Debate

Decisões sobre ocupações na USP reforçam parcialidade da Justiça

Enquanto juiz disse que preferência pelo uso da força prejudica democracia, juíza manifestou que ocupação que afeta sociedade não deve ser aceita. Para professor, tendência são decisões conservadoras

Filipe Delia / Jornal do Campus

Assembleia aprova manutenção da ocupação da reitoria da USP: prática democrática desperta visões diferenciadas de justiça

São Paulo – Duas decisões contraditórias, proferidas por tribunais paulistas em 24 horas, nas últimas quarta e quinta-feiras, dias 9 e 10 de outubro, reforçam as evidências de que a Justiça, ao contrário do que muita gente acredita, não é imparcial.

Na quarta-feira, o juiz Adriano Laroca, da 12ª Vara da Fazenda Pública da Capital, indeferiu liminar de reintegração de posse da Reitoria da USP, na zona oeste de São Paulo, autorizando a permanência de estudantes e funcionários no prédio. O local está ocupado desde 1º de outubro.

Na quinta, a juíza Carmen Teijeiro e Oliveira, da 5ª Vara da Fazenda Pública da Capital, deferiu pedido semelhante, também movido pela universidade, só que contra estudantes que no último dia 2 se instalaram na sede da diretoria da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each), no campus da zona leste.

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Apesar de serem casos muito parecidos, os juízes agiram de maneira bastante diferente. E não apenas em suas resoluções: a argumentação utilizada por um e outra para embasá-las é diametralmente oposta. Até mesmo conflitante.

“Para quem não está no mundo jurídico, pode parecer uma coisa maluca. As pessoas podem se espantar. Mas cada magistrado é independente para decidir da maneira que quiser, de acordo com sua interpretação da legislação vigente”, argumenta a professora de Direito Administrativo da USP, Odete Medauar.

“Cada juiz tem suas concepções pessoais, e é difícil que não transfira essas concepções para suas decisões”, reconhece a docente. “Embora tenha de agir de maneira imparcial, não podemos dizer que exista imparcialidade pura.”

Raridade

Indeferir uma liminar de reintegração de posse, como fez Adriano Laroca, é uma raridade no estado de São Paulo – mesmo em se tratando de imóveis ocupados por razões políticas. Tampouco tem importado tanto para a justiça paulista se o alvo da manifestação está nas ruas ou dentro de um campus universitário. O despejo pode tardar, mas sempre vem.

A Reitoria da USP já fora ocupada em 2007 e 2011. Em ambas ocasiões, a administração da universidade entrou na justiça com pedido de reintegração de posse. E conseguiu. Como consequência, a tropa de choque da PM invadiu o prédio e desalojou os manifestantes. Da segunda vez, com mais violência que na primeira.

Agora foi diferente. Após uma audiência de conciliação, realizada na terça-feira (8), e que não chegou a nenhum acordo, Laroca entendeu que o reitor da USP, João Grandino Rodas, tem se recusado repetidamente a dialogar com os estudantes e funcionários sobre a democratização da universidade – razão de ser do protesto.

Apesar de serem maioria entre a comunidade acadêmica, alunos e trabalhadores têm pouco peso no processo decisório da USP. E são categorias praticamente irrelevantes na escolha do reitor. O administrador da universidade é definido indiretamente pelo Conselho Universitário, que elabora uma lista com três nomes e a submete à preferência do governador.

A preponderância dos professores na definição dos rumos da USP incomoda. Outra fonte de insatisfação é o domínio de indicações políticas na formação do Conselho Universitário, que, além de eleger a lista tríplice para a Reitoria, também é quem dá a palavra final sobre as questões mais importantes da comunidade acadêmica.

Contexto

O estopim para a ocupação da Reitoria em 1º de outubro foi a recusa da administração da USP em abrir à participação de todos os estudantes, professores e funcionários as discussões sobre a democratização da universidade, que seriam iniciadas pelo Conselho Universitário. Os ocupantes alegam que até mesmo alguns conselheiros foram impedidos de assistir aos debates.

Laroca considerou em sua decisão a indisposição do reitor ao diálogo e o contexto político da universidade quando mencionou a “ausência total de disposição política da Reitoria em iniciar um debate democrático a respeito de diversos temas sensíveis e relevantes à melhoria da própria qualidade da universidade”.

