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Rosa Cardoso se diz otimista sobre julgamento de agentes da ditadura

Advogada diz que trabalho da Comissão Nacional da Verdade ajuda a resgatar memória que geralmente precede tomada de consciência e cobrança social por condenação de violadores

Arquivo CNV

Rosa entende que a recente manifestação de Rodrigo Janot é importante para seguir pressionando por justiça

São Paulo – A advogada Rosa Cardoso, integrante da Comissão Nacional da Verdade, afirmou hoje (30) acreditar que o Brasil vive um bom momento quanto à possibilidade de julgar e condenar agentes do Estado que cometeram violações de direitos humanos durante a ditadura (1964-85). “A política sempre reserva surpresas, mas em princípio a luta por justiça sucede depois de uma luta por memória. De socialização dessas memórias. No Brasil não temos nenhuma segurança de que a luta por judicialização vai funcionar, mas vejo nesse momento um cenário positivo”, argumentou, durante debate na Assembleia Legislativa de São Paulo.

Rosa mencionou o recente parecer do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, favorável a que a Lei de Anistia não valha para crimes de lesa-humanidade, o que deixa aberto o caminho para a punição de torturadores e sequestradores a serviço do regime. Mais tarde, em conversa com a RBA, recordou que há setores do Ministério Público que já há alguns anos trabalham com a ideia de que o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da legislação aprovada pelo Congresso ainda durante o período autoritário não veda a possibilidade de processar estes agentes. “Acho que é um avanço muito grande pelo lugar que ele ocupa, mas vejo também que esse movimento no sentido da punição, da judicialização dos casos em que houve crimes de lesa-humanidade já é uma posição importante dentro do Ministério Público.”

Ao avaliar um pedido de extradição da Argentina para o ex-inspetor da Polícia Federal Manuel Alfredo Montenegro, Janot encampou a doutrina mais difundida no direito internacional a respeito dos crimes de lesa-humanidade. O procurador-geral entende que não cabe a ideia de prescrição destas violações, como defendia seu antecessor, Roberto Gurgel, e como avaliou o STF ao julgar a Lei de Anistia, em 2010. “A imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade constitui norma jurídica imperativa, tanto de caráter consuetudinário quanto de caráter principiológico, do direito internacional dos direitos humanos”, argumentou, na primeira manifestação do ocupante do cargo máximo do Ministério Público contrária à impunidade de agentes da ditadura.

A fala dele animou movimentos de defesa dos direitos humanos, que esperam que o Supremo julgue rapidamente os recursos apresentados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A mudança de composição do STF nos últimos três anos e a condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana em dezembro de 2010, justamente por não punir os crimes cometidos durante o período autoritário, são fatores positivos para quem aposta em um novo posicionamento dos ministros, favorável ao julgamento e à condenação.

Enquanto isso, procuradores vêm testando as instâncias inferiores do Judiciário com a apresentação de uma série de ações que defendem que a sentença da Corte se sobrepõe à do STF, e que o crime de desaparecimento de pessoas não prescreve, do ponto de vista penal, enquanto não apareçam provas da morte da vítima.

Em São Paulo, a Justiça Federal toma em dezembro depoimentos de testemunhas do caso do corretor de valores e ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, preso em junho de 1971 e visto pela última vez em 1973. Trata-se de uma ação importante por envolver o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante na capital paulista do DOI-Codi, um dos principais centros de tortura e morte da ditadura.

“Me perdoem se sou otimista, mas quero participar dessa luta com otimismo”, justificou Rosa Cardoso. “Não sei se teremos os 60 militares que o Chile levou à prisão, mas sei que a família Teles tem lutado até as últimas consequências para levar os torturadores à prisão”, completou, em referência à ação movida pela família Almeida Teles no âmbito civil, a primeira a obter sentença de reconhecimento do Estado de que Ustra foi um torturador.

Para a advogada, o trabalho de apuração e memória criado em torno da Comissão da Verdade por legislativos estaduais e municipais, entidades da sociedade civil e organizações de classe tem ajudado a fomentar este debate. “Do ponto de vista de número se amplia essa rede, tem-se um conhecimento maior do que aconteceu durante a ditadura. Aqui tivemos também lugares de extermínio e de concentração de presos. O conhecimento desses fatos vai levando à consciência de que uma forma de evitar a repetição é que a sociedade diga que houve um crime que não está protegido pela prescrição e que deve ser punido.”

Campos de concentração

O evento de hoje foi organizado pela Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva para marcar o lançamento do livro Poder e Desaparecimento: Os Campos de Concentração na Argentina (editora Boitempo), da cientista política Pilar Calveiro. A autora, presa em maio de 1977 pela ditadura naquele país, recordou que as tentativas de frear processos de transição buscam “calcificar” no passado questões que dizem respeito ao presente. “A ideia de que o julgamento é um perigo para a democracia se mostra absolutamente falsa”, afirmou. “Na Argentina não caiu o país.”

A última ditadura argentina, que deixou 30 mil vítimas, chegou ao fim em 1983 com um processo de transição diferente do brasileiro. A deterioração do regime teve início no ano anterior, com a Guerra das Malvinas, contra a Inglaterra. Convocada na tentativa de criar unidade social em favor do governo autoritário, acabou se transformando em um fator de desgaste à medida que a derrota militar se tornava acachapante e que se fazia mais clara a pilhagem do Estado na reta final do regime.

Entre outros fatores, isso garantiu que já durante as eleições presidenciais o debate sobre o que fazer com as violações de direitos humanos ocorridas ao longo daqueles sete anos se tornasse uma questão central entre os candidatos, e o titubeio do postulante peronista foi uma questão decisiva para garantir a vitória de Raúl Alfonsín, da União Cívica Radical, que se comprometeu a resgatar a memória do passado e garantir a punição dos torturadores. O primeiro passo veio em 1984, com a criação da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), equivalente à Comissão da Verdade brasileira, criada quase 30 anos mais tarde. O segundo se deu com o julgamento dos comandantes do regime, em 1985.

Já naquele momento a sociedade argentina tomou contato com as atrocidades cometidas nos campos de concentração, memória coletiva que só agora vai sendo resgatada no Brasil. Mais tarde, durante o governo menemista, deu-se anistia aos militares, barreira que começou a ser derrubada em 2001 com a sentença do juiz Gabriel Cavallo no caso do sequestro do casal José Liborio Poblete Roa e Gertrudes Hlaczik. Mais tarde houve uma decisão do Poder Executivo, encabeçado pelo presidente Néstor Kirchner, de impulsionar os julgamentos mediante a revogação das leis Obediência Devida e Ponto Final, aprovadas pelo Legislativo no final do governo Alfonsín na tentativa de interromper investigação e punição de violadores de direitos humanos.

“Para abrir processos de compreensão coletivos podemos estabelecer novos acordos em nossa sociedade olhando para o futuro”, afirmou Pilar Calveiro. “E justamente os julgamentos têm a ver com o presente. O presente que, ao romper a impunidade, rompe a autorização do Estado para cometer delitos de lesa-humanidade. Do que se trata é justamente, olhando o futuro, lembrar no nosso presente que coisas nossos Estados estão dispostos a permitir ou não, que coisas nossa sociedade está disposta a permitir ou não.”

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