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‘Cracolândia’ troca Sufoco por Braços Abertos, mas há dúvidas sobre novo programa

Dois anos após repressão policial com vistas a privatização da região da Luz, em São Paulo, dependentes químicos deixam de ser criminosos e policiais dão lugar a assistentes sociais

Remoção de barracos na Rua Dino Bueno foi feita desde o começo do dia na região conhecida como 'cracolândia' <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>Foi permitido aos moradores levar parte dos pertences aos cinco hotéis para os quais foram levados <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>Após a remoção e a limpeza, a GCM ficará de plantão no local para evitar a montagem de novos barracos <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>IMG_2207.jpg <span></span>Muita coisa teve de ser deixada para trás pelos moradores, que aceitaram a mudança graças aos hotéis <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>A ideia da prefeitura é que os barracos deixem de ser parte do cenário da cracolândia <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>Dois anos após a Operação Sufoco, a Braços Abertos tenta ser marcada pelo diálogo com os moradores da região <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>A área passa por um processo de décadas de degradação e tráfico de drogas, e agora tenta reverter o quadro <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>Equipados com televisão e ventilador, quartos foram atrativo para que moradores aceitassem deixar a rua <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>IMG_7382.jpg <span></span>Para seguir no programa, os moradores têm de se dedicar a cursos e se esforçar para abandonar a dependência <span>(Danilo Ramos/RBA)</span>

São Paulo – “Vamos, seu Hélio, você não está se ajudando desse jeito.” A frase foi repetida várias vezes ao longo dos quase trinta minutos em que a assistente social Tuani Bessa tentou impedir que uma confusão maior fosse desencadeada hoje (15) na região conhecida como cracolândia, na Luz. Desde ontem a prefeitura está removendo uma favela instalada nas ruas Helvétia e Dino Bueno e Cleveland. Agitado, Hélio já havia se envolvido em outra briga pela manhã e perambulava desafiando outras pessoas. “Infelizmente, 90% do nosso trabalho é intermediar conflitos. Às vezes, isso até atrapalha desenvolver as outras políticas”, explica a assistente social.

Apesar da tensão pontual, toda a cena vista ontem e hoje na região, famosa pelo tráfico de drogas e pela degradação arquitetônica e imobiliária, era muito diferente da vista há dois anos, quando governo estadual e prefeitura aproveitaram o período de cidade mais vazia para promover a repressão de moradores e dependentes químicos. A Operação Sufoco, mais conhecida como Dor e Sofrimento, tentava abrir espaço para o processo de “revitalização” da região rebatizada pelo prefeito Gilberto Kassab (PSD) como Nova Luz, que seria privatizada e entregue à especulação imobiliária.

Desta vez, a confusão começou porque, depois de dizer que não iria retirar nada de seu barraco, Hélio discutiu com os funcionários da subprefeitura que desmontaram a casa de madeirite com seus pertences dentro. Foi preciso que Tuani conseguisse um carrinho emprestado de outro morador para transportar sacolas de roupa e outros objetos e depois o escoltasse até a tenda do projeto Braços Abertos para concluir seu cadastro, procedimento realizado por todos os que aderiram ao programa.

A operação prevê a hospedagem em um dos cinco hotéis conveniados da região, a contratação para serviço de varrição e zeladoria com carga de 4 horas diárias, mais duas de qualificação e salário de R$ 15 por dia de trabalho e a oferta de três refeições gratuitas – dois hotéis oferecem café da manhã; nos outros, todas as refeições serão realizadas no Bom Prato da Rua Dino Bueno. O serviço é do governo estadual, mas a prefeitura está pagando, através da ONG Brasil Gigante, cada prato servido.

O percurso poderia ter durado três minutos, mas se alongou por conta das inúmeras brigas que Hélio provocou. Outros moradores da região e usuários de crack tentaram alertá-lo para não “arrastar”, gíria correspondente a “prejudicar” na linguagem formal. Mas não adiantou. Com voz firme e às vezes com tom elevado, a assistente social precisou apartar brigas e pedir calma ao homenzarrão, que chegou a trocar socos com um rapaz que tomou as dores pelo atropelamento com a carroça de uma senhora – ela não se feriu. Foi preciso que guardas civis metropolitanos apartassem os dois. Mas, contrariando os conselhos de frequentadores da cracolândia, Tuani não desistiu e entregou Hélio ao cadastramento. “Eles também estão assustados. Para nós, isso aqui é rua, mas para eles é a casa deles”, explica.

Há dois anos, diversos grupamentos da Polícia Militar foram deslocados até a região para sufocar o consumo de drogas, resumidos em boletins eufóricos emitidos diariamente com atualizações sobre o número de abordagens e as quantidades apreendidas. Frequentadores da região eram impedidos de permanecer parados em via pública. À época, bombas de gás e golpes de cassetete foram desferidos contra uma maioria formada por dependentes de crack.

“Quando há diálogo, a aceitação é outra”, afirma a defensora pública Daniela Skromov, que cansou de ver cenas de repressão no mesmo local. Desta vez, no lugar de um tratamento de criminosos, a abordagem era feita a dependentes químicos e moradores de rua, sem que a Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar fossem chamadas a intervir – embora estivessem ali, ocupavam papel de coadjuvante, e não de protagonistas.

Dois anos depois da Operação Sufoco, sem ter obtido resultado algum, a administração municipal, agora sob o comando de Fernando Haddad (PT) e sem o projeto da Nova Luz como mote, realiza outra operação. “Isso não é uma ação isolada, é uma construção de seis meses. Tudo foi muito conversado”, afirmou a secretária Municipal de Assistência Social, Luciana Temer.

A dúvida, agora, é se os próximos passos da Braços Abertos vão seguir a promessa de tratar uma questão social como uma questão social. Para começar há uma falta de informações detalhadas sobre todo o projeto da prefeitura, que inclui abrigamento em hotéis da região, tratamento de saúde, qualificação profissional e emprego. “Claro que a eficiência disso precisa ser avaliada ao longo do tempo, para garantir que toda ela seja implementada com garantia de direitos, mas essa abordagem inicial é bem melhor do que o que já tivemos”, afirmou Skromov.

De fato, o diálogo realizado antes da remoção garantiu que a população de rua e dependentes de crack dessem um voto de confiança à prefeitura. Mas a expectativa é de que, finda a remoção dos barracos, comece a fase mais difícil. Recolhidos aos quartos de hotel, os participantes do programa terão de enfrentar uma série de desafios, que vão desde a dificuldade de cumprir regras em um espaço com regulamento até o desafio de lidar com dinheiro proveniente do trabalho e o vício.

“Esse dinheiro pode ser o céu e o inferno. Imagina o que eu vou fazer com esse dinheiro se eu não tiver cabeça?”, pondera Miguel Ramos, um dos beneficiários, que vive há 17 anos na rua e há 3 meses na favela. “Mas a minha disposição é aproveitar esse esquema para me fortalecer e sair daqui, sair dessa. O mais difícil vai ser isso aí de morar no hotel, com várias pessoas loucas, cheias de neuroses. Mas é a melhor parte também, ter uma caminha, um chuveirinho.”

A secretária de Assistência Social que os usuários de crack que ficam no chamado fluxo da cracolândia também serão incluídos em uma segunda etapa do programa Braços Abertos. Até o momento, o programa está concentrado em moradores de uma favela montada há três meses nas ruas Helvétia e Dino Bueno. “O pessoal do fluxo não está excluído. Nós estamos fazendo por etapas. Nós temos 400 vagas no programa. Estamos começando agora a conversar uma segunda etapa com as pessoas que estão nas ruas”, afirmou. Há um temor de que, depois que a favela for totalmente removida, aumente a repressão aos frequentadores da região, com foco nos usuários e não nos traficantes.

Após a ação pontual, a prefeitura garante que a Guarda Civil Metropolitana (GCM) seguirá permanentemente com trabalho de congelamento da área, ou seja, terão de evitar a montagem de barracas e colaborar nos flagrantes de tráfico de entorpecentes e outros delitos na região. Cerca de 30 homens farão varreduras a pé e com viaturas motorizadas. A relação com a GCM na cracolândia parece ser mais conflituosa do que com a Polícia Militar. Frequentadores da região afirmam sofrerem agressões.

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