O juiz lembrou ainda que as regras para escolha do reitor da USP datam dos tempos da ditadura e, à medida que permanecem intocadas, apenas reforçam a tradição autoritária da sociedade brasileira. Essa tradição se expressaria, no caso, pela “clara opção do uso da força” pela universidade, “ao invés do debate democrático”.

Laroca lembrou ainda que a intervenção policial colocaria em risco a integridade física dos estudantes e a imagem da instituição – o que, argumentou, seria desnecessário, uma vez os danos ao patrimônio da USP causados pelos ocupantes foram pequenos. “Há apenas notícias de danos na porta de entrada.”

Por fim, o magistrado da 12ª Vara da Fazenda Pública da Capital disse que não deve ser papel do Judiciário imiscuir-se em conflitos provocados pela incompetência dos demais Poderes da República. Para Laroca, há um hábito antidemocrático em negar os problemas sociais, escondendo-os sob o “manto protetor” do direito à propriedade.

Mérito

Ao julgar pedido de reintegração de posse da diretoria da Each, também conhecida como USP Leste, a juíza Carmen Teijeiro e Oliveira foi bem mais sucinta. Ao contrário do colega, preferiu “não adentrar no mérito da justiça ou injustiça da pretensão dos estudantes”. Disse que eles deveriam procurar o Judiciário para dirimir suas diferenças. E deferiu a liminar em benefício da universidade.

Os estudantes resolveram ocupar a diretoria da USP Leste em solidariedade aos colegas que haviam tomado a Reitoria da universidade no dia anterior. E também para protestar contra a contaminação do solo no campus por gás metano, razão que havia motivado o início de uma greve em 11 de setembro. Outra reivindicação é o afastamento do diretor e do vice-diretor da unidade.

“Não obstante, além de não albergada pela legislação, reputo não existir justificativa plausível para qualquer espécie de invasão e ocupação de prédios públicos, notadamente como a que se verifica no caso em exame, prejudicando o funcionamento da universidade, bem como impedindo servidores de cumprirem a sua carga horária, outros estudantes de frequentar regularmente as aulas e, quiçá, gerando depredação do patrimônio público”, escreveu a juíza.

Laroca reconhece que as ocupações fazem parte da democracia. “A ocupação de bem público como forma de luta democrática, para deixar de ter legitimidade, precisa causar mais ônus do que benefícios à universidade e, em última instancia, à sociedade”, diz, citando a Constituição. “Nenhuma luta social que não cause qualquer transtorno, alteração da normalidade, não tem força de pressão e, portanto, sequer poderia se caracterizar como tal.”

Por outro lado, Carmen Teijeiro e Oliveira atesta que ocupações não encontram cabida em governos democráticos. “Esta conduta, indubitavelmente, passa ao largo do conceito de democracia, regime muitas vezes equivocadamente interpretado como sendo aquele em que a cada um é dado fazer o que bem entende, de acordo com os seus próprios interesses.”

Conceitos

Fica claro que concepções radicalmente distintas sobre democracia, sobre o papel do Judiciário e sobre a preponderância de determinados direitos constitucionais moldaram as decisões de cada magistrado. E isso apesar de termos, no Brasil, apenas uma Constituição e apenas uma legislação sobre direito público.

“Depende da linha teórica que você segue”, explica o professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Pedro Serrano. “A linha positivista-analítica, do alemão Hans Kelsen, determina que existem várias interpretações possíveis para as normas jurídicas e que cabe ao juiz escolher qual aplicação lhe parece mais correta.”

“Outra linha, defendida pelo filósofo norte-americano Ronald Dworkin, prega o contrário disso”, continua Serrano. “Quando há um caso que admite várias interpretações, ele recomenda que o juiz faça suas ponderações não baseado em seus valores pessoais, mas nos valores da Constituição. Portanto, entre as decisões possíveis, sempre haverá uma, mais próxima à Carta, que seria mais correta.”

