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Júri condena mais 25 PMs por mortes no Carandiru

Pena para soldados da Rota é de 624 anos de prisão para cada um. Desde o início do ano, 48 dos 78 denunciados por 102 das mortes no chamado Massacre do Carandiru já foram sentenciados a prisão

© Mauricio Camargo/Brazil Photo Press/Folhapress

Os promotores do MP no segundo júri do chamado Massacre do Carandiru, encerrado na madrugada de sábado (3)

São Paulo – Os 25 policiais militares que atuaram no terceiro pavimento do pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru na invasão policial de 2 de outubro de 1992 foram condenados, cada um, a 624 anos em regime fechado. Os PMs, todos da Rota, poderão aguardar em liberdade até o esgotamento das possibilidades de recursos. Os policiais também irão perder seus cargos públicos quando a sentença transitar em julgado, porque o juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo avaliou que houve “inequívoco abuso de autoridade”. A sentença foi lida às 4h20 da manhã de hoje (3), no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo.

Os sete jurados, distintos dos do primeiro bloco do julgamento, consideraram que os policiais da Rota foram responsáveis pela morte de 52 das 73 pessoas que estavam naquele pavimento. O próprio Ministério Público (MP) havia pedido a desconsideração de 21 mortes porque as investigações não conseguiram determinar qual tropa foi responsável pela operação – os presos estavam no corredor direito do pavilhão.

“A voz da sociedade, dentro de um julgamento, é dada aqui no tribunal do júri. Ela não é dada nas ruas apenas. Ela não é dada àqueles que se manifestam e fazem comentários em blogs ou enquetes pela internet. Aqui o jurado tem a oportunidade de, após seis dias de julgamento, ouvindo as testemunhas, analisando os documentos dos processos, ouvindo os argumentos das partes, decidir que efetivamente o que aconteceu naquele dia foi um massacre. Mais do que isso, que a sociedade não vai compactuar com desrespeito à vida, que a sociedade não vai compactuar com o desrespeito ao ser humano”, declarou o promotor do Ministério Público Fernando Pereira da Silva durante entrevista ao término do julgamento.

Com isso, 48 dos 78 policiais acusados pela morte de 102 internos na Casa de Detenção em 2 de outubro de 1992 foram condenados. O episódio, que ficou conhecido como Massacre do Carandiru, é considerado o maior morticínio do sistema penal brasileiro.

Em 2001, o Coronel Ubiratan Guimarães, responsável pelo comando da operação, foi condenado a 632 anos. Mas no início de 2006, desembargadores do Tribunal de Justiça anularam a decisão do júri popular e Ubiratan morreu meses depois, sem nunca ter cumprido um único dia de pena.

Em abril deste ano, 23 policiais da Rota que atuaram no segundo pavimento foram responsabilizados pela morte de 13 detentos e sentenciados a 156 anos de prisão cada um, mas seguem em liberdade até se esgotarem os recursos. Cinco dos condenados, no entanto, continuam na ativa.Segundo a PolíciaMilitar, qualquer soldado condenado a mais de dois anos de prisão por homicídio doloso é exonerado da instituição. No entanto, esse procedimento só se dá depois que a sentença transita em julgado.

Pereira disse que, apesar de legítimo do ponto de vista legal, decisões assim precisam ser revistas. “Acho que a gente tem que repensar algumas coisas. A gente que eu digo não apenas enquanto sociedade, mas também como pessoas que vivem do Direito. E repensar se é isso que a gente quer: O cidadão sai do tribunal do júri com mais de seiscentos anos como se inocente fosse”, afirmou.

Como no primeiro julgamento, a advogada dos réus, Ieda Ribeiro Souza, disse que a sentença não condiz com o que pensa a sociedade e que há apoio popular à ação da polícia na internet. Ao ser questionada se o contrário disso não ficava demonstrado pela reação à ação da polícia nas manifestações populares dos últimos meses em várias cidades do país, disse que a sociedade está “doente”.

“Quando os órgãos do Ministério Público precisam de socorro, eles se socorrem da polícia militar, quando a sociedade precisa de socorro, ela se socorre da polícia militar. Então, se a sociedade pensa assim, infelizmente nós temos uma sociedade doente”, declarou aos jornalistas.

Ieda afirmou que irá recorrer da sentença assim que todos os 78 policiais denunciados forem julgados. Mas acredita encontrar dificuldades por considerar ser uma ação “política”. Ieda também irá defender os policiais que atuaram nos outros dois pavimentos do pavilhão 9 e diz que pouco mudará de sua tese porque ela é a única possível.

“Hoje a sociedade perdeu e o mundo do crime ganhou. Porque, na verdade, quando se condenam policiais que trabalharam honestamente, corretamente, e que não tiveram nenhuma participação nesse número de mortes, eu estou desvalorizando quem nos protege”, ilustrou.

Debate

No quinto e último dia de julgamento, defesa e acusação falaram por quase dez horas e os trabalhos se estenderam das 10h25 de sexta-feira (2) até 4h20 do sábado. A fase de debates é a única em que os promotores do caso, Fernando Pereira da Silva e Eduardo Olavo Canto, e a advogada de defesa, Ieda Ribeiro Souza, podem apresentar seus argumentos livremente aos jurados.

Durantesua fala inicial, a promotoria apresentou informações dos laudos necropsiais de 52 mortos. O próprio MP pediu para que os jurados desconsiderassem 21 mortes que teriam acontecido no corredor direito do pavimento – a Rota atuou apenas no corredor esquerdo.Cerca de90% das vítimas receberam tiros na cabeça e no pescoço – o que aponta para a possibilidade de execuções em massa. Destes, mais da metade levou entre dois e quatro tiros.

Já Ieda, para se contrapor às estatísticas apresentadas pelo MP para defender a tese de execução de detentos, apelou a músicas e escuridão no tribunal do júri. A advogada disse que os policiais agiram corretamente e que os laudos apresentados pelo MP para basear a acusação dos réus são inconclusivos.

Ela também argumentou não ser possível individualizar as eventuais condutas criminosas. Para ela, o ex-governador Luiz Antônio Fleury Filho (PMDB) é o grande responsável pelo episódio. “Quem deveria estar aqui é o doutor Fleury. Ele não foi responsabilizado porque tinha ‘costas quentes’ e ninguém ia colocar aquela situação num momento de véspera de eleições.”

Durante sua réplica, o promotor Eduardo Olavo Canto Neto pediu para que os jurados  “escutassem as vozes que vêm das ruas”, “agissem como agentes de mudança social” e condenassem os 25 policiais militares julgados pela ação no terceiro pavimento do Pavilhão 9.

O promotor afirmou que o julgamento é “ideológico” e que a questão é se se é favorável à ideia de que “bandido bom é bandido morto”. Canto Neto apresentou a relação de ocorrências registradas como Resistência Seguida de Morte (RSM) na ficha dos réus. Juntos, até o ano 2000, eles tinham quase 300 RSMs. Sozinho, o soldado Carlos Alberto dos Santos se envolveu em 33 RSMs, sem nunca ser condenado.

Canto Neto insistiu que existe má conduta em todas as instituições e que elas ainda assim continuam “grandiosas”. Por isso essa “mancha precisa ser retirada” e afirmou que os réus “não são heróis”. O promotor explicou aos jurados que os policiais não seriam julgados por condutas individuais, mas por terem concorrido para a “obra comum”.

Na tréplica, a advogada Ieda Ribeiro de Souza reforçou a tese da defesa de que havia armas dentro da Casa de Detenção. Durante toda sua fala, ela tentou desqualificar a denúncia feita pelo Ministério Público, que não individualizou a ação de cada um dos acusados. Para ela, o julgamento dos policiais da Rota é político. “Trágico, imbecil.  Estúpido quem pensa que esse julgamento não é político”, disse.

Durante a fala da defesa, Ieda e os promotores tiveram várias discussões. Em uma das interrupções, o promotor Silva questionou: “Por que a senhora não fala logo o que a senhora quer dizer? Que eles mataram pouco, que o certo é matar?”.

Apesar de não ter verbalizado essa tese, a advogada pediu a “empatia” dos jurados,  que deviam se imaginar no lugar dos policiais em uma situação idêntica, e pediu que os absolvessem para fazer “justiça”.

Para Ieda, o julgamento só não foi arquivado porque os pedidos da Organização das Nações Unidas interferiram na soberania do Brasil ao dizerem o que o país deveria fazer em relação ao caso. O órgão pediu rigor no julgamento do episódio, que sempre caracterizou como “massacre”.

Para justificar o envolvimento dos policiais em tantas ocorrências de Resistência Seguida de Morte, a advogada usou o argumento de que “gente de bem não foge” e, apesar de fazer diversas críticas à imprensa, a advogada reforçou conceitos arraigados em parte da sociedade. Mostrou várias reportagens sobre crimes de grande repercussão, como o assassinato de um policial e de um menino morto com um tiro porque chorava durante um assalto. “Quem faz isso com uma criança de cinco anos, o que faria com um policial?”