por 20 anos

Prédio da Justiça Militar, que quase foi para a PF, lembrará advogados e presos políticos

Local no centro de São Paulo que era usado para julgamentos e também para torturas agora sediará um memorial

oab/sp

Prédio ainda está em obras, previsão é de que seja aberto ao público no primeiro semestre

São Paulo – Conhecido advogado de presos políticos durante a ditadura, Idibal Piveta foi convidado hoje (5) a recordar frase que disse a um escrivão durante uma das várias idas ao prédio da Justiça Militar em São Paulo: “Algum dia este prédio será retomado pela liberdade, por aqueles que amam a liberdade”. Aconteceu hoje, no 1.249 da avenida Brigadeiro Luís Antônio, bairro da Bela Vista, região central da cidade. O sobrado de julgamentos pouco convincentes foi cedido pela Secretaria do Patrimônio da União (vinculada ao Ministério do Planejamento) e sediará a Comissão da Verdade da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Núcleo de Preservação da Memória Política, sob o nome Memorial da Luta pela Justiça. A ideia é que se torne referência para presos políticos e seus defensores. Mas por pouco não foi cedido à Polícia Federal.

A cessão à OAB é por 20 anos, renováveis por igual período. “Era um lugar onde havia tudo, menos justiça”, lembra o presidente do Núcleo de Memória, Maurice Politi, lembrando da rotina do local: “Descer ali fora (na rua) de camburão, algemados, cercado de soldados armados, como se fôssemos bandidos e assassinos”. O ato simbólico de “ocupação” do local foi nos fundos do prédio, na área externa, ao lado da edícula de dois andares onde alguns presos eram torturados – ou, como está escrita em placa que identifica a área, eram levados a “repensar” suas denúncias sobre violência. Por ali passaram também, entre outros, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a presidenta Dilma Rousseff – mas a famosa foto em que a “subversiva” Dilma aparece sentada em meio a julgadores que escondem o rosto não foi tirada ali, mas no Rio de Janeiro.

“A tomada do prédio é um símbolo daquilo que não se deseja em termos de justiça e da advocacia combativa”, diz o presidente da OAB de São Paulo, Marcos da Costa, que nasceu justamente em 1964. Lembra-se do local quando era office-boy, com 13, 14 anos, e passava em frente, a caminho do centro. “Eu virava o rosto com medo (dos soldados com metralhadoras que guardavam a entrada).”

Obras

O prédio ainda está em obras. A previsão é de que seja aberto ao público no primeiro semestre. Talvez em data próxima à dos 50 anos do golpe. Mas já estão ali placas que identificam o que funcionava em cada área. No térreo, por exemplo, ficava a 3ª Auditoria da Circunscrição Judiciária Militar. Na sala de julgamento, funcionará o Centro de Documentação. O visitante saberá que a CJM era formada por um juiz civil e quatro oficiais da Marinha, nenhum com formação em Direito.

No primeiro andar, logo na entrada, à esquerda, ficava a chamada sala dos testemunhos (de policias). Em seguida, fica a sala do juiz auditor e um plenário reservado aos julgamentos. Será uma área destinada a exposições. No segundo andar, onde ficava a 1ª Auditoria Militar, serão instaladas a Comissão da Verdade da OAB e o Núcleo de Memória, além de um espaço educativo.

“Os sorteios eram fraudados e os juízes eram mais dóceis”, recorda o vice-presidente da Comissão da Verdade da OAB paulista, Belisário dos Santos Júnior. Ele percorreu os três níveis do prédio, cumprimentou funcionários e lembrou das várias vezes em que esteve ali. “Aqui ficavam os advogados…”, comenta, encostado a uma parede em uma das salas. Suas lembranças são de “muitos julgamentos, muitas condenações injustas”. Foi ao prédio pela primeira vez em 1969 para defender estudantes presos no congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) no ano anterior, um grupo cujo advogado principal era justamente Idibal Piveta.

Guerra

Com pesados volumes de processos, os defensores ficavam nos corredores e falavam com os presos sem qualquer privacidade. “Não tinha sala de advogado”, lembra Belisário. Era uma espécie de lógica de guerra, analisa. “Eles (militares) entendiam que havia uma guerra psicológica adversa, a cidadania era o inimigo.”

Ex-presidente do Conselho Federal da OAB e atual presidente da Comissão da Verdade da Ordem em São Paulo, Mário Sérgio Duarte Garcia definiu o ato de hoje como uma “verdadeira transgressão democrática”. Para ele, o espaço passar a ser “sagrado daqui pra frente, pelo que foi de perseguição política no tempo passado”.

O deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão da Verdade em São Paulo, lembra que o prédio já estava praticamente de posse da Polícia Federal. Poderia ter sido cedido também ao Ministério da Cultura ou à Guarda Civil.

“Conseguimos desmontar uma doação à PF”, conta o procurador regional da República Marlon Weichert. O local seria destinado à Delegacia de Estrangeiros. “A PF se mostrou solícita”, observou. O governo de São Paulo participou das discussões e conseguiu outro espaço para a delegacia. É mais um passo da chamada Justiça de Transição, diz Weichert. “Temos de ser vigilantes. Não podemos nos iludir. As iniciativas autoritárias frequentemente surgem.”

Também está em discussão o tombamento do prédio que abrigava o Doi-Codi em São Paulo, na rua Tutoia, que hoje sedia o 36º Distrito Policial (Vila Mariana, zona sul). “Estamos muito otimistas em relação a isso”, diz o procurador.

Representantes das igrejas católicas e protestante, das federações israelita e espírita, do budismo e das religiões de matriz africana participaram da cerimônia de hoje.

Para a coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, Rosa Cardoso, a tomada do prédio da Justiça Militar é mais uma iniciativa “no sentido de ampliar uma democracia ainda restrita para uma mais forte e mais densa”. Segundo ela, as manifestações nas ruas mostram que a democracia precisa ter rumo: “Ela não pode ser invertebrada, não pode ser apropriada por organizações que não querem dar uma direção democrática a esses movimentos”.

O caso do pedreiro Amarildo de Souza – desaparecido em 14 de julho na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro –, acrescenta Rosa, mostra que a luta pela democracia é permanente. “Não é só no Brasil. Nos Estados Unidos, que se apresenta como arauto da democracia, há em torno dele um arquipélago de torturas. A tortura não é uma questão anacrônica. É preciso pensá-la sempre e lutar para que ela não exista.”

Advogada, Rosa Cardoso prestou depoimento hoje sobre sua atuação naquele período. “Eu estava muito mais atenta à questão da recuperação da identidade dos presos. Ou seja, eles chegavam aqui e denunciavam o que tinham sofrido. Era um momento não só de resistência, mas de ação política. Eles chegavam aqui e ousavam denunciar as pessoas e os carcereiros. Era um lugar também de reparação. À medida que eles acusavam os torturadores, os carcereiros, os violadores, estavam dizendo aos juízes que eles eram cúmplices desse sistema.”

Pela manhã, a OAB de São Paulo colheu depoimento da própria Rosa Cardoso, dos advogados José Carlos e Paulo Sérgio Leite Fernandes e dotambém  advogado e cineasta Leopoldo Paulino. Depois, na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, foi a vez de José Carlos Dias (Comissão Nacional da Verdade), Adriano Diogo, Idibal Piveta e do advogado Wellington Cantal falarem à Ordem e à comissão nacional.

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