No caso da ocupação da Reitoria da USP e da diretoria da USP Leste, as interpretações possíveis, que acabaram por indeferir e deferir a reintegração de posse, passaram pela interpretação sobre qual direito deveria preponderar: se o direito de manifestação e expressão dos estudantes, ou o direito de propriedade da universidade sobre seus prédios. Ambos estão previstos na Lei Maior do país.

“Cada um ponderou os valores constitucionais de forma diferente, dando-lhes preponderância distinta”, afirma Serrano, explicando que a juíza Carmen Teijeiro e Oliveira preferiu defender a propriedade, enquanto Adriano Laroca concluiu que era mais importante resguardar o direito de manifestação. “Cada princípio constitucional defende uma virtude humana. E as virtudes humanas estão sempre em conflito.”

Caso a caso

O professor da PUC-SP argumenta que a valorização maior ou menor de cada preceito defendido pela Constituição varia de caso a caso. No que se refere às ocupações na USP, Serrano defende que a decisão mais adequada seria rechaçar o uso da força policial – como fez Laroca ao indeferir a reintegração de posse na Reitoria. Por uma razão simples: não houve dano significativo ao prédio.

“A finalidade dos ocupantes não é permanecer e tomar para si o patrimônio público, mas sim manifestar seu pensamento. Nessa situação, a liberdade de expressão deve preponderar sobre o direito à propriedade”, considera. “Além disso, trata-se de estudantes que estão dentro da universidade. No campus, essa liberdade deve ser ainda mais valorizada. Não pode haver pensamento sem crítica e sem expressão.”

A professora Odete Medauar discorda. A jurista da USP acredita que é a juíza Carmen Teijeiro quem acertou em sua decisão. E condena o magistrado da 12ª Vara da Fazenda Pública da Capital por ter se baseado, segundo ela, em elementos não jurídicos que beiram a ideologia e o achismo. “Para ele, democracia é invadir bens públicos”, resume.

“O prédio da Reitoria existe para sediar o funcionamento do setor administrativo da universidade, e não para ser ocupado por manifestantes. Portanto, a ocupação é ilegal. Pois não atende à finalidade do edifício”, argumenta, dizendo que o juiz exagerou ao não conceder liminar de reintegração de posse. “Ele está admitindo o uso da violência.”

O assessor jurídico do Ministério Público Federal em São Paulo, Erival Oliveira, endossa essa visão. Também professor da Faculdade de Direito Damásio Educacional, Oliveira acredita o espaço mais adequado para os estudantes apresentarem suas divergências à estrutura de poder na USP seria a justiça.

De acordo com Oliveira, um dos maiores problemas na decisão de Laroca ao indeferir a reintegração de posse é a ponderação de que o direito à manifestação, nesse caso, tem preponderância sobre o direito à propriedade. “Se todo mundo quiser se manifestar ocupando órgãos públicos, você para o Brasil”, diz. “Se ficarmos relativizando, tudo é possível. Você poderia fazer o que quiser.”

Ideologia

Serrano rechaça essa ideia, dizendo que a relativização – ou ideologização – sempre estiveram presentes nas decisões judiciais. E, ainda hoje, a tradição do Judiciário é defender os interesses dos setores mais estabelecidos da sociedade. Ou seja, dos donos de propriedades. “Temos costume de proferir decisões conservadoras e elitistas”, observa. “A maioria dos juízes provêm das elites intelectuais e econômicas do país. E acaba trazendo essas convicções ao tribunal.”

Exatamente por isso, Serrano, Oliveira e Medauar concordam em que a decisão de Laroca será derrubada em segunda instância, quando o recurso que certamente será movido pela USP levar a querela ao crivo do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). E isso nem tanto pelo teor da decisão do magistrado, mas também – e sobretudo – pelo histórico dos desembargadores em “ultravalorizar” a propriedade frente aos demais direitos expressos pela Constituição.

“O direito de propriedade é importante, mas não pode ser o único. A liberdade e a vida também devem ser levados em consideração. A Constituição quer que todos esses valores sejam observados na vida social”, sopesa o professor da PUC-SP. “O Estado de Direito no Brasil vai avançar na medida em que os juízes passem a fundamentar sua argumentação por padrões racionais pautados na Carta Magna, e não por seus valores ideológicos pessoais.”

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