Ditadura

CNV consegue documentos de ministério, mas ainda não abre arquivos de empresas

Sindicalistas lembram que inúmeras fábricas repassaram ao regime informações sobre grevistas. Trabalhadores tiveram atividades bem mapeadas pela repressão

Marcelo Oliveira/CNV

Rosa Cardoso (centro) admitiu que não haverá tempo de a comissão analisar todos os dados

São Paulo – A Comissão Nacional da Verdade (CNV) anunciou hoje (3) em São Paulo que conseguiu acesso ilimitado aos documentos sobre a repressão política alocados nos acervos do Ministério do Trabalho e Emprego, em Brasília, mas reconheceu que ainda não avançou na abertura dos arquivos de empresas que colaboraram com a ditadura (1964-1985).

O movimento sindical denuncia há tempos que uma série de fábricas repassou dados de seus empregados ao regime. Os militares usaram as informações para prender, torturar e provocar a demissão de vários deles. Grevistas foram os principais alvos. A colaboração permitiu à ditadura combater as atividades sindicais com mais eficiência do que fez com qualquer outro grupo social.

“A Cobrasma, em 1965, manda o nome de 18 trabalhadores para a ditadura. Quatro deles estarão na diretoria do sindicato, que será cassada e presa em 1968. Temos esse documento”, enumera Sebastião Neto, membro do Projeto Memória da Oposição Metalúrgica de São Paulo, um dos integrantes do movimento sindical que auxilia as investigações da CNV sobre a repressão aos trabalhadores. “Das indústrias do ABC, todas repassaram informações: Scania, de um país democrático chamado Suécia, Toshiba, do Japão, Chrysler, Volkswagen, Mercedes etc.”

Após a greve de 41 dias em São Bernardo do Campo (SP), continua Neto, as empresas forneceram ao Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) dados sobre a seção e a função em que os grevistas trabalhavam, além do endereço pessoal de cada um deles. “Em São Paulo, a Tecnoforjas e a Monark, que fazia bicicletas, forneceram não apenas o nome, mas xerocaram a ficha de registro de empregados grevistas. Há muita gente que foi demitida na época que nem sabe que é perseguido político. Está tudo no Arquivo Público do Estado de São Paulo. É só procurar.”

Capilarização

“As categorias mais reprimidas pelo regime foram os ferroviários, portuários, petroleiros, metalúrgicos e bancários”, afirma a advogada Rosa Cardoso, membro da CNV e coordenadora do grupo de trabalho que trata da repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical. “Havia uma capilarização profunda dos órgãos de repressão em relação aos trabalhadores. As informações eram repassadas o tempo todo ao Ministério do Trabalho, que tinha uma divisão de inteligência. Com certeza, foi a categoria social em que a capilarização do controle e vigilância se deu de maneira mais intensa. Tudo foi muito informado ao ministério.”

As primeiras incursões da comissão aos arquivos do ministério ocorreram dias 29 e 30 de agosto. Não houve “descobertas espetaculares”, afirma Rosa, mas muitos indícios já puderam ser encontrados logo de cara. A expectativa, agora, é mergulhar nesses acervos para “construir um painel muito rico e informativo” sobre a repressão ao movimento sindical, mas a desorganização e o péssimo estado de conservação dos arquivos do Ministério do Trabalho farão com que a tarefa da comissão não seja tão fácil. Tampouco haverá tempo hábil para vasculhar todos os documentos dentro do prazo estabelecido para que a comissão apresente seu relatório final: maio de 2014.

Bagunça

“Os arquivos do gabinete do ministro estão bem conservados, mas, nos depósitos, não”, explica Sam Romanelli Assunção, assessora da CNV que está trabalhando diretamente com os documentos do Ministério do Trabalho. “Estão em caixas que não são sequer numeradas. A gente encontrou uma vez, pode ser que não encontremos nunca mais. Se as caixas forem mudadas de lugar, não teremos como voltar até elas. Algumas caixas estão numeradas, mas não há identificação sobre seu conteúdo. Temos que abrir caixa por caixa para ver os documentos que estão dentro. Também há duas montanhas de arquivos – montanhas mesmo, caixas jogadas umas em cima das outras – cujo conteúdo não conhecemos inteiramente.”

A assessora reconhece que o tempo é insuficiente. “Não conseguiremos organizar, descontaminar e identificar os arquivos antes de publicarmos o relatório, mas teremos uma equipe que vai olhar os documentos desde já”, comenta. “De qualquer maneira, é uma conquista muito grande para os pesquisadores da história dos trabalhadores e do movimento sindical brasileiro.” Rosa Cardoso concorda: “Uma das tarefas da CNV, até por causa do nosso mandato curto, é essa força que nos é dada pela lei para fazer abrir os arquivos e realizar uma primeira análise”, argumenta. “Em história, não há uma leitura definitiva, não há uma só verdade. Outros pesquisadores que nos sucederão farão uma análise mais demorada ao longo do tempo.”

Agenda

O grupo de trabalho sobre repressão ao movimento sindical também anunciou hoje seu calendário de audiências públicas para o que resta do ano. Dia 1º de outubro haverá um ato nacional para relembrar a repressão sofrida pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), uma das primeiras grandes entidades do movimento operário a ser perseguida pelo regime no pós-1964. Também em outubro, no dia 7, outro ato nacional será realizado em Ipatinga (MG) para relembrar o massacre sofrido por trabalhadores da cidade durante uma greve que completa 70 anos. Em novembro, em Santos (SP), a CNV deve reunir centrais para recordar a resistência sindical durante a ditadura, bem como a existência de um navio-presídio mantido pela Marinha na cidade portuária.

Novo membro

Depois dos anúncios, Rosa Cardoso comentou a entrada de um novo membro na CNV: a nomeação do jurista Pedro Dallari, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), foi publicada na edição de hoje do Diário Oficial da União. “Não o conheço pessoalmente, mas estou esperando com alegria sua vinda, porque tem feito muita falta os dois membros que a CNV perdeu”, comemorou Rosa, fazendo referência à saída de Gilson Dipp, em abril, e Cláudio Fonteles, em junho. Desde então a comissão trabalha com apenas cinco integrantes, cujos desentendimentos nem sempre colaboram para o bom andamento dos trabalhos. “Pedro é muito bem-vindo porque precisamos muito que a CNV se integre diretamente.”

Rosa lembrou que o grupo tem apenas três meses e meio antes de começar a elaborar seu relatório final. “Estamos num momento em que precisamos fazer audiências públicas massivamente.” Ainda assim, a advogada se eximiu de criticar a presidenta Dilma Rousseff pela demora em indicar novos membros da CNV após a saída de Dipp, por razões de saúde, e Fonteles, que deixou o grupo por divergências internas. “O nível de reflexão da presidenta sobre que tipo de pessoa colocar para integrar a comissão deve ter levado a adiar essa escolha”, compreendeu. “Sabemos também que enquanto isso aconteceu ela viveu problemas que envolviam uma atenção especial sua, inclusive problemas que envolviam questões de segurança nacional.”

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