Violência

Taxa de assassinatos no Brasil é ainda maior do que dizem as estatísticas

Ipea garimpa registros oficiais em busca de homicídios que são erroneamente registrados como 'mortes por causas indeterminadas' graças à desarticulação, desorganização ou má-fé de autoridades

Avener Prado/Folhapress

No Brasil, 174 mil óbitos ocorridos nos últimos 15 anos que permanecem com as causas desconhecidas

São Paulo – “Tá lá um corpo estendido no chão”, diz a canção de João Bosco, retratando uma cena que ocorre com indesejada frequência no país. Se a vítima for negra ou parda, jovem, solteira, com baixa escolaridade e do sexo masculino, é grande a probabilidade de ter sido assassinada. Um estudo recentemente divulgado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), órgão ligado à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, se utilizou dessa certeza estatística, mostra da desigualdade social brasileira, para descobrir que o índice de homicídios no Brasil é ainda maior do que sugerem as já assustadoras estatísticas oficiais. “Na realidade, a taxa de assassinatos é 18,6% maior do que pensamos”, explica Daniel Cerqueira, autor da pesquisa, “porque os números que conhecemos não computam os chamados homicídios ocultos.”

Homicídios ocultos é o nome que se dá às mortes violentas que são registradas como “causa indeterminada” no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, mas que, na realidade, foram fruto de assassinato. No Brasil, ao contrário do que ocorre em outros países, é muito elevada a proporção de óbitos cuja causa é desconhecida pelas estatísticas oficiais. “Em países desenvolvidos, o número de mortes violentas indeterminadas é uma parcela residual em relação ao total dos casos”, explica Cerqueira. “A Inglaterra registrou, em 2011, cerca de 0,2% de suas mortes violentas como indeterminadas. No Brasil, entre 1996 e 2010, o número de indeterminação é de 9,2%. São 174 mil óbitos que permanecem com as causas desconhecidas.”

A magnitude dos números chamou a atenção do Ipea, que decidiu fuçar o SIM em busca de respostas para tamanha indefinição. “Analisamos os dados de todas as pessoas que morreram por causas violentas no país nos últimos quinze anos. Foram cerca de 1,9 milhão de pessoas”, diz o pesquisador, que verificou as características socioeconômicas de cada uma das vítimas, além da situação em que se deram as fatalidades. Cerqueira e sua equipe checaram sexo, cor de pele, estado civil, escolaridade e idade, viram se a morte ocorreu na rua e qual instrumento a provocou – se arma de fogo, lâminas cortantes, pancadas etc. “Essas informações devem constar dos atestados de óbitos que são formulados pelo Instituto Médico Legal (IML) sempre que as mortes decorrem de violência.”

Só existem mortes violentas classificadas como “causas indeterminadas” quando os legistas responsáveis por elaborar os laudos cadavéricos das vítimas não conseguem, por falta de elementos, determinar qual entre as opções conhecidas acabaram provocando a morte: se homicídio, acidente ou suicídio. Às vezes, olhando os sinais corporais, os profissionais conseguem determinar até o instrumento que provocou o óbito, se foi revólver, por exemplo, mas não a motivação do tiro. Isso porque é preciso elementos concretos para preencher o documento no campo das “causas”. De acordo com o pesquisador, é comum que estes elementos simplesmente desapareçam do local da morte por despreparo, desorganização ou má-fé dos agentes públicos responsáveis por conservá-los.

“No Brasil, a primeira coisa que se faz é desmanchar a cena do incidente. E quem desmancha é o próprio policial, que deveria preservá-la. A história já começa errada. Primeiro, porque há um problema de mau treinamento policial e porque muitas vezes é o próprio policial que está envolvido com a morte. Daí não há interesse em preservar a cena do crime”, critica Cerqueira. “Em segundo lugar, os problemas têm muito a ver com deficiências na produção da informação pelas organizações que participam do SIM: IML, polícia civil e secretarias de saúde.” O autor do estudo denuncia a falta de articulação das entidades públicas, sobretudo nos níveis estaduais e municipais, que são as responsáveis por alimentar o sistema do Ministério da Saúde.

Juntas, estas deficiências, continua, são as grandes responsáveis pelo alto número de homicídios ocultos no Brasil. Mas nem todos os estados trabalham mal. Cerqueira identificou que apenas sete unidades federativas ostentam índices ruins na matéria: Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Norte, Minas Gerais e Roraima. São regiões com grandes metrópoles, sérios problemas com o crime organizado e que enfrentam, algumas delas, situações de “guerra particular” entre forças policiais e facções criminosas. “Mas não há uma correlação direta entre essas questões”, adiante Cerqueira. “Alagoas, por exemplo, é o estado mais violento do Brasil e, no entanto, registra os menores índices de mortes indeterminadas em todo o país. A mesma coisa acontece no Espírito Santo.”

A estratégia utilizada pelo Ipea para detectar os homicídios ocultos em meio a tantas mortes registradas como “causas indeterminadas” foi recorrer à estatística. De acordo com o pesquisador, existe um certo padrão na ocorrência dos assassinatos no Brasil: eles costumam atingir prioritariamente homens jovens, solteiros, negros ou pardos e com baixa escolaridade. Se a vítima é encontrada na rua, e não dentro de casa, também cresce a probabilidade da morte ter sido causada por homicídio. A utilização de armas de fogo é outra evidência importante. “Se você analisar indivíduos que sofreram óbito e a causa básica desse óbito for indeterminada, e esse cadáver possuir essas características socioeconômicas, há uma grande chance dessa pessoa ter sido vítima de homicídio.”

Os achados de Cerqueira poderão auxiliar as autoridades na definição de políticas públicas com maior eficiência em segurança pública. “Precisamos de indicadores mais precisos para poder fazer diagnósticos mais precisos e poder avaliar o que funciona e não funciona”, argumenta o pesquisador. “No Brasil, temos políticas feitas na base do improviso e da reação à mídia sempre que acontecem incidentes graves, e não sabemos muito bem se essas medidas estão funcionando ou não. Daí vivemos esse drama gigantesco, com mais de 60 mil pessoas assassinadas por ano. Temos que fazer políticas com evidências empíricas e científicas.” Cerqueira não esquece o lado humano da questão: “Os familiares das vítimas simplesmente têm o direito de saber a causa da morte de seus parentes.”

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