Ditadura

Para polícia, não há elementos que indiquem motivação política em ação contra ossadas

Delegado começa investigação tomando depoimento de funcionários, que não presenciaram arrombamento. Não há câmeras. Para militantes, caso é grave e deve ir além do Boletim de Ocorrência

Marlene Bergamo/Folhapress

Pichação foi uma das ações contra obra que dialoga com desaparecidos políticos

São Paulo – A Polícia Civil de São Paulo ainda não tem elementos para afirmar que os atos de vandalismo praticados na madrugada de ontem (3) no Cemitério do Araçá, na zona oeste da capital, possuam motivação política. E talvez nunca tenha. Não havia câmeras de vigilância ou guardas no local. O ponto de partida das investigações é o depoimento de funcionários da necrópole, mas informações preliminares dão conta de que nenhum deles presenciou a quebradeira. A assinatura deixada pelos agressores dificilmente poderá ajudar: mistura o símbolo do anarquismo com o número 13 e inscrições pouco óbvias. As imagens ainda não foram anexadas ao boletim de ocorrência.

“A denúncia diz respeito única e exclusivamente a dano ao patrimônio. É a única informação que temos”, afirma o delegado Marco Aurélio Batista, responsável pelo caso. A ocorrência foi registrada ainda no domingo no 91º Distrito Policial, no bairro de Pinheiros. A investigação, porém, foi transferida na manhã de hoje (4) para o 23º DP, em Perdizes, onde trabalha Batista. O delegado ainda está tomando contato com o assunto. “Por enquanto, não estamos trabalhando com nenhuma hipótese. Ainda não existe nada concreto para dizer se foi apenas vandalismo ou se foi vandalismo em razão das coisas que estavam no local, se foi algo direcionado para causar algum tipo de comoção.”

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A ação deixou basicamente quatro tipos de danos no Araçá. Dois deles não sugerem motivações políticas. “Pegaram o carrinho elétrico que usamos para transportar idosos que visitam o cemitério e jogaram tinta verde no para-brisa”, explica Antônio Francisco dos Santos, diretor de Cemitérios do Serviço Funerário Municipal. “Depois, depredaram estátuas de quatro túmulos: duas estátuas de mármore – uma delas de 1904, que veio da Itália – ficaram muito danificadas, e outras duas, de bronze, foram derrubadas no chão.” As agressões mais graves, porém, e que foram responsáveis pela repercussão do caso, se dirigiram ao Ossário Geral.

O lugar armazena 1.046 ossadas encontradas em 1990 nas valas clandestinas do Cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona norte de São Paulo. Há fortes indícios de que as covas anônimas tenham sido utilizadas pelos órgãos de repressão da ditadura para enterrar corpos de desaparecidos políticos durante o regime militar (1964-1985). Após uma longa e frustrada estadia pelos laboratórios da Universidade de Campinas (Unicamp), onde deveriam ter sido identificados, os ossos foram levados em 2002 para o Cemitério do Araçá. “Estão aguardando perícias forenses há vinte e três anos”, lamenta o secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Rogério Sottili.

Para alívio dos familiares das pessoas desaparecidas durante a ditadura – e que ainda esperam o dia em que receberão a notícia de que os restos de seus parentes finalmente foram encontrados – a ação de ontem não atingiu as ossadas de Perus. Foram outros falecidos que sofreram com a profanação. Três sacos de ossos – ou seja, três corpos – foram retirados da gaveta onde se encontravam e espalhados pelos corredores. “É um vandalismo à memória dos mortos. É tão bruto isso”, lamenta a psicanalista Maria Rita Kehl, membro da Comissão Nacional da Verdade. “Esse gesto mostra que tipo de forças estão à solta por aí.”

Além do carrinho, dos túmulos e das ossadas, os vândalos atentaram contra a instalação Penetrável Genet/Experiência Araçá, dos artistas Celso Sim e Ana Ferrari, que estava dentro do Ossário Geral. “Estão dizendo que é uma obra sobre os desaparecidos políticos. Mas não é”, explica o autor. “A obra dialoga com o tema dos desaparecidos durante a ditadura, mas na realidade fala sobre a morte, sobre a ressurreição do homem, da identidade e da arte. Nosso projeto não previa o tema dos desaparecimentos políticos, mas acabou sendo atravessado por ele. Então, incorporamos o assunto.”

Uma das atrações da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, a instalação consistia em cinco monólitos de mármore com mais de 2 metros de altura e 700 quilos cada um. Antes da depredação, estavam dispostos em forma de labirinto. “Em cada face das peças seria projetado um filme de dez minutos que misturam cenas sobre diversos tipos de rituais de adeus”, revela Celso Sim. “Há imagens de velórios dentro do Teatro Oficina, cerimônias tradicionais e também a ausência do ritual – e aqui fazemos o paralelo com as valas clandestinas. Quando você enterra alguém clandestinamente, você impede o ritual e esconde a identidade da pessoa: você está desaparecendo com a pessoa.”

Outro fato corrobora com a versão de que houve motivações políticas para o vandalismo. A violação do Ossário Geral e da obra de Celso Sim e Ana Ferrari aconteceu horas depois de uma cerimônia ecumênica realizada no Cemitério do Araçá para lembrar os mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura. O evento inter-religioso ocorre anualmente por iniciativa dos parentes das vítimas do regime. Neste ano, em parte por causa da obra Penetrável Genet, instalada no Ossário, os organizadores da cerimônia acharam por bem fazê-la no Araçá.

“Foi um ato muito tranquilo. Não teve nada de agressivo ou estridente. Foi uma coisa religiosa, zen”, revela o deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”. O parlamentar esteve na cerimônia. “Não foi discursivo, não xingou ninguém, foi muito respeitoso, de acordo com o Dia de Finados. Os familiares falaram, rezaram, não teve nada de esquerdista ou comunista.” Por isso, Adriano Diogo, ele mesmo uma vítima da ditadura, classifica a depredação como um “tiro pelas costas”.

‘Foi a primeira vez’

“Não dá para dizer que foi coincidência”, opina Ivan Seixas, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) de São Paulo, cujo pai foi assassinado pelo regime. Ainda mais porque atos de vandalismo desse tipo dificilmente ocorrem nos cemitérios da capital. “Normalmente, eles roubam placas e vasos de bronze. Isso é recorrente e estamos sempre fazendo boletins de ocorrência”, explica Antônio Francisco dos Santos, do Serviço Funerário Municipal. “E é a primeira vez que violam o Ossário Geral. Isso nunca tinha acontecido.”

Santos explica que não existem câmeras de vigilância no Cemitério do Araçá porque não há iluminação noturna no local. E que a segurança dos túmulos é feita pela Guarda Civil Metropolitana (GCM). “Eles fazem ronda, mas não há efetivo para fazer a segurança 24 horas dos cemitérios da cidade.” O funcionário da prefeitura lembra ainda que as dimensões do Araçá dificultam sua inviolabilidade. “São mais de 40 mil jazigos, distribuídos numa área de 222 mil metros quadrados.”

Enquanto as investigações da polícia civil não deslancham, o secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania afirma que fez contatos com o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, José Carlos Dias, para pedir ajuda da Polícia Federal nos trabalhos de elucidação do caso. “Se houver motivo para ir à esfera federal, irá. Mas, por enquanto, o caso está comigo”, afirma o delegado do 23º DP, Marco Aurélio Batista, que insiste: “Ainda é cedo para direcionar a investigação. Quem provoca esse tipo de dano muitas vezes está querendo chamar a atenção. Então, não dá para saber se eles realmente queriam passar algum recado”.

O secretário Rogério Sottili também conversou com a ministra da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, Maria do Rosário, pedindo empenho especial para acelerar o trabalho de identificação das ossadas de Perus, que estão no Araçá. “O que aconteceu é uma confirmação daquilo que todos nós já sabíamos: esse é um tema que incomoda muita gente, e o que tem sido feito no Brasil para reconstruir essa história não contada sofre com a reação de setores comprometidos com o regime de exceção que o país viveu”, lamenta.

Impossibilitados de inaugurar sua exposição ontem, como estava previsto, Celso Sim e Ana Ferrari abrirão sua obra ao público amanhã (5) ao meio-dia. Espera-se a presença de vítimas e familiares de mortos e desaparecidos durante a ditadura, num ato de desagravo ao vandalismo sofrido pelos monólitos de mármore. Pouquíssimas pessoas tiveram a oportunidade de contemplar a instalação antes do ataque. Serão as únicas. Não houve tempo para reparar as peças. E os artistas tampouco tinham essa intenção.

“As pessoas verão uma obra violentada”, adianta Celso Sim, explicando que os filmes, agora, serão projetados sobre as placas de mármore despedaçadas no chão. “Os estilhaços gritam. Sem dúvida, essa violência retrata o tema da obra. Ultimamente, a palavra vandalismo virou Coca-Cola, está sendo usada para qualquer coisa. Não sei dizer se foi vandalismo, mas o recado foi bem claro. Eu esperava alguma reação à obra, mas não imaginava que fosse tão violenta, tão fascista.”

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