Ação Afirmativa

Projeto sobre cotas em concursos públicos abre debate na Câmara e na Justiça

Tema pode trancar pauta do plenário. No CNJ, conselheiros passarão a ter subsídios para avaliar se órgão pode ou não permitir sistema semelhante

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Em concursos públicos mais qualificados ainda é baixa a presença de candidatos afrodescendentes

Brasília – O debate sobre políticas afirmativas referentes ao sistema de cotas tem tudo para voltar a tomar corpo no país a partir de 2014. Na Câmara dos Deputados, encontra-se desde novembro Projeto de Lei (PL) encaminhado pela presidenta Dilma Rousseff que reserva 20% das vagas oferecidas em concursos públicos do Executivo para afrodescendentes. Já no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), está próxima de ser concluída pesquisa realizada nos 91 tribunais brasileiros que traça uma espécie de radiografia de todos os servidores. Um dos objetivos do trabalho é estudar a possibilidade de regra semelhante no Judiciário, para negros e descendentes de indígenas.

No caso do CNJ, o resultado da pesquisa – intitulada Censo do Judiciário – está prevista para o próximo dia 13. Com os dados apurados, o órgão terá condições de concluir a avaliação de pedido feito por uma advogada do Amazonas, em 2012, para que o Judiciário passe a instituir cotas nos seus concursos, principalmente os de magistrados. Os conselheiros resolveram, ao discutir a matéria, descobrir antes o percentual de negros e índios existente nos tribunais e as posições que ocupam, para somente então decidir.

Já no tocante ao PL encaminhado pela presidenta Dilma Rousseff à Câmara, embora enviado em caráter de urgência, o texto ainda não foi apreciado em nenhuma das três comissões para os quais deveria tramitar. Por isso, passa a trancar a pauta de votações do Congresso a partir do dia 23.

A expectativa é de que as duas discussões – embora isoladas e em dois poderes – caminhem em ritmo semelhante, uma vez que ambas já contam com defensores e adversários fervorosos em debates que questionam temas como meritocracia, indicadores sociais e diversidade racial e cultural.

Segundo informações da Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa do Senado, que realizou audiência pública sobre o assunto, já existem programas diferentes de cotas, em concursos públicos ou serviços terceirizados, nos governos de quatro estados – RJ, PR, MS e RS – e em mais de 100 municípios do país. No Judiciário, por sua vez, poucos dias atrás o Tribunal Superior do Trabalho (TST) instituiu que um percentual de 10% das vagas na contratação de trabalhadores para os serviços terceirizados deve ser destinado aos negros.

Ao encaminhar o projeto que prevê cotas para os concursos do Executivo, a presidenta Dilma afirmou que a iniciativa tem “potencial transformador” e servirá de exemplo. O texto estabelece que o sistema deverá vigorar por um período de dez anos após a vigência da lei – tempo considerado necessário pelo Palácio do Planalto para que outros instrumentos previstos no Instituto da Igualdade Racial passem a ter impacto no país.

“Todos sabemos que o povo brasileiro tem na sua formação uma união de índios, negros, brancos e de comunidades tradicionais provenientes das mais diversas populações. Cada um de nós traz em si uma parte dessa união e só somos íntegros quando percebemos que a nossa história produziu uma nação imensa geograficamente, com uma grande diversidade”, argumentou Dilma Rousseff. De acordo com a presidenta, as cotas nos concursos poderão dar início a uma “mudança na composição racial dos servidores públicos federais, tornando-a representativa da composição da população brasileira”.

Essa opinião é contestada por servidores públicos e autoridades. “Permitir cotas para os negros terem melhor acesso à educação, nas escolas públicas e universidades, é algo válido e significativo para o país, mas não sei se isso vai funcionar da mesma forma em relação a concursos públicos”, afirmou o sociólogo, professor de cursinhos para concursos e analista legislativo do Senado Paulo Fontana, que é contrário à ideia.

A visão de Fontana é de que, nos concursos, há número menor de vagas em disputa, a maioria das pessoas que costumam submeter-se aos testes já fizeram curso superior e a questão, segundo ele, seria “mais de conhecimento e preparo dos candidatos”. “Não acho que essa seria a forma mais correta de garantir aos afrodescendentes mais espaço no Executivo, porque o concurso é uma questão de mérito pessoal de cada um”, ressaltou.

Da mesma forma pensa o hoje presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Carlos Alberto Reis de Paula. Reis de Paula, que acaba de instituir o sistema de cotas nos serviços terceirizados do tribunal, até bem pouco tempo foi conselheiro do CNJ e discutiu o assunto numa votação polêmica.

O ministro, que é negro, também acredita que o correto seria assegurar maior acesso à qualificação para que negros e indígenas possam concorrer em igualdade de condições nos concursos públicos. “A existência de cotas raciais para ingresso nas universidades assegura a qualificação para que todos possam pleitear um emprego público, mas a regra para o ingresso no serviço público é o concurso”, enfatizou, defendendo as normas dos concursos da forma como existem hoje.

A senadora Ana Rita (PT-ES), que preside a Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa do Senado, vê a medida necessária para o país. “A população afrodescendente quer e precisa ter acesso não apenas ao ensino de qualidade, mas também a emprego decente, com isonomia em todos os campos”, disse. No entendimento da senadora, “as desigualdades econômicas e sociais são persistentes e afetam especialmente a população afrodescendente, tanto é que do total de inscritos no cadastro único dos programas sociais do governo, 68,23% são pessoas negras”.

Poucas vagas

Conforme dados da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial com base no último Censo e em pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apesar dos negros e pardos representarem metade da população brasileira, ainda ocupam apenas 35% das vagas disponíveis nos cursos de graduação, 26% de mestrado e 22,3% de doutorado. Além disso, hoje, apenas 3,27% da população negra têm nível superior completo – percentuais que levaram à avaliação de que o sistema de cotas precisa ser ampliado.

“É grande o fosso entre negros e brancos no Brasil”, disparou o diretor da organização não-governamental Educação para Afrodescendentes e Carentes (Educafro), Frei David Santos. A entidade esteve este ano com a presidenta Dilma e também participou de audiência com o presidente do CNJ, ministro Joaquim Barbosa. Os dois encontros tiveram o mesmo motivo: pedir o andamento dos projetos. “A comunidade negra do país hoje tem como bandeira a luta pela aplicação do sistema de cotas em todos os setores no serviço público, com plena regulamentação do Estatuto da Igualdade Racial”, destacou.

Ele chamou a atenção, no entanto, para que as regras passem a ser melhor definidas. Citou como exemplo o Itamaraty, primeiro órgão público federal a adotar cotas em seus sistemas de seleção sem exigir a edição de uma nova lei, mas que aprovou o ingresso de um jovem loiro no percentual destinado às cotas.

‘Sem flexibilização’

A ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Luiza Bairros, considera que o PL encaminhado pelo Executivo à Câmara não acaba com a meritocracia nos concursos públicos, porque não haverá uma flexibilização de critérios para poder beneficiar os negros.

“A medida é necessária para acelerar a participação desta população nos lugares de prestígio do mercado de trabalho, mas as regras e exigências dos concursos continuarão as mesmas. As pessoas que vão entrar estarão sujeitas a todas as provas pedidas: teóricas, de títulos, a depender do caso, e também se submeterão a entrevistas”, acrescentou.

“As cotas nos concursos públicos são necessárias como um meio de acelerar a participação da população negra nos lugares de prestígio do mercado de trabalho. Para vocês terem uma ideia, no levantamento que foi feito pelo Ministério do Planejamento, entre 2004 e 2013, o ingresso de pessoas negras no serviço público variou de 22% a 29%, quase 30%. Isso significa que é uma taxa de ingresso muito inferior à participação dos negros no total da população brasileira, que, de acordo com o IBGE, já chega a 53%”, explicou a ministra.

Atualmente, o Governo Federal possui cerca de 540 mil servidores concursados em todo o país. Na interpretação de alguns constitucionalistas, não é preciso uma lei para aprovar a adoção de cotas no serviço público federal. Os que defendem esse entendimento acham que a própria Lei 12.288/2010, referente ao Estatuto da Igualdade Racial, já permite que o sistema seja iniciado por meio de decreto do governo.

Eles também acham que embasam essa possibilidade a decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou constitucionais cotas nas universidades públicas, em 2012, e a Convenção 111, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tem o Brasil como um dos seus países signatários.

“As convenções internacionais ganham força de lei depois de adotadas e a Convenção 111 da OIT diz que medidas especiais de proteção ao trabalho não são consideradas discriminações injustas”, colocou o professor de Direito Constitucional e ex-secretário de Justiça de São Paulo Hédio Silva Júnior.

Discussão antiga

As cotas tiveram início no país com a Lei 8.213/1991, que criou percentuais para contratação de pessoas portadoras de algum tipo de deficiência nas empresas da iniciativa privada. Na década de 2000, várias universidades aderiram aos sistemas de cotas raciais e sociais para ingresso dos alunos e, em 2011, o Ministério das Relações Exteriores adotou cotas para negros nos seus concursos para a diplomacia.

Mas o ponto chave da questão foi dado em agosto de 2012, quando a presidenta Dilma sancionou a lei de cotas nas universidades. Tais entidades têm até 2016 para reservar 50% das vagas de todos os cursos e turnos a estudantes que cursarem integralmente o ensino médio em escola pública. As vagas serão preenchidas pelos estudantes que se declararem pretos, pardos e indígenas em proporção igual à do último censo do IBGE.

“O que estamos fazendo é aquilo que se espera de uma sociedade democrática, que é abrir oportunidades para todos os seus cidadãos e cidadãs, independentemente da cor da pele ou de qualquer outra condição. O objetivo das cotas é passar um recado para a população negra: ‘não deixe que o racismo limite as suas expectativas de participação na sociedade brasileira’”, afirmou a ministra Luiza Bairros.