paulo, relatou ter sido testemunha de torturas durante o período da ditadura (1964-1985). Ex-escrivão da Delegacia Especial de Ordem Política e Social (Dops), cedido ao Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) em São Paulo, Lopes afirmou que viu presos políticos na chamada cadeira do dragão, uma estrutura metálica na qual o torturado era amarrado nu e recebia choques elétricos. Ele também declarou que viu representantes de empresas no local.

Lopes disse que nunca participou das sessões de tortura e que viu as ações por curiosidade, ou em momentos em que teve de passar recados urgentes a investigadores. O depoimento foi dado em audiência conjunta das comissões nacional e estadual da verdade.

Uma vez ou outra ia numa sala de interrogatório, porque precisava falar com o investigador. Eu vi o cara ficar equilibrado em duas latas de leite Ninho, segurando duas folhas de papel, e quando deixava cair uma folha o investigador reagia. Também vi aquela cadeira que sentava nu, com duas caixas de som na frente, que enlouquecia até o investigador, porque o som era muito alto, muito agudo”, contou.

Ele também admitiu que não via os materiais descritos nas apreensões nas quais ele assinava os autos. “Eu só recebia a lista de coisas e registrava. Uma ou duas vezes teve registro presencial”, afirmou. O auto de apreensão e exibição é o documento em que se relaciona os pertences recolhidos após uma ocorrência. Essa declaração permite questionar cenas e alegações oficiais de ocorrências, uma vez que nem os escrivães podiam verificar o material apreendido.

Outra afirmação relevante refere-se a possíveis “parcerias” entre empresas e órgãos de repressão, um foco das investigações das comissões da verdade. “O presidente da General Motors visitou a sede do Dops. A marmitinha que era recebida vinha do grupo Ultra, dono da Ultragaz. O comando do II Exército é que organizava”, comentou o ex-escrivão, que não soube precisar o ano da visita do dirigente da montadora, nem seu nome.

Lopes atuou no Dops de 1969 até a extinção do órgão, quando foi atuar na Divisão de Homicídios da Polícia Civil. Segundo ele, atuar no DOI-Codi era mais interessante financeiramente. “Todo policial que ia para o DOI-Codi ganhava um ‘presentinho’ todo mês, cerca de 25 cruzeiros. Não tinha relação com o número de presos. Nem era declarado no holerite. A caixinha era retirada na secretaria. Era o tesoureiro que entregava”, disse, sem explicar com clareza o motivo da “caixinha”.

Durante quase três horas de audiência, Lopes alternou momentos de pouca precisão e de ironia. Ao ser questionado sobre o assassinato de Arnaldo Cardoso Rocha, cujo laudo da morte foi contestado em audiência na manhã de hoje, no mesmo evento, o ex-escrivão fez rodeios.

Montaram a meu ver esse documento quatro dias mais tarde. Tem uma série de nuvens buscando escurecer. Onde será que isso foi. Será que foi acidente com JK? Com Tancredo? Precisa tomar cuidado com isso aí. O auto de exibição não era normal ser feito lá. Tudo indica que foi plantado com esse rapaz. ‘É subversivo, apaga isso aí’, diziam. Estou sendo o mais honesto possível aqui”, declarou.

Em outros momentos, ele dizia que não podia falar de nomes, nem de “certas coisas”. E por pelo menos três vezes fez referência a pessoas do tempo de DOI-Codi que poderiam questioná-lo. “Se encontra alguém na rua aí vai perguntar: ‘Por que é que você foi abrir o bico lá’? Mas se estamos aqui, não estamos ofendendo ninguém, somos todos brasileiros”, disse, sem citar nomes de quem poderia pressioná-lo.

Em um dos “lapsos”, que ele mesmo dizia ter, o ex-escrivão acabou revelando seu “nome de guerra” na repressão. “A gente ficava atirando no estande de tiro que tinha no subsolo. Eu fiz 96 pontos e o comandante fez 94. Ele me chamou e disse ‘Ô, Pinheiro, que que é isso aí?’”, contou. E logo em seguida emendou: “É, acabei falando meu nome aí”. Antes, ele havia dito que “as pessoas tinham outros nomes no DOI-Codi e eu também”, mas havia se negado a dizer qual era.

Arnaldo Cardoso Rocha, Francisco Emanuel Penteado e Francisco Seiko Okama foram oficialmente mortos na rua Caquito, próximo ao cemitério da Penha, zona leste paulistana, em 15 de março de 1973. Para familiares, no entanto, eles foram capturados, torturados e executados.

Segundo o presidente da Comissão da Verdade da Assembleia, deputado Adriano Diogo (PT), o ex-agente estava “enrolando” na audiência. “Ele sabe muito bem do que estamos falando e conhece detalhes. Ninguém vai trabalhar no DOI-Codi à toa. Ele não quer falar.”

Para Iara Xavier, representante da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, Lopes escondeu o que sabe. “O depoimento dele não é crível em grande parte. Ele logo falou de ‘caso da Penha’ e ‘rua Caquito’, quando falamos do Arnaldo, mas ninguém tinha citado o local. Depois ele disse que não soube nada do Arnaldo. Ele está ciente, mas não se dispôs a falar”, afirmou.

Mesmo assim, Iara viu avanços no depoimento. “Muitos têm se utilizado de atestados médicos para não depor. O outro ex-agente que devia vir hoje não veio. É um fato importante ele ter vindo. Poderia ter sido melhor, mas sempre surgem elementos que ajudam nas investigações